SUMÁRIO: Introdução; Capítulo I – A personalidade ; Capítulo II- A pessoa jurídica, 2.1. Conceito, 2.2. A Funcionalidade da Pessoa Jurídica – necessidade e adequação do instituto, 2.3. Natureza Jurídica, 2.4. Objetivos da Personificação; Capítulo III- A desconsideraçâo da personalidade jurìdica, 3.1. Definição, 3.2. Origem do Instituto, 3.3. Fundamentação, 3.4. Previsão Legal, 3.4.1. O Código de defesa do Consumidor, 3.4.2. Outras Previsões Legais, 3.4.3. O Novo Código Civil, Conclusões, referência bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A empresa privada, pessoa jurídica que é, constitui-se uma realidade e, como tal, deve ser protegida. A proteção, entretanto, não se coloca apenas em decorrência das cifras que movimenta ou dos índices de rendimentos econômicos por si só considerados. Faz-se necessária na medida em que a empresa, conforme designação moderna e em consenso com o Código Civil de 2002, se torna instrumento de promoção dos valores sociais e não patrimoniais.
Fábio Ulhoa Coelho (2002: 11) conceitua a pessoa jurídica como o "sujeito de direito inanimado personalizado", sendo certo que o sujeito de direito tem aptidão para a prática de qualquer ato, exceto aquele expressamente proibido.
Da definição da sociedade empresária como pessoa jurídica derivam conseqüências precisas, relacionadas com a atribuição de direitos e obrigações ao sujeito de direito nela encerrado. Em outros termos, na medida em que a lei estabelece a separação entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, consagrando o princípio da autonomia patrimonial, os sócios não podem ser considerados os titulares dos direitos ou os devedores das prestações relacionados ao exercício da atividade econômica, explorada em conjunto. Será a própria pessoa jurídica da sociedade a titular de tais direitos e a devedora dessas obrigações.
Verifica-se que da personalização da sociedade empresária decorre o princípio da autonomia patrimonial, que é um dos elementos fundantes do direito societário. É é em razão desse princípio que os sócios não respondem, em regra, pelas obrigações da sociedade.
Diz-se que os sócios não respondem pelas obrigações da sociedade, em regra, porque a pessoa jurídica pode ser manipulada por aqueles que atrás dela se escondem.
Em razão do princípio da autonomia patrimonial, as sociedades empresárias podem ser utilizadas com instrumento para a realização de fraude contra credores ou mesmo abuso de direito. Na medida em que é a sociedade o sujeito titular dos direitos e devedor das obrigações, e não os seus sócios, muitas vezes os interesses dos credores ou terceiros são indevidamente frustrados por manipulações na constituição de pessoas jurídicas, celebração dos mais variados contratos empresariais, ou mesmo realização de operações societárias, como as de incorporação, fusão e cisão. Nesses casos, alguns envolvendo elevado grau de sofisticação jurídica, a consideração da autonomia da pessoa jurídica importa a impossibilidade de correção da fraude ou do abuso. Quer dizer, em determinadas situações, ao se prestigiar o princípio da autonomia da pessoa jurídica, o ilícito perpretado pelo sócio permanece oculto, resguardado pela licitude da conduta da sociedade empresária. Somente se revela a irregularidade se o juiz, no caso concreto, não respeitando o princípio referido, desconsiderá-lo. Desse modo, como pressuposto da repressão a certos tipos de ilícitos, justifica-se episodicamente a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária.
Muito se discute sobre o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, especialmente no que tange à sua aplicação ao Direito do consumidor. Certamente, de muita valia é o instituto, podendo ter grande aplicabilidade, precisamente quando a personalidade jurídica autônoma da sociedade empresária antepõe-se com obstáculo à justa composição de interesses.
De criação jurisprudencial, objetiva o instituto a desconsideração da personalidade jurídica atribuída pelo Direito a certos entes abstratos, a fim de que seja atingido, no caso concreto, o patrimônio de seus sócios administradores, que responderão pela fraude ou abuso de direito praticados através do mau uso da pessoa jurídica.
O Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei Federal 8.078, de 11 de setembro de 1990), foi o primeiro texto de lei a prever expressamente a desconsideração, em que pesem opiniões em contrário.
Entretanto, verifica-se uma grande distância entre a previsão contida no CDC e a verdadeira Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, tal qual desenvolvida por Rolf Serick, ao defender sua tese de doutorado perante a Universidade de Tübinngen, em 1953.
Daí a elaboração do presente trabalho. Partindo da idéia de personalidade, desenvolver-se-á um conceito de pessoa jurídica, tentando demonstrar sua natureza jurídica e objetivos. Em seguida, dissertar-se-á acerca da desconsideração da personalidade jurídica, definindo-a, demonstrando sua origem, fundamentação e previsão legal no Direito pátrio. Por fim, far-se-á uma abordagem crítica daquilo que o legislador pretendeu denominar como desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento pátrio.
CAPÍTULO I: A PERSONALIDADE
Inerente à noção de pessoa, está a idéia de personalidade, possuindo como um de seus atributos a capacidade de se ser sujeito de direitos e deveres. Trata-se, segundo Caio Mário da Silva Pereira (1997: 142), de uma "aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações".
A capacidade, entretanto, como essa aptidão genérica de adquirir direitos e contrair obrigações, nem sempre foi tida como uma virtude intrinsecamente ligada à idéia de pessoa natural. Tal se deve ao fato de que antigamente, no Direito Romano, haviam seres humanos que não eram considerados como pessoas, pois não possuíam personalidade. Mencionadas pessoas eram os escravos que, tratados como coisas, jamais figuravam na relação jurídica como sujeitos de direito. Sempre constituíam seu objeto.
César Fiuza (1999: 63) assevera ser a personalidade um atributo jurídico. Justifica seu posicionamento pela circunstância de, no passado, ter existido seres humanos a quem o ordenamento jurídico não conferia essa qualidade, bem como pelo fato de serem dotados de personalidade entes não humanos, a quem se designa como pessoas jurídicas.
O Direito brasileiro considera que todos os homens têm aptidão para desempenhar, na sociedade, um papel jurídico como sujeito de direitos e obrigações. A personalidade, como atributo jurídico, tem sua medida na capacidade. Os sujeitos de direito precisam de capacidade para ter e exercer direitos e para contrair obrigações. Entretanto, conforme leciona Alexandre Couto Silva (1999: 13), para se obter a medida da personalidade, faz-se necessário distinguir capacidade de direito da capacidade de fato.
Para retromencionado autor (1999: 13), a capacidade de direito tem a mesma significação de personalidade, confundindo-se com esse conceito na medida em que toda pessoa é capaz de ter direitos, enquanto a capacidade de fato é a aptidão legal para a prática de certos atos ou para o exercício de direitos, e nem todos a têm. A capacidade de fato condiciona-se à capacidade de direito, não sendo concebida sem esta. Porém, a recíproca não é verdadeira, pois, pode-se ter capacidade de direito sem a capacidade de fato. Ter direito não significa poder exercê-lo. A impossibilidade de exercício traduz-se tecnicamente por incapacidade.
Verifica-se, entretanto, não ser somente o homem dotado de personalidade. Na verdade, a personalidade é atribuída pelo Direito tanto ao homem (pessoa física ou natural), como à pessoa jurídica (sociedades civis e comerciais, fundações, associações, pessoas jurídicas de direito público interno e externo). Aos agrupamentos de indivíduos que se associam para a realização de um fim econômico ou social em comum, também é reconhecida a personalidade. De acordo com Alexandre Couto Silva (1999: 14), são conferidas a tais entidades autonomia e independência relativamente às pessoas naturais de seus componentes e dirigentes.
Poder-se-ia, aqui, discorrer sobre a atribuição de personalidade às pessoas naturais, como também às pessoas jurídicas. Entretanto, ater-se-á apenas às pessoas jurídicas, e mais especificamente às sociedades empresárias, visto ser o objeto do presente trabalho a desconsideração de sua personalidade.
CAPÍTULO II: A PESSOA JURÍDICA
2.1. Conceito
Conforme ensina José Edwaldo Tavares Borba (2003: 21), o conceito de pessoa jurídica foi construído à imagem e semelhança do conceito de pessoa física. Ambos são sujeitos de direitos e obrigações, atuando na ordem jurídica.
A pessoa jurídica é, hoje, um instrumento legítimo para a conjugação de esforços e consecução de interesses. Luciano Amaro (1993: 69), citando Ripert, expressa que a pessoa jurídica é uma ‘máquina jurídica’, ou seja, "uma instrumentação jurídico-formal utilizável para a consecução de fins aceitos e valorizados pela ordem jurídica".
César Fiuza (1999: 75), por sua vez, as define como "entidades criadas para a realização de um fim e reconhecidas pela ordem jurídica como sujeitos de direitos e deveres".
O emérito Rubens Requião (1998: 204), ao colocar o seu conceito de pessoa jurídica, não se refere em momento algum à reunião e conjugação de esforços para a consecução de certo fim, mas não poderia deixar de ser destacado. Para o comercialista:
Entende-se por pessoa jurídica o ente incorpóreo que, como as pessoas físicas, pode ser sujeito de direitos. Não se confundem, assim, as pessoas jurídicas com as pessoas físicas que deram lugar ao seu nascimento; pelo contrário, delas se distanciam, adquirindo patrimônio autônomo e exercendo direitos em nome próprio. Por tal razão, as pessoas jurídicas têm nome particular, como as pessoas físicas, domicílio e nacionalidade; podem estar em juízo, como autoras ou como rés, sem que isso se reflita na pessoa daqueles que a constituíram. Finalmente, têm vida autônoma, muitas vezes superior às das pessoas que as formaram; em alguns casos, a mudança de estado dessas pessoas não se reflete na estrutura das pessoas jurídicas, podendo, assim, variar as pessoas físicas que lhe deram origem, sem que esse fato incida no seu organismo. É o que acontece com as sociedades institucionais ou de capitais, cujos sócios podem mudar de estado ou ser substituídos sem que se altere a estrutura social.
O certo é que a pessoa jurídica é hoje uma instituição, através da qual um agrupamento adquire personalidade distinta das de seus componentes.
Veja-se a lição de Orlando Gomes (1996: 185):
A personalização desses grupos é construção técnica destinada a possibilitar e favorecer-lhes a atividade. O Direito toma-os da sociedade, onde se formam, e os disciplinam à imagem e semelhança das pessoas naturais, reconhecendo-os como pessoas, cuja existência autônoma submete a requisitos necessários a que possam exercer direitos, dando-lhes regime compatível com a sua natureza.
2.2. A Funcionalidade da Pessoa Jurídica – necessidade e adequação do instituto
As pessoas jurídicas são hoje, além de uma realidade, uma necessidade. Pode-se dizer que, a priori, seja a constituição de uma pessoa jurídica uma opção do empresário que poderia, em princípio, explorar individualmente determinado empreendimento industrial, comercial ou de prestação de serviços, mas opta por explorar a atividade através de um ente distinto e conjuntamente com outras pessoas. Esse ente distinto é a pessoa jurídica.
Existem, também, situações em que a criação de uma pessoa jurídica constitui uma necessidade técnica. Empreendimentos existem que necessitam de vultosos investimentos, bem com da conjugação do esforço de um sem número de pessoas. Estes empreendimentos seriam inviáveis se não fosse utilizada a técnica de separação patrimonial, um dos grandes objetivos da criação de uma pessoa jurídica, conforme se verá.
Outras vezes, a criação de uma pessoa jurídica é uma imposição legal, para que certa atividade seja explorada. Trata-se de hipóteses em que a lei somente autoriza o exercício de certas atividades às pessoas jurídicas, devendo as mesmas, geralmente, ser constituídas sob a forma de companhia e possuírem capital social mínimo. Assim ocorre com as instituições financeiras. Somente pessoas jurídicas podem explorar, por exemplo, a atividade bancária, por expressa disposição legal.
Não se discute a necessidade da existência da pessoa jurídica. Nos dizeres de Caio Mário da Silva Pereira (1997: 185),
a complexidade da vida civil e a necessidade da conjugação de esforços de vários indivíduos para a consecução de objetivos comuns ou de interesse social, ao mesmo passo que aconselham e estimulam a sua agregação e polarização de suas atividades, sugerem ao direito equiparar à própria pessoa humana certos agrupamentos de indivíduos e certas destinações patrimoniais e lhe aconselham atribuir personalidade e capacidade de ação aos entes abstratos assim gerados. Surgem, então, as pessoas jurídicas, que se compõem, ora de um conjunto de pessoas, ora de uma destinação patrimonial, com aptidão para adquirir e exercer direitos e contrair obrigações.
Retoma-se Orlando Gomes (1996: 185/186), para quem:
O fenômeno da personalização de certos grupos sociais é contingência inevitável do fato associativo. Para a realização de fins comuns, isto é, de objetivos que interessam a vários indivíduos, unem eles seus esforços e haveres, numa palavra, associam-se. A realização do fim para que se uniram se dificultaria extremamente, ou seria impossível, se a atividade conjunta somente se permitisse pela soma, constante e iterativa, das ações individuais. Surge, assim, a necessidade de personalizar o grupo, para que possam proceder como uma unidade, participando do comércio jurídico com individualidade, tanto mais necessária quanto a associação, via de regra, exige a formação do patrimônio comum constituído pela afetação dos bens particulares de seus componentes. Esta individualização necessária só se efetiva se a ordem jurídica atribui personalidade ao grupo, permitindo que atue em nome próprio, com capacidade jurídica igual a das pessoas naturais. Tal personificação é admitida quando se apresentam os pressupostos necessários à subjetivação dos interesses para cuja realização os indivíduos se associam. Assim se formam as pessoas jurídicas.
Ressalte-se, conforme Tavares Borba (2003: 22), que muito embora a sociedade seja dotada de personalidade jurídica tal como o homem o é, uma distinção fundamental deve estar sempre presente: enquanto o homem é um fim em si mesmo, a sociedade é um instrumento do homem, ao qual deve servir. Não de se admitir, entretanto, que a pessoa jurídica sirva ao homem fraudando direitos alheios.
2. 3. Natureza Jurídica
Grandes são os debates travados em torno da natureza da pessoa jurídica. Várias são as teorias que tentam explicar o instituto. De todas elas, as que merecem melhores cuidados são a Teoria da Ficção, que considera a pessoa jurídica como uma criação da lei e a Teoria da Realidade das Instituições Jurídicas, mais aceita no meio jurídico, e que reputa as pessoas jurídicas como preexistentes à lei, sendo apenas as normas de seu funcionamento traçadas por esta última.
A Teoria da Ficção é a teoria clássica, originada no Direito Canônico, com fundamento no Direito Romano. César Fiúza (1999: 76) a explicita, afirmando que, segundo ela, a pessoa jurídica é sujeito aparente sem qualquer realidade e fruto da imaginação do homem. É expediente técnico, sujeito aparente, sem qualquer realidade. Rubens Requião (1998: 204) indica que essa teoria foi defendida por Ihering, Savigny e Laurente, entre outros. Na qualidade de fruto da imaginação humana, seriam as pessoas jurídicas, por essa teoria, seres fictícios e criados pelo direito positivo, dependentes, assim, da vontade do legislador.
No dizer de Caio Mário da Silva Pereira (1997: 189/190):
Segundo essa concepção doutrinária, a qualidade de sujeito da relação jurídica é prerrogativa exclusiva do homem, e fora dele, como ser do mundo real, o direito concebe a pessoa jurídica como uma criação artificial, engendrada pela mente humana, e cuja existência, por isso mesmo, é simplesmente uma ficção. Na sociedade ou associações de pessoas, a lei abstrai-se dos membros componentes, e, fingindo que seu conjunto é em si mesmo uma pessoa diferente deles, atribui-lhes a aparência de sujeito de direito (omissis). Não tendo a pessoa jurídica existência real, o legislador pode-lhe conceder ou recusar personalidade, segundo lhe pareça ou não conveniente, como pode retirar-lhe esse atributo, de vez que os entes morais não passam de um processo jurídico de realização de fins úteis ao homem.
Já pela Teoria da Realidade das Instituições Jurídicas, a personalidade das pessoas jurídicas é atributo reconhecido pelo Direito, que o defere a certos entes. Trata-se de uma realidade técnica ou realidade jurídica.
Caio Mário da Silva Pereira (1997: 193/194) apresenta a justificativa para a Teoria da Realidade das Instituições Jurídicas:
Verifica o direito que, desde os tempos antigos, houve agrupamentos de indivíduos com a finalidade de realizar os seus interesses ou preencher as exigências sociais. O Direito sempre encarou estes grupos destacadamente de seus membros, o que significa que a ordem jurídica considera estas entidades como seres dotados de existência própria ou autônoma, inconfundível com a vida das pessoas naturais que os criaram. Diante desta realidade objetivamente perceptível, a ordem legal atribui personalidade jurídica a qualquer agrupamento suscetível de ter uma vontade própria e de defender seus próprios interesses. Destacadamente das pessoas naturais que lhe deram vida própria ou que as compõem, e até mesmo em oposição a umas ou outras, o direito permite a estas entidades atuar no campo jurídico, reconhecendo-lhes a existência; faculta-lhes adquirir direitos e contrair obrigações; assegura-lhes o exercício dos direitos subjetivos. Realizando os interesses humanos ou as finalidades sociais que se propõem, as pessoas jurídicas procedem, no campo do direito, como seres dotados de ostensiva autonomia. É preciso, então, reconhecer-lhes vontade própria, que se manifesta através das emissões volitivas das pessoas naturais, mas que não se confunde com a vontade individual de cada um, porém é resultante das de todos. E se o direito assim trata os entes abstratos, permitindo-lhes atuar, assegurando-lhes usar, gozar e dispor de direitos, admitindo-as a contrair obrigações, aceitando as suas manifestações de vontade a que atribui força obrigatória da mesma maneira que as emitidas pelas pessoas físicas, é preciso então que a lei lhes reconheça a personalidade e lhes atribua um patrimônio, que se distingue da personalidade e do patrimônio dos indivíduos integrantes ou aderentes.
Assim também entende Domingos Afonso Kriger Filho (1995: 79), que afirma ser a personalidade das pessoas jurídicas um atributo que o Estado defere a certos entes havidos como merecedores dessa situação. Para tanto, busca o autor a sua fundamentação em Norberto Bobbio, que traça a distinção entre a função repressiva e função promocional do Direito.
Para Bobbio, segundo afirma Kriger Filho (1995: 79), através da função repressiva, o Estado busca evitar a adoção de condutas maléficas, coagindo os cidadãos a certos comportamentos por sancionar a conduta oposta. Pela Segunda, o Estado estimula a prática de certas condutas, premiando-as, por serem os seus resultados desejáveis ao bem comum.
Leciona Domingos Afonso Kriger Filho (1995: 79/81):
Ao direito promocional é totalmente ineficaz a noção de sanção como mal, sendo a solução oferecer recompensas e benefícios que se configuram, se assim podemos dizer, em uma sanção premial.
Percebem-se grandes diferenças tanto do ponto de vista estrutural quanto funcional entre as referidas sistemáticas: enquanto no sistema repressivo o esquema corresponde a "ato ilícito – sanção" e "ato lícito – irrelevância", no promocional o esquema passa a ser "ato ilícito – irrelevância" e "ato lícito – prêmio".
É claro que o discurso promocional acerca do direito não visa suprimir definitivamente a sua função repressiva, mas apenas destacar que este pode servir de instrumento à sociedade na obtenção de um comportamento benéfico, incrementando as condições de sobrevivência e de consecução dos interesses sociais supra individuais.
Como ao Estado interessa sobremaneira que os homens conjuguem os seus esforços a fim de propiciar a execução de ideais comunitários, que não conseguiriam realizar isoladamente, o direito promove a formação de associações que tenham o objeto de superar a debilidade de suas forças e a brevidade de suas vidas.
Para estimular a realização dessas associações e incentivar os homens a concentrarem recursos e esforços no sentido de realizarem o ideal comum, o Estado vale-se da personificação societária, através da qual outorga ao ente assim criado a aptidão para o exercício e aquisição de direitos, por si só, na vida civil.
A atribuição de personalidade jurídica corresponde, assim, a uma sanção positiva ou premial, no sentido de um benefício assegurado pelo direito – que seria afastado caso a atividade fosse realizada individualmente – a quem adotar a conduta desejada.
Marçal Justen Filho (1987: 49), de há muito já havia feito a correspondência entre pessoa jurídica e a noção de sanção positiva proposta por Noberto Bobbio. Conclui que, sendo a personificação societária uma sanção positiva prevista pelo ordenamento jurídico, resume-se, na verdade, a uma técnica de incentivação "pela qual o direito busca conduzir e influenciar a conduta dos integrantes da comunidade jurídica".
Segundo o entendimento dominante, a atribuição de personalidade jurídica deve ser vista como um benefício ou, segundo Domingos Afonso Kriger Filho (1995: 79), uma sanção premial, assegurado pelo direito a quem adotar a conduta desejada.
Para Justen Filho (1987: 50), a atribuição da personalidade jurídica é, em outras palavras, a atribuição de um regime jurídico peculiarmente benéfico para o exercício associativo da atividade econômica. Conseqüentemente, seria a conjugação de esforços e recursos para o exercício de uma certa atividade econômica, juridicamente mais atraente e compensadora, já que a atuação sob a forma de pessoa jurídica oferece uma série de benefícios ou privilégios, a princípio, que não estão disponíveis para aqueles que preferem a exploração da mesma atividade econômica de forma individual.
2.4. Objetivos da Personificação
Pelos conceitos mencionados e pelas considerações realizadas, conclui-se que a personalização é um atributo ou um incentivo reconhecido por certo ordenamento jurídico, para a estimulação dos seres humanos à conjugação de esforços e recursos com vistas à consecução de determinado fim.
Tem-se, assim, um regime mais favorável que, segundo Marçal Justen Filho (1987: 50), afasta as regras jurídicas que seriam aplicáveis caso o exercício da atividade fosse explorada isoladamente.
Esse regime especial atribui às pessoas jurídicas algumas características próprias, as quais podem ser dessa forma indicadas:
1 – Personalidade própria, não se confundindo com as de seus criadores. Por isso Rubens Requião (1998: 204) menciona que as pessoas jurídicas possuem nome particular, bem como domicílio e nacionalidade próprios;
2 – Patrimônio próprio, o qual também não se confunde com os de seus fundadores;
3 – Vida própria, que independe da vida de seus criadores. É óbvio que as pessoas jurídicas existem porque alguém as criou. Também é natural que a atividade das pessoas jurídicas aconteçam segundo a vontade de seus sócios. Entretanto, tem-se que o falecimento de um desses não acarreta, necessariamente, a extinção daquela;
4 – A pessoa jurídica pode exercer todos os atos que não seja privativos das pessoas naturais, seja por natureza ou por força de lei. Segundo o Professor César Fiúza (1999: 78), as pessoas jurídicas não podem se casar, visto que, por sua natureza, este ato é privativo das pessoas naturais. Também, segundo o mesmo autor, não podem ser sócias de sociedade jornalística, por proibição legal.
Domingos Afonso Kriger Filho (1995: 80) considera que o benefício da personificação societária é dominado por alguns princípios fundamentais que se foram firmando com o tempo, dentre os quais ressalta:
a)não atribuição à pessoa dos sócios das condutas praticadas pela sociedade;
b)distinção entre patrimônio dos sócios e patrimônio da sociedade;
c)vida própria e distinta de seus membros.
O foco merecedor de destaque neste trabalho centra-se na distinção de patrimônio dos sócios e o da sociedade.
Luciano Amaro (1993: 70) leciona:
Ficção ou realidade, a pessoa jurídica representa instrumento legítimo de destaque patrimonial, para a exploração de certos fins econômicos, de modo que o patrimônio titulado pela pessoa jurídica responda pelas obrigações destas, só se chamando os sócios à responsabilidade em hipóteses restritas.
Sobre esse ponto é que se assenta toda a discussão em torno da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.
O princípio da autonomia patrimonial é o alicerce do direito societário. Como lembra Fábio Ulhoa Coelho (2002: 15/16), sua importância para o desenvolvimento de atividades econômicas, da produção e circulação de bens e serviços, é fundamental, na medida em que limita a possibilidade de perdas nos investimentos mais arriscados. A partir da afirmação do postulado jurídico de que o patrimônio dos sócios não responde por dívidas da sociedade, motivam-se investidores e empreendedores a aplicar dinheiro em atividades econômicas de maior envergadura e risco. Se não existisse o princípio da separação patrimonial, os insucessos na exploração da empresa poderiam significar a perda de todos os bens particulares dos sócios, amealhados ao longo do trabalho de uma vida ou mesmo de gerações e, nesse quadro, menos pessoas se sentiriam estimuladas a desenvolver novas atividades empresariais.
Ocorre que o Direito não pode aceitar que atos que contra ele atentam sejam protegidos pela distinção patrimonial. Na existência de um dano, deve o mesmo ser reparado, mesmo que para isso se desconsidere a personalidade jurídica e, via de conseqüência, a separação patrimonial existente entre a pessoa jurídica e seus membros, atingindo-se o patrimônio destes últimos.
Não mais é aceitável, portanto, a distinção absoluta entre ao patrimônio de uma sociedade e o patrimônio daqueles que a compõem. Certamente, como acima mencionado, a separação patrimonial é um dos objetivos da personificação, se não o seu principal, possibilitando a exploração de determinada atividade econômica. Entretanto, deve ser vista com certa relatividade, a fim de que não funcione como legitimador de atos ilícitos, em especial aqueles praticados no propósito de prejudicar credores.