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Transação e direitos individuais do empregado

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Agenda 06/02/2004 às 00:00

Tendo em vista que a transação tem como elemento a reciprocidade de concessões, e que concessão pode consistir em renúncia, sua aplicabilidade às relações de direito individual do trabalho encontra certo óbice no princípio da irrenunciabilidade.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO, 1 DA TRANSAÇÃO; 1.1 FORMAS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS, 1.1.1 AUTODEFESA, 1.1.2 AUTOCOMPOSIÇÃO, 1.1.3 HETEROCOMPOSIÇÃO, 1.1.4 ARBITRAGEM, 1.2 CONCEITO DE TRANSAÇÃO, 1.3 BREVES NOTAS SOBRE A TRANSAÇÃO NO DIREITO ROMANO, 1.4 ANÁLISE DA TRANSAÇÃO NO CÓDIGO CIVIL, 1.5 ANÁLISE DA TRANSAÇÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 1.5.1 DIREITOS CONTESTADOS EM JUÍZO, 1.5.2 DIREITOS NÃO CONTESTADOS EM JUÍZO, 2 DO TRABALHO, 2.1 CONCEITO, 2.2 BREVE HISTÓRICO: TRABALHO PARA SI E TRABALHO PARA OUTREM, 2.2.1 O PAPEL DA MOEDA, 2.3 DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DO TRABALHADOR, 2.3.1 DA IRRENUNCIABILIDADE, 2.4 DA RELAÇÃO DE EMPREGO, 3 TRANSAÇÃO E DIREITOS INDIVIDUAIS DO EMPREGADO, 3.1 DO PROBLEMA DA CONCESSÃO, 3.2 ANÁLISE DE ALGUNS JULGADOS, 3.3 REFLEXÕES FINAIS, CONCLUSÃO.


INTRODUÇÃO

O objetivo desta obra é verificar se o direito individual do empregado pode ser objeto de transação.

Ressalte-se, de início, que o tema abordado neste trabalho é controvertido, de sorte que não se pretende pôr fim à discussão, mas tão-somente somar um ponto de vista aos existentes.

Buscar-se-á analisar, primeiramente, o instituto da transação, de acordo com o Código Civil e Código de Processo Civil brasileiros. A doutrina, principalmente a civilista, será utilizada para esclarecer o conteúdo legal.

Feito isso, passar-se-á ao âmbito do direito trabalhista, iniciando-se pela própria história do trabalho, sucintamente. Assim, chegar-se-á ao princípio da proteção do empregado, bem como ao alcance de sua aplicabilidade e a questão da irrenunciabilidade.

Por fim, serão confrontadas as conclusões obtidas nos tópicos anteriores para que se chegue a uma síntese, o que não significa uma posição categórica.


1 DA TRANSAÇÃO

1.1 FORMAS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS

Situação é um fato ou fenômeno localizado temporal e espacialmente. Os serem vivem buscando assumir ou permanecer em determinadas situações. Situação é termo mais amplo e adequado do que bem, ou bem da vida (SANTOS, 1997, p. 3-4). Se for tomado, por exemplo, a vontade de um pai de ter o filho junto de si, após ter-se separado de sua mulher, sabe-se que a lei regula a quem caberá a guarda. Mas isso não necessariamente se enquadra na noção comum de bem.

Para CANDIDO RANGEL DINAMARCO (2002, p.36), todavia, a expressão bem da vida abrange todas as coisas, inclusive situações ou mesmo pessoas.

Sem se aprofundar mais nesta questão, para os fins que se seguem será utilizada a expressão situação em vez de bem, ou de bem da vida.

Em certos casos, as buscas são barradas por certos obstáculos, que podem consistir também em outras buscas. Nesse caso, ambas ou uma das buscas pode não ter êxito em razão da outra.

Não se prosseguirá mais nessa elocução, pois já é suficiente para visualizar a idéia de conflito, que é justamente essa colisão, essa convergência não harmônica de pelo menos dois interesses.

Interesse é uma exigência subjetiva de concretização de determinada situação, embora tenha relevância jurídica apenas se considerado sob um enfoque objetivo e, às vezes, exigindo até mesmo sua exteriorização.

É a objetividade que possibilita o tratamento legal do interesse, uma vez que não é possível ler a mente das pessoas para desvendar seu ânimo.

Nessa linha, nas palavras de MOACYR AMARAL DOS SANTOS (1997, p. 4), interesse consiste na "posição favorável à satisfação de uma necessidade".

CANDIDO RANGEL DINAMARCO (2002, p. 117) mostra o interesse como "uma relação de complementariedade entre a pessoa e o bem", de modo que, "nesse sentido objetivo, não é idéia que guarde necessária relação com as aspirações dos sujeitos, ou seja, com a postura mental destes em relação ao bem".

Com a criação do Estado, certos interesses passam a ser juridicamente protegidos, ou seja, garantidos pelo emprego da força, se assim for necessário, embora isso não signifique a completa extinção das possibilidades de existirem conflitos, mas apenas uma predição de como estes serão tratados pela força pública.

A propósito, ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CANDIDO RANGEL DINAMARCO (2002, p. 20) manifestam-se:

A existência do direito regulador da cooperação entre pessoas e capaz da atribuição de bens a elas não é, porém, suficiente para evitar ou eliminar os conflitos que podem surgir entre elas. Esses conflitos caracterizam-se por situações em que uma pessoa, pretendendo para si determinado bem, não pode obtê-lo – seja porque (a) aquele que poderia satisfazer a sua pretensão não a satisfaz, seja porque (b) o próprio direito proíbe a satisfação voluntária da pretensão (p. ex., a pretensão punitiva do Estado não pode ser satisfeita mediante um ato de submissão do indigitado criminoso).

Ao surgir o conflito, essa situação pode perdurar ou ser extinta. À extinção do conflito dá-se o nome de solução.

As formas de solução de conflitos consagradas pela doutrina (CINTRA; PELLEGRINI; DINAMARCO, 2002, p.21-22) são distribuídas em três grupos: 1) autodefesa; 2) autocomposição; e 3) heterocomposição.

1.1.1 AUTODEFESA

Ainda que não se conhecesse a história, por meio da lógica seria possível concluir que o homem precede o Direito e o próprio Estado.

Embora se diga que "onde há sociedade há direito" (ubi societas ibi ius), essa assertiva deve ser considerada com cautela.

Primeiro, porque, sua validade depende da idéias subjacentes aos termos sociedade e direito.

Conforme o sentido em que se empregam referidos termos, talvez não seja possível, nem temporalmente, nem espacialmente, determinar a coexistência dos fenômenos.

E mesmo no que toca ao sentido positivista das referidas expressões, haveria hodiernamente provas de que em todo o lugar onde existam homens exista o direito?

Nada obstante, entre aqueles que se aventuraram pelos meandros da razão para desvendar a origem do Direito e do Estado, pode-se citar, v.g., THOMAS HOBBES (2003, p.95), para quem:

Os homens iguais por natureza – Da igualdade deriva a desconfiança – Da desconfiança, a guerra – Fora dos estados civis, há sempre guerra de todos contra todos – Os inconvenientes de uma tal guerra – Numa tal guerra, nada é injusto – As paixões que levam os homens a tender para a paz.

O comportamento humano, assim descrito, retrata a busca natural da autoconservação e da satisfação de desejos pessoais sem as limitações coercitivas estatais.

Mesmo quando o Estado existe, mas é fraco e ausente, dá-se ensejo a este comportamento social.

A título de exemplo pode-se citar a seguinte passagem da obra de HENRI PIRENNE (1982, p.98), quando aborda os riscos que envolviam os mercadores viajantes até os fins do século XIII:

A princípio, os perigos de toda espécie que ameaçavam os mercadores obrigaram-nos a viajar em bandos armados, em verdadeiras caravanas. A segurança existia, unicamente, quando havia força e não podia existir sem agrupamento.

Esse quadro, contudo, continha um alto grau de instabilidade, mesmo com relação aos mais fortes, que estariam sujeitos a ataques de seus semelhantes a qualquer tempo.

Funda-se esse asserto no fato de que, não havendo o Estado, os homens poderiam tentar buscar satisfazer todos os seus desejos e, nesse caso, só seriam impedidos pela força física e a capacidade intelectual de eventuais oponentes.

Por meio dessa auto-satisfação, ou autodefesa, a solução dos conflitos surgidos se dá com a vitória do mais forte, ou mais arguto, em detrimento da integridade do derrotado, seja física, seja moral, incluindo até mesmo a morte.

Talvez em razão do medo e da insegurança constantes, os homens resolvem comprometer-se todos reciprocamente com a fixação de regras a serem seguidas para tornar possível seu convívio de maneira pacífica e harmônica.

Para isso, é criado o Estado, que recebe o monopólio do poder de resolver os conflitos –pela força, se necessário–, salvo em raras exceções.

Tomando-se, por exemplo, o atual ordenamento jurídico brasileiro, tem-se a prova da intenção do Estado no sentido de deter o monopólio da força, na medida em que tipifica a conduta de exercício arbitrário das próprias razões no art. 345 do Código Penal, para a qual é cominada detenção de 15 dias a 1 mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.

Em certas hipóteses, contudo, diante da constatação inafastável de que o Estado não é onipresente e onipotente, é permitido ao indivíduo a liberdade de agir por si próprio, como, por exemplo, no Código Civil: art. 1210, § 1.º; no Código Penal: art. 23, I, c.c. art. 24 e parágrafos, e art. 23, II, c.c. art. 25. Mas mesmo nestes casos há uma prévia avaliação do Estado no sentido de fixar o que é justo, e com base nisso permitir determinada conduta.

Em sede de direito do trabalho, um direito que ao empregado é dado exercer de ofício, desde que com razoabilidade, é o de greve, previsto no art. 9.º da Constituição da República e regulamentado pela Lei n.º 7.783, de 28 de junho de 1989.

1.1.2 AUTOCOMPOSIÇÃO

Com a criação do Direito, este entendido no sentido de um tipo de ordenamento normativo, que constitui um sistema completo, coerente e uno de normas com eficácia garantida por meio da força (BOBBIO, 1997), a autodefesa, como se viu, deixa de ser a regra e se torna a exceção como forma de solução de conflitos.

Uma forma de solução que já existia e continua existindo, e com base na qual o próprio Estado é criado, é a autocomposição.

A autocomposição é fundada no acordo de vontades, pressupondo pacificidade e liberdade.

É preferível à intervenção de terceiros, uma vez que expressará, no mais das vezes, o verdadeiro anseio dos envolvidos.

Essa afirmação se faz tendo em vista que, sendo o resultado da livre e espontânea vontade destes, será uma forma efetiva de solução com a seguinte vantagem: não haverá sentimento de injustiça em relação ao acordo firmado, pois "volenti non fit injuria", conforme lembra IMMANUEL KANT (2002, p.252).

A autocomposição é dividida por CANDIDO RANGEL DINAMARCO (2002, p.119-121) em unilateral e bilateral. Dentro daquela estaria a renúncia ou submissão. Nesta, a transação.

Em uma outra obra, este doutrinador leciona, juntamente com ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA e ADA PELLEGRINI GRINOVER (2002, p. 21):

Além da autotutela, outra solução possível seria, nos sistemas primitivos, a autocomposição (a qual, de resto, perdura residualmente no direito moderno): uma das partes em conflito, ou ambas, abrem mão do interesse ou de parte dele. São três as formas de autocomposição (as quais, de certa maneira, sobrevivem até hoje com referência aos interesses disponíveis): a) desistência (renúncia à pretensão); b) submissão (renúncia à resistência oferecida à pretensão); c) transação (concessões recíprocas). Todas essas soluções têm em comum a circunstância de serem parciais – no sentido de que dependem da vontade e da atividade de uma ou de ambas as partes envolvidas. (destaques do original)

Não se pode, entretanto, concordar totalmente com essa sistematização das formas de autocomposição.

Em primeiro lugar, quanto ao termo "desistência", tomado tecnicamente, tem significado tão-somente processual, de tal sorte que, mesmo se a pretensão for extinta definitivamente, o conflito poderá subsistir. Vide, por exemplo, a perempção (art. 267, V, Código de Processo Civil) e a prescrição (art. 269, IV, Código de Processo Civil), que apenas determinam o posicionamento estatal diante de um conflito ao qual é chamado a intervir. Assim, a desistência pode ser apenas indício de que o conflito cessou, e não representar a própria autocomposição.

Vale lembrar que a desistência não se confunde com a renúncia. O legislador do Código de Processo Civil deixa isso bem claro ao prever esta no art. 269, V e no art. 794, III, e aquela no art. 267, VIII.

O mesmo se diga em relação à "submissão", pois, se tomada no sentido de "reconhecimento da procedência do pedido", é apenas fenômeno processual que autoriza o juiz decidir a favor de quem formulou o pedido (art. 269, II, Código de Processo Civil).

Entretanto, se a submissão consistir na própria satisfação pelo réu da prestação que lhe é exigida, aí sim estará terminado o conflito. Se execução estiver em curso, será extinta nos termos do art. 794, I, Código de Processo Civil. Já o pedido em sede de processo de conhecimento não poderá ser apreciado, em razão de carência da ação (art. 267, VI, Código de Processo Civil).

A renúncia é o ato de despojar-se do direito. É uma "declaração unilateral de vontade com que o titular de um direito retira-se da respectiva relação jurídica" (CUNHA, 2003, p. 222).

1.1.3 HETEROCOMPOSIÇÃO

Como visto no tópico anterior, embora a autocomposição seja a forma ideal de solução de conflitos, apresenta o inconveniente de depender da vontade das partes, bem como da confiança recíproca, o que nem sempre ocorre.

Com a criação do Estado, e conseguinte monopolização da força, cabe a ele resolver os conflitos quando não há acordo entre dois indivíduos.

Conquanto faça valer um ideal de justiça preestabelecido legalmente, a composição heterogênea normalmente irá satisfazer somente a uma das partes do conflito, pois aquela a quem for negada a situação perseguida muito provavelmente não cederá de bom grado.

Talvez sejam os referidos inconvenientes da autocomposição a que ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CANDIDO RANGEL DINAMARCO (2002, p.21-22) se referem como sendo seus males:

Quando, pouco a pouco, os indivíduos foram-se apercebendo dos males desse sistema [autocomposição], eles começaram a preferir, ao invés da solução parcial dos seus interesses (parcial = por ato das próprias partes), uma solução amigável e imparcial através de árbitros, pessoas de sua confiança mútua em quem as partes se louvam para que resolvam os conflitos. Essa interferência, em geral, era confiada aos sacerdotes, cujas ligações com as divindades garantiam soluções acertadas, de acordo com a vontade dos deuses; ou aos anciãos, que conheciam os costumes do grupo social integrado pelos interessados. E a decisão do árbitro pauta-se pelos padrões acolhidos pela convicção coletiva, inclusive pelos costumes. Historicamente, pois, surge o juiz antes do legislador.

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Ao Estado cabe a solução imposta dos conflitos. Pouco importa se não agradar às partes.

Se o conflito versar sobre direito a uma prestação, o Estado substituirá a própria conduta da parte que se nega a prestar. Se estiver em jogo uma incerteza, ainda que as partes não queiram, juridicamente valerá a declaração do Estado.

Certas relações jurídicas, só ele pode constituir, modificar ou extinguir (ex. casamento.), embora dependa, de certo modo, de uma conduta dos particulares.

Nos casos em que for necessário utilizar a força, o exercício desta será indelegável, salvo raras exceções.

Assim, historicamente, com o fortalecimento do Estado, ele

[...]impõe-se sobre os particulares e, prescindindo da voluntária submissão destes, impõe-lhes autoritativamente a sua solução para os conflitos de interesses. À atividade mediante a qual os juízes estatais examinam as pretensões e resolvem conflitos dá-se o nome de jurisdição.

[...]

As considerações acima mostram que, antes de o Estado conquistar para si o poder de declarar qual o direito no caso concreto e promover a sua realização prática (jurisdição), houve três fases distintas: a) autotutela; b) arbitragem facultativa; c) arbitragem obrigatória. A autocomposição, forma de solução parcial dos conflitos, é tão antiga quanto a autotutela. O processo surgiu com a arbitragem obrigatória. A jurisdição, só depois (no sentido em que a entendemos hoje).

É claro que essa evolução não se deu assim linearmente, de maneira límpida e nítida; a história das instituições faz-se através de marchas e contramarchas, entrecortada freqüentemente de retrocessos e estagnações, de modo que a descrição acima constitui apenas uma análise macroscópica da tendência no sentido de chegar ao Estado todo o poder de dirimir conflitos e pacificar pessoas. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2002, p.23)

1.1.4 ARBITRAGEM

Pode causar estranheza o fato de a arbitragem não ter sido mencionada no tópico da heterocomposição.

Porém, se se pensar bem neste instituto, será possível verificar que não se apresenta como mecanismo puro de heterocomposição.

Tratando-se de litígio que verse apenas sobre uma crise de certeza, uma dúvida quanto a uma relação jurídica, poderá ser dito que a arbitragem será mecanismo de heterocomposição na medida em que alguém alheio às partes envolvidas no conflito decide e declara a situação.

Mas, indiretamente, esta solução foi baseada numa autocomposição preestabelecida, ou concordância entre as partes no sentido de submeter o conflito, ou a questão, ao árbitro.

Podem as partes até mesmo ter de bom grado acordado que se submeteriam à decisão deste, ainda que se tratasse de direito a uma prestação. E mais ainda. Pode até ocorrer de a prestação ser entregue espontaneamente. Ora. Tudo isso é autocomposição.

E, no Brasil, quando for necessário o emprego da força, a questão deverá ser submetida ao Estado, mais especificamente ao Poder Judiciário, conforme se depreende, por exemplo, dos parágrafos 2.º e 3.º do art. 22 da Lei n.º 9.307, de 23 de setembro de 1996.

Desse modo, também sob este aspecto, a arbitragem não pode ser considerada heterocomposição.

Isso que foi dito acerca da arbitragem pode levar, em última análise, até mesmo a afirmar que a própria jurisdição tem fundamento em uma autocomposição prévia, quando é firmado o ordenamento jurídico. Mas essa tese necessitaria de mais linhas para ser defendida, e fugiria ao objeto deste trabalho.

1.2 CONCEITO DE TRANSAÇÃO

De acordo com o que foi visto até aqui, a transação é uma modalidade de autocomposição.

Esse parece ser o aspecto preponderante do conceito do instituto, tanto que aparece no primeiro artigo que dele trata no Código Civil – art. 840.

Sobre ela, CARVALHO DE MENDONÇA (1908, p.460-461) deixou escrito há uns cem anos:

Technicamente o vocábulo encerra um sentido lato e outro mais restricto, que é o objecto que nos vae occupar.

No primeiro sentido comprehende o compromisso e o antigo pacto de juramento – pactum de jurejurando extrajudiciale – no sentido do direito romano e abolido dos costumes modernos. É então toda e qualquer accomodação entre as partes sobre um direito litigioso ou incerto que ella tende a afixar: é o que bem exprime o termo jurídico allemão Auseinandersetzung.

No sentido restricto, é essa mesma accomodação, mas revestida de característicos accentuados especiaes. É um acto jurídico bilateral, pelo qual, fazendo recíprocas concessões, as partes extinguem obrigações tambem recíprocas.

CLÓVIS BEVILÁQUA (1955, p.144) a define como "um ato jurídico, pelo qual as partes, fazendo-se concessões recíprocas, extinguem obrigações litigiosas ou duvidosas".

Elemento essencial da transação é a reciprocidade de concessões. Quanto a este aspecto, merecem transcrição as palavras de CARVALHO DE MENDONÇA (1908, p.462):

As concessões reciprocas das partes não implicam proporcionalidade no dado, retido, ou promettido. Ellas podem consistir em satisfazer-se em parte a razão do litigio ou da duvida, ou renuncial-a em parte; reconhecel-a em parte e noutra não; em renuncial-a ou satisfazel-a in totum, uma vez que haja reciprocidade.

Ordinariamente, si não sempre, as concessões contêm renuncia, desistencia de direitos, córtes em pretenções, como meios de poderem as partes chegar a um acordo. Si tal renuncia não tem o carater de reciprocidade, ou ha doação, ou ha remissão de divida; nunca, porém, transacção. Renuncia sem recompensa não é transacção; é liberalidade.

A reciprocidade não é apenas a presença de duas concessões contrapostas. Deve-se ter presente que uma é causa da outra e vice-versa. Mas essa reciprocidade, de acordo com a lição acima, não implica necessariamente proporcionalidade.

Como analogia, imagine-se um contrato de compra e venda em que A se obriga a pagar R$ 300,00 pelo relógio que B oferece. A obrigação de pagar certa quantia em dinheiro só existe em razão da obrigação correlata de transferir o domínio da coisa. Isso, definitivamente, não é a mesma coisa que dois contratos de doação.

Outro ponto de destaque da transação é seu efeito extintivo de obrigações, que, para CARVALHO DE MENDONÇA (1908, p.463), está relacionado à parte do crédito renunciada por seu titular:

Ora, a transacção não tem em vista crear nenhuma obrigação, nem substituir uma que surge á outra que se extingua e sim extinguir essas obrigações por uma renuncia da parte do sujeito activo do direito de credito.

Note-se que o efeito extintivo atribuído à transação continua sendo ressaltado até os dias de hoje, consoante se observa em ÁLVARO VILLAÇA DE AZEVEDO (2001, p.192), embora a mencione como contrato e não simplesmente como ato.

Porém, se nem sempre há renúncia, conforme afirma o próprio CARVALHO DE MENDONÇA, haveria sempre o efeito extintivo?

E se, em vez de renunciar a parte do crédito, o credor houvesse entregado certo bem ao devedor para convencê-lo a cumprir a obrigação? Deve ser lembrado que concessão não significa a mesma coisa que renúncia. Nesse caso, a extinção só ocorreria com a entrega da prestação, ou seja, com o pagamento, e não com a transação.

E se há uma relação duvidosa, que se define pela transação, haveria extinção? Somente se o acordo se firmasse aquém do total do crédito. Se as partes solucionassem relação duvidosa, mas acordando em valor superior ao crédito efetivo, estar-se-ia, de fato, criando obrigação.

Além disso, em caso de haver realmente dúvida sobre determinada relação jurídica, ficaria um tanto complexa uma renúncia sobre algo que não se sabe se existe. Seria uma renúncia condicional, cuja condição seria justamente a existência da coisa. Isso porque, não existindo o objeto da renúncia, essa não pode existir (ato jurídico requer objeto).

Vale lembrar que a dúvida ou a litigiosidade representa um óbice à extinção da obrigação, de tal sorte que, sob esse enfoque pode-se dizer que a transação visa a retirar esse impasse, mas com o fim último de extinguir a obrigação. Aqui, a transação não extingue, mas possibilita a extinção.

Acresça-se que, se o próprio CARVALHO DE MENDONÇA menciona que se pode prometer algo para que se chegue a um acordo, pergunta-se: a promessa não obriga?

Ainda dentro do conceito de transação, parece ser entendimento dominante a consideração de que a res dubia seria elemento necessário à transação, conforme lição de OROSIMBO NONATO (1971, p. 296-308).

Entre os juristas trabalhistas, v.g., ARNALDO SÜSSEKIND (2000, 221), e EDUARDO GABRIEL SAAD (1996, p.56) também entendem ser imprescindível a incerteza das relações.

Porém, a transação não é utilizada somente para pôr fim em relações duvidosas. Ela serve também às relações simplesmente litigiosas. Assim, a res dubia não é essencial.

Ora. Se transação se usa para extinguir relação litigiosa ou duvidosa, tem-se que é aplicável para: a) relação litigiosa e duvidosa; b) relação litigiosa; e c) relação duvidosa.

Ainda que se considere res dubia como elemento da transação, ela só o seria em a e c, mas não em b.

Dizer que só se aplica transação a relações duvidosas é retirar substancial utilidade do instituto.

Os que isso fizeram, perceberam, embora sem admitir, o seu erro, e, para contornar esse empecilho, mudaram o caráter da res dubia, como OROSIMBO NONATO (1971, p. 302):

O elemento tradicional da res dubia pode ser mantido, dando-se-lhe determinado entendimento, assinalando-se-lhe o caráter eminentemente subjetivo e considerando-o ínsito na transação, um elemento presumido, menos no caso de lide temerária.

Com esse significado atribuído à coisa duvidosa, ela poderia consistir, simplesmente, no "temor da lide, de seus ônus e incômodos" (NONATO, 1971, p. 302).

Se a dúvida dissesse respeito ao resultado de uma demanda (NONATO, 1971, p. 302), não seria necessário ser mencionada como elemento, pois nunca se sabe como o magistrado irá julgar uma lide, o que é corroborado pelo princípio do livre convencimento (a menos que alguém soubesse ler sua mente).

Nada obstante, não parece ser esta a dúvida, ou o objeto da dúvida, que mencionaram CLOVIS BEVILAQUA e CARVALHO DE MENDONÇA no início deste tópico.

Enfim, quando há um conflito, normalmente ambas as partes entendem estar corretas. Por isso, para estes casos, nenhuma delas quer se submeter à outra. Mas quando esta submissão não é gratuita, ou seja, quando há uma contraprestação, isso pode mudar o ânimo do indivíduo para fazê-lo acordar o fim da controvérsia.

Demonstra-se, destarte, a utilidade da transação como instrumento negocial ligado mais à extinção da controvérsia do que da obrigação.

1.3 BREVES NOTAS SOBRE A TRANSAÇÃO NO DIREITO ROMANO

Segundo MARIA HELENA DINIZ (1996, p. 309), "no direito romano a transação destinava-se a extinguir um direito em litígio, por ser uma convenção em que alguém renunciava um direito em litígio, recebendo, porém, uma retribuição".

A autora (DINIZ, 1996, p.309) menciona, ainda, o seguinte trecho de ULPIANO, extraído do Digesto, Liv. II, Tít XV, frag. 1, que já era citado por CLOVIS BEVILAQUA (1955, p.144): "Qui transigit, quase de re dubia et lite incerta neque finita transigit." Eis a tradução desse fragmento feita por DARCY ARRUDA MIRANDA (1995, p.103): "Quem transige o faz como se se tratasse de assunto duvidoso e de litígio incerto e não terminado."

Um princípio importante previsto desde o Código de JUSTINIANO, conforme MARIA HELENA DINIZ (1996, p.309), era a necessidade de concessões recíprocas.

Mister salientar que a transação, como forma de solução de litígio, não se confunde com as formas de solução de obrigações por acordo de vontades como a immaginaria solutio do direito quiritário e o contrarius actus do direito clássico, que recebia proteção jurídica do pretor: o pactum de non petendo. (MARKY, 1995, p. 149)

1.4 ANÁLISE DA TRANSAÇÃO NO CÓDIGO CIVIL

Art. 840 – É lícito aos interessados prevenirem, ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas.

Essa redação é idêntica à contida no art. 1.025 do Código Civil de 1916, mas, embora a transação continue a figurar no Livro do Direito das Obrigações, foi deslocada do Título "Dos Efeitos das Obrigações" para o "Das Várias Espécies de Contrato".

Há muito tempo já existe a controvérsia quanto ao caráter contratual da transação, conforme assinala CLOVIS BEVILAQUA (1955, p.144):

Para o Código Civil, a transação não é, propriamente, um contrato. Ainda que a lição da maioria dos Códigos seja em sentido contrário, o certo é que o momento preponderante da transação é o extintivo de obrigação. Era a lição de Teixeira de Freitas, seguida por Carlos de Carvalho, que encontra apoio nos anotadores franceses do Código Civil alemão. Depois de assinalarem que o Landrecht prussiano e o Código Civil austríaco se ocuparam da transação entre os modos de extinguir obrigações, ponderam: ‘O Código alemão afastou-se desses precedentes germânicos, que, teòricamente, apresentam, incontestàvelmente, vantagens sobre os outros’.

A polêmica que há acerca da natureza da transação decorre não do seu estudo em si, mas do próprio conceito de contrato.

Segundo ORLANDO GOMES (2002, p. 440), a corrente que defende o contrato como negócio jurídico destinado tão-somente a criar obrigações está em decadência. Para estes, a transação é apenas forma de pagamento lato sensu

Porém, atualmente se entende que os negócios jurídicos bilaterais modificativos ou extintivos de obrigações também seriam contratos. Assim, para essa corrente a transação seria contrato, indiscutivelmente (GOMES, 2002, p. 440).

Além disso, ainda de acordo com ORLANDO GOMES (2002, p. 440), as concessões recíprocas implicariam num caráter constitutivo da transação, corroborando sua natureza contratual.

Contudo, sob um outro enfoque, a transação, além de ser um contrato em si, pode ser constituída por um ou mais contratos, na seguinte linha de raciocínio: as concessões recíprocas podem consistir em renúncia, mas nada impede que consistam em obrigação, quando, por exemplo, a prestação não puder ser entregue imediatamente. Esta obrigação decorre de um contrato, uma vez que depende da vontade de ambas as partes. Assim, tem-se que: a) este contrato é apenas uma concessão; b) a concessão é elemento da transação, e não a transação em si; c) Portanto, este contrato não é a transação, mas apenas a integra. O braço de uma pessoa não é a pessoa.

Art. 841. Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação.

Direito patrimonial é o "suscetível de avaliação pecuniária" (CUNHA, 2003, p.97).

O advérbio "só" do dispositivo pode levar a crer que os direitos patrimoniais de caráter público não sejam passíveis de transação.

Porém, até mesmo tributos podem sê-lo, conforme dispõe o art. 156, III e art. 171 do Código Tributário Nacional, verbis:

Art. 156. Extinguem o crédito tributário:

[...]

III – a transação;

[...]

Art. 171. A lei pode facultar, nas convenções que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e conseqüente extinção de crédito tributário.

YOSHIAKI ICHIHARA (2000, p. 162-163) posiciona-se favoravelmente à transação em sede de direito tributário, e menciona FÁBIO FANNUCHI também no mesmo sentido. Contrariamente se manifesta EDUARDO MARCIAL FERREIRA JARDIM (1998, p. 402-404).

Apesar da controvérsia, a Lei n.º 9.469, de 10 de julho de 1997, que regulamenta o inciso VI do art. 4.º da Lei Complementar n.º 73/93, também demonstra a possibilidade de a Fazenda Pública transigir.

Feita essa ressalva, vale salientar os esclarecimentos de CLOVIS BEVILAQUA (1955, p. 153):

Não é lícito transigir sobre questões relativas ao estado das pessoas, legitimidade do matrimônio, pátrio poder, relações pessoais entre cônjuges, filiação. As vantagens, porém, oriundas dessas relações, desde que sejam de ordem patrimonial, podem ser objeto de transação.

Ressalte-se que, embora os direitos do trabalhador sejam em sua maioria patrimoniais, isso não é o bastante para permitir a transação (Infra 2.3 e 2.3.1).

Verifica-se que o art. 841 merece algumas críticas.

Se direitos de caráter público podem ser objeto de transação, não há porque a restrição aos de caráter privado.

Quanto à expressão "direitos patrimoniais", também parece sem efeito, uma vez que, segundo os ditames da razão não se cogita de transacionar direitos não patrimoniais: o filho não deixa de ser filho por acordo de vontades; o nome da pessoa física não se altera por acordo; o estado marital; o direito a alimentos etc.

Por fim, ainda que se tentasse alegar que o dispositivo faria referência a "direitos disponíveis", estar-se-ia dizendo o óbvio, pois não se pode dispor do indisponível...

Art. 842. A transação far-se-á por escritura pública, nas obrigações em que a lei o exige, ou por instrumento particular, nas em que ela o admite; se recair sobre direitos contestados em juízo, será feita por escritura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz.

A forma prescrita para a transação é requisito de validade, a teor do art. 104, caput e inc. III do Código Civil, de sorte que sua não observância acarreta nulidade, conforme art. 166, inc. IV, também do Código Civil.

Segundo CARVALHO DE MENDONÇA (1908, p. 469), a transação pode ser judicial ou extrajudicial, conforme verse sobre direitos contestados em juízo ou não respectivamente.

Como se depreende do dispositivo supra, mesmo em se tratando de direitos contestados em juízo, pode ser feita a transação por meio de escritura pública. Além disso, tanto no Código Civil anterior –art. 1028 – como no atual, não se exige que a escritura pública seja homologada pelo juiz (Infra 1.5.1).

Porém, MARIA HELENA DINIZ (1995, p. 674) entende que mesmo a escritura pública deve ser levada à homologação judicial e cita diversas referências nesse sentido: "RT 484:216, 477:245, 413:193, 411:161, 418:343, 497:122, 550:110 E 580:187".

Art. 843. A transação interpreta-se restritivamente, e por ela não se transmitem, apenas se declaram ou reconhecem direitos.

Assevera CARLOS MAXIMILIANO (1990, p. 350) que "devem ser expressas as disposições de que resulte, fiança ou garantia, renúncia, cessão, transação, e interpretam-se estritamente como os contratos benéficos".

Pois, bem. Não simplesmente por se tratar de transação, mas antes, por poder implicar renúncia, conforme aduz CLOVIS BEVILAQUA (1955, p. 146), deve-se seguir essa regra geral.

Acerca do caráter meramente declaratório, a doutrina não é pacífica. Verifica-se que, há mais de meio século, esse fato já constava entre os comentários de CLOVIS BEVILAQUA (1955, p. 146) ao Código Civil de 1916.

Hodiernamente a discórdia continua. A propósito, SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003, p. 307) anota que "entendendo-se o instituto como um contrato, difícil defender seu aspecto simplesmente declaratório."

Nada obstante, a Lei n.º 10.406/02 manteve a redação do dispositivo do Código de 1916, que já demonstrava claramente o posicionamento do legislador.

WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO (1989, p. 310) ressalta bem esta polêmica:

A grande maioria dos Códigos contemporâneos considera a transação como contrato, atribuindo-lhe, por isso, efeitos translativos de direitos. Assim a conceituamos a fls. 142, com apoio na lição de Afonso Fraga.

O Código Civil Brasileiro, entretanto, afastando-se dessa orientação, inclui a transação entre os meios extintivos de obrigações, com efeitos meramente declarativos. Aplaudem essa orientação Clóvis e M. I. Carvalho de Mendonça.

Mostra-se complexo esse aspecto acerca do caráter da transação.

Se for tomado, por exemplo, a res dubia, ela nada mais é do que a incerteza jurídica acerca de quem deve assumir ou permanecer em determinada situação. Assim, a incerteza é apenas quanto à existência e limites de determinado direito (sendo mais de um direito, haverá mais de uma transação). Se um determinado bem está na posse de A e surge uma controvérsia com B e, por meio da transação, A reconhece que o bem deveria, de fato, estar na posse de B, por ser este seu proprietário, mas exige uma recompensa (reciprocidade), o bem estará sendo restituído a B. Ocorre que, embora alguém possa apontar a restituição do bem como sendo "transferência de direito", na verdade o direito sobre o bem sempre foi de B, ou seja, não houve transferência, mas mero reconhecimento.

Ainda que a uma das concessões consista na transferência de um direito, esta foi apenas utilizada para que se chegasse a um acordo quanto ao reconhecimento ou declaração da relação controvertida.

Nesse sentido, fica claro o caráter declaratório e recognitivo da transação, tornando defensável o posicionamento de CLOVIS BEVILAQUA (1955, p. 146).

Poder-se-ia, ainda, argumentar que se fosse permitido criar mais obrigações ou situações jurídicas por meio da transação (caráter constitutivo), estar-se-ia com isso dando azo à criação de mais situações passíveis de conflitos, que por sua vez seriam objetos transacionáveis, e assim por diante, numa progressão infinita...

Mas, como foi visto, pode ser criada obrigação na transação, em troca do reconhecimento ou declaração da relação controvertida. Não parece razoável o argumento de que com isso se estaria dando azo ao surgimento de mais conflitos. Ora. Toda e qualquer relação jurídica obrigacional está sujeita a controvérsias. Mesmo a relação nos moldes em que ficou estabelecida na transação pode tornar-se novamente controversa se, por exemplo, o devedor se negar a cumprir seu papel.

Art. 844. A transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervierem, ainda que diga respeito a coisa indivisível.

§1.º Se for concluída entre o credor e o devedor, desobrigará o fiador.

§2.º Se entre um dos credores solidários e o devedor, extingue a obrigação deste para com os outros credores.

§3.º Se entre um dos devedores solidários e seu credor, extingue a dívida em relação aos co-devedores.

O caput apresenta o princípio da relatividade dos contratos, assim apresentado por SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003, p. 377):

A regra geral é que o contrato só ata aqueles que dele participaram. Seus efeitos não podem nem prejudicar, nem aproveitar a terceiros. Daí dizemos que, com relação a terceiros, o contrato é res inter alios acta, aliis neque nocet neque potest.

Com efeito, ninguém pode negociar acerca de bens alheios, salvo quando autorizado por lei.

Os parágrafos, de acordo com CLOVIS BEVILÁQUA (1955, p. 149), seriam exceções ao princípio estabelecido no caput:

a primeira, como conseqüência do princípio de que, extinta a obrigação principal, extingue-se igualmente, a acessória; as duas seguintes, como aplicações do princípio da solidariedade.

Apesar do posicionamento deste civilista, os parágrafos se apresentam mais como regras autônomas, e não como simples exceções ao disposto no caput.

Art. 845. Dada a evicção da coisa renunciada por um dos transigentes, ou por ele transferida à outra parte, não revive a obrigação extinta pela transação; mas ao evicto cabe o direito de reclamar perdas e danos.

Parágrafo único. Se um dos transigentes adquirir, depois da transação, novo direito sobre a coisa renunciada ou transferida, a transação feita não o inibirá de exercê-lo.

São deveras coerentes os comentários de CLOVIS BEVILAQUA acerca deste dispositivo, pois, se antes foi dito que pela transação não há transferência, pareceria contraditória a menção feita à "coisa transferida à outra parte".

Essa transferência não é realizada pela transação, mas, segundo o civilista, apenas se apresenta como uma remuneração dada pelo acordo firmado. E acrescenta (BEVILAQUA, 1955, p. 151):

É certo, entretanto, que o Êsboço [Projeto do Código de 1916, elaborado por TEIXEIRA DE FREITAS] denomina transferência não sòmente a coisa dada em retribuição do acordo, como acaba de ser dito, mas, ainda, a restituição ou entrega da coisa por um dos transigentes ao outro, que a ela se julga com direito. Mas, neste último caso, não há mais que renúncia.

CLOVIS BEVILAQUA, desta forma, confirma seu posicionamento, ou seja, para ele não se opera transmissão de direitos por meio da transação. Esta é instrumento de extinção de obrigação e, em última análise, de conflitos.

Os direitos eventualmente transmitidos não são o objeto da transação.

Art. 846. A transação concernente a obrigações resultantes de delito não extingue a ação penal pública.

Vale lembrar o disposto no art. 935 do Código Civil, verbis:

Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Este dispositivo ressalta o princípio da independência das instâncias civil e criminal.

Embora o ilícito civil possa afetar tão-somente o indivíduo ofendido, o crime lesiona toda a sociedade.

Porém, tratando-se de infração penal de menor potencial ofensivo, sujeita à ação penal privada ou pública condicionada, a transação quanto à matéria civil acarretará renúncia ao direito de queixa ou representação, conforme art. 74, parágrafo único, da Lei n.º 9.099/95.

A infração penal de menor potencial ofensivo está definida no art. 61 da Lei n.º 9.099/95, verbis:

Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.

Art. 847. É admissível, na transação, a pena convencional.

Da mesma forma que pode haver remuneração pelo acordo firmado, consoante demonstrado supra na análise do art. 845 do Código Civil, também é admissível a previsão de cláusula penal no contrato da transação.

Este dispositivo só se justificava na vigência do Código Civil anterior, quando a transação se mostrava mais pela função do que pela substância, ou seja, mais como instrumento de extinção de obrigação do que como uma figura contratual típica.

A este respeito, eis a justificativa de CLOVIS BEVILAQUA (1955, p. 152) na vigência do diploma civil de 1916:

Nos sistemas, em que a transação é considerada forma especial de contrato, pareceria inútil uma disposição como esta, porque é mera aplicação do direito comum. Nos sistemas, porém, em que a transação é simples modo de extinguir obrigações, não é demais declarar que ela admite o refôrço da cláusula penal, porque esta não costuma andar ligada aos modos de pagamento.

Art. 848. Sendo nula qualquer das cláusulas da transação, nula será esta.

Parágrafo único. Quando a transação versar sobre diversos direitos contestados, independentes entre si, o fato de não prevalecer em relação a um não prejudicará os demais.

Para cada litígio deve corresponder uma transação. Havendo mais de um, haverá mais de uma transação.

As cláusulas a que se refere o caput são as elementares, e não as acidentais do negócio jurídico, de tal sorte que, se, por exemplo, for nula a cláusula que estabelece cláusula penal, a transação não será nula.

Ocorrerá a figura prevista no parágrafo único quando for utilizado um único instrumento para transação de direitos diversos.

Art. 849. A transação só se anula por dolo, coação, ou erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa.

Parágrafo único. A transação não se anula por erro de direito a respeito das questões que foram objeto de controvérsia entre as partes.

Trata-se de aplicação das regras gerais dos negócios jurídicos, previstas no Capítulo IV do Título I do Livro III da Parte Geral do Código Civil.

Nos termos do art. 145 do Código, o negócio jurídico é anulável somente quando o dolo foi causa de sua existência. Se o dolo for acidental, só obrigará ao ressarcimento das perdas e reparação dos danos causados, conforme art. 146. Segundo este mesmo dispositivo, é acidental quando, "a seu despeito [do dolo], o negócio seria realizado, embora de outro modo".

Quanto à coação, o art. 151 e seguintes do Código Civil fornecem os critérios para que se verifique se é ou não caso de invalidade relativa da transação.

Erro, por sua vez, é conhecimento equivocado, ao passo que ignorância é ausência de conhecimento. No erro, a pessoa representa algo em sua mente. Porém, este algo não coincide com a realidade. Na ignorância, nada é representado.

Segundo o art. 138 do Código Civil c.c. art. 139, III, o erro de direito pode tornar negócio anulável se for o único ou principal motivo deste e não implicar recusa à aplicação da lei.

Está de acordo com o art. 3.º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual "ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece."

Art. 850. É nula a transação a respeito do litígio decidido por sentença passada em julgado, se dela não tinha ciência algum dos transatores, ou quando, por título ulteriormente descoberto, se verificar que nenhum deles tinha direito sobre o objeto da transação.

CLOVIS BEVILAQUA (1955, p. 154) apresenta a seguinte hipótese de aplicação da primeira parte do dispositivo:

Para que se dê a hipótese da nulidade da transação por já estar o litígio decidido por sentença passada em julgado, imaginam os autores que, depois de ter ganho o processo, morre uma das partes, e o seu herdeiro, ignorando a sentença judiciária, transige com a parte adversa(...) Há erro substancial, que torna ineficaz a transação. O Código, porém, não a considera simplesmente anulável, e, sim, absolutamente nula, porque, se foi celebrada por erro, não tinha objeto.

Pode-se citar ainda o seguinte exemplo: O indivíduo A obteve título executivo judicial em face de B, que foi revel no processo de conhecimento. Porém, A, não contente com a quantia que lhe foi reconhecida no título, tenta fazer acordo com B com o intuito de formar outro título executivo. Isso porque B não tinha conhecimento do processo. Tendo em vista que ambos os títulos versam sobre a mesma obrigação, e que B não teve conhecimento da sentença, a transação será nula.

No que tange à descoberta ulterior de título que demonstra que ambos os transatores não tinham direito sobre o objeto da transação, a nulidade decorre simplesmente do fato de que, devido ao caráter meramente declaratório ou recognitivo da transação, esta somente se aplica a algo existente, segundo CLOVIS BEVILAQUA (1955, p.154-155).

Com relação à aplicabilidade da transação estar adstrita à objeto existente, não significa a impossilidade de dois indivíduos reconhecerem, por meio dela, inexistência de um direito. Aqui fica evidente o caráter declaratório. De outro lado, revela-se que o que deve existir como objeto é o litígio ou a res dubia, mas não um direito em si.

1.5 ANÁLISE DA TRANSAÇÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

1.5.1 DIREITOS CONTESTADOS EM JUÍZO

Em rápida passagem, PONTES DE MIRANDA (1954, p. 37) defende ser a transação instituto de direito material, e que não se processualiza. O que haveria processualmente, segundo ele, seria desistência, ao menos parcial.

ORLANDO GOMES (2002, p.442), entretanto, afirma que a maioria da doutrina entende ser a transação, ao mesmo tempo, ato civil e processual.

Embora haja este entendimento, a transação por termo nos autos importa extinção com julgamento de mérito, e não sem julgamento, o que ocorreria se, de fato, houvesse apenas desistência:

Art. 269. Extingue-se o processo com julgamento de mérito:

[...]

III – quando as partes transigirem;

Pressupõe-se, aqui, obviamente, a existência de processo em curso, e que a transação deverá ser feita por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz, conforme art. 842 do Código Civil.

Assim, constituirá título executivo com base no art. 584, III, do Código de Processo Civil, verbis:

Art. 584. São títulos executivos judiciais:

[...]

III – a sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que verse matéria não posta em juízo;

Sendo a transação resultado da vontade das partes, não lhes restará interesse recursal quanto ao objeto transacionado se a sentença simplesmente a homologar.

Não cabendo mais recurso, a sentença passará em julgado, nos termos do art. 467, verbis:

Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.

Surgirá, assim, pressuposto processual negativo (art. 301, VI, do Código de Processo Civil), impedindo apreciação do mérito de futuras ações cobertas pelo manto da coisa julgada (art. 267, IV, do Código de Processo Civil).

Ressalte-se, contudo, que a sentença que homologa a transação não está sujeita à ação rescisória, mas sim aos mecanismos aplicáveis aos atos jurídicos em geral, conforme art. 486, verbis:

Art. 486. Os atos jurídicos, que não dependem de sentença, ou em que esta for meramente homologatória, podem ser rescindidos, como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil.

Se, todavia, em vez de homologar, a sentença utilizar a transação como fundamento para decidir, caberá ação rescisória, nos termos do art. 485, VIII, do Código de Processo Civil, verbis:

Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

[...]

VIII – houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;

Cogita-se a aplicação desse dispositivo, por exemplo, na hipótese de transação efetivada por meio de instrumento particular que não constitua título executivo.

Imaginando que uma das partes não cumpra o acordo, a outra poderá ingressar em juízo para formar o título executivo, apresentando o instrumento do contrato como prova de suas alegações. Por sua vez, o juiz, com base nesse documento, profere sentença de mérito condenando o réu a cumprir o acordo. Se, após a sentença transitar em julgado, for descoberto fundamento para invalidar a transação, o remédio cabível será ação rescisória, com fundamento no referido art. 485, VIII, do Código de Processo Civil, e não ação anulatória baseada com base no art. 486.

Parece ser o caso do seguinte julgado:

Transação extrajudicial. Inaplicabilidade do art. 269, III, do CPC. Esse dispositivo aplica-se apenas às transações judiciais, em que as partes no transcorrer da lide conciliam-se e o juiz toma por termo a conciliação, ou profere a sentença, extinguindo o processo após o cumprimento da avença. Não se aplica às transações extrajudiciais, ocorridas antes da abertura do processo litigioso. Estas - as transações extrajudiciais - devem ser invocadas como argumento de defesa, como prova documental do pagamento ou do cumprimento da obrigação que se discute no processo. A decisão que se segue, em razão da transação extrajudicial, será de procedência ou de improcedência do pedido, nos termos do art. 459 do CPC.

(TRT 2.ª Região, 9.ª Turma, Recurso Ordinário n.º 22354-2002-902-02-00-0, ano 2002, Rel. LUIZ EDGAR FERRAZ DE OLIVEIRA, j. 09/09/2002)

De acordo com o que foi exposto até aqui, não parece correto o entendimento de GEOVANY JEVEAUX, MARCOS PINTO DA CRUZ e RICARDO AREOSA (2002, p.26), segundo os quais:

Se a transação foi realizada extrajudicialmente, a rescisão deverá ser proposta através da ação anulatória, de que trata o art. 486 do CPC. Se judicial, pela ação rescisória, de que trata o art. 485, VIII, do mesmo diploma.

Ainda tratando de direitos contestados em juízo, consoante visto supra, tópico 1.4, no comentário ao art. 842 do Código Civil, pode-se fazer a transação por meio de escritura pública.

Nesse caso, ela valerá como título executivo, mas extrajudicial, com base no art. 585, II, verbis:

Art. 585. São títulos executivos extrajudiciais:

[...]

II – a escritura pública [...]

Com isso, não haverá mais razão de prosseguir o processo, que será extinto sem exame de mérito em virtude de carência superveniente consistente em ausência de interesse processual (art. 267, VI, do Código de Processo Civil).

Mas nesse caso não terá força de coisa julgada, propriamente dita, embora os efeitos sejam, na prática e em certos aspectos, semelhantes, máxime diante das estritas hipóteses de anulação da transação (art. 849 do Código Civil).

Se a transação for efetivada por meio de instrumento particular ou por qualquer meio não previsto no artigo 842 do Código Civil, e tiver como objeto direito contestado em juízo, ela será nula por ofensa à forma prescrita, conforme art. 166, IV, também do Código Civil (supra 1.4).

1.5.2 DIREITOS NÃO CONTESTADOS EM JUÍZO

Caso os direitos objeto da transação não estejam submetidos à apreciação judicial, a transação poderá ser feita por instrumento público ou particular, se assim permitir a lei, nos termos do art. 842 do Código Civil.

Se for feito por escritura pública ou por documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas, valerá como título executivo extrajudicial, conforme art. 585, II, do Código de Processo Civil, causando falta de interesse processual para eventual ação de conhecimento sobre a matéria.

Porém, caso o instrumento não constitua título executivo, e o devedor não cumpra a transação, será necessário um processo de conhecimento ou, se cabível, ingressar diretamente com uma ação monitória (art. 1102ª e seguintes do Código de Processo Civil).

Sobre o autor
Leandro Sarai

Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SARAI, Leandro. Transação e direitos individuais do empregado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 215, 6 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4799. Acesso em: 5 nov. 2024.

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