1. Introdução
O artigo irá abordar a constitucionalidade do famoso e tão discutido foro por prerrogativa de função ou no popular “foro privilegiado”, em um comparativo com outra norma constitucional taxativa e explicita no artigo 5º, dos direito e garantias fundamentais, da Carta Magna Brasileira. No caso de uma pessoa que faz jus ao foro por prerrogativa de função cometer um homicídio doloso, este, ainda sim, terá o privilégio constitucional?
2. Princípio da Igualdade ou Isonomia
Preceitua o texto constitucional:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...”.
Percebe-se que exatamente na primeira parte do tão conhecido e importante artigo, o legislador se preocupou em colocar que ninguém, exatamente ninguém será tratado de forma diferente, independentemente da natureza do fato diferenciador. O legislador foi além. Garantiu de forma inviolável o mesmo direito de igualdade ora citado no princípio do artigo referido.
Em determinado momento do direito brasileiro a doutrina chegou à conclusão de que não se pode tratar absolutamente igual àquele que, de uma forma ou de outra tem sua capacidade igualitária reduzida. É o caso dos deficientes, determinadas raças ou classe social, que de uma forma geral, não pode fazer frente aqueles que têm toda a capacidade física ou psicológica, social ou financeira.
Dessa forma correta de se pensar o direito, surgiu o que conhecemos como o verdadeiro e puro princípio isonômico atual:
“Tratar os iguais de forma igual e os desiguais na proporção da sua desigualdade”.
O que percebemos analisando o tão importante princípio constitucional, a luz dos direitos sociais e humanos, é que a igualdade é um termômetro ou uma régua, onde se mede o patamar de tal igualdade entre aqueles que a estão necessitando.
Ora, o Estado não pode colocar na mesma estatura de igualdade aquele que sempre teve sua educação firmada em escolas particulares, com aquele outro que sempre fez uso da péssima educação gratuita cedida pelo mesmo Estado.
Percebe-se que para que funcione o determinado princípio, é preciso rebaixar determinado direito para que aquele que o necessite, possa exatamente se “igualar” ao outro.
Entendendo o funcionamento da isonomia sob a égide do direito constitucional e do estado social, a pergunta mais significativa é: qual a função social que originou o legislador a criar o foro por prerrogativa de função se não se trata de igualar direitos e sim o feri-los?
3. Tribunal do Júri
Contempla o artigo 5º da Constituição Federal:
“XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida“.
Diferentemente do que se pensa por aí, a competência do tribunal do júri não é um direito do acusado, e sim um direito coletivo onde a sociedade tem o direito de escolher o veredito final. O direito do tribunal do júri é de cada membro da sociedade, onde essa pode julgar aqueles que cometeram algum tipo de crime doloso contra a vida.
A de se destacar que se trata de um procedimento especial. Um instrumento processual diferenciado para tratar do bem mais precioso tutelado pelo Direito Penal, a vida.
Se tratarmos o procedimento tribunal do júri como forma especial de julgamento, não há dúvidas que o crime por ele julgado também seja especial em sua essência delitiva. Ora, se o procedimento é especial para julgar, logicamente o crime se torna especial, de forma que, é apenas tratar de forma desigual aqueles que são desiguais, até mesmo em matéria objetiva de lei. Isso fica claro quando o legislador distribuiu o valor quantitativo de pena de acordo com a gravidade do crime cometido.
Importante destacar que o crime de homicídio doloso, seja ele com suas qualificadoras ou não, é um crime comum, e de maneira nenhuma vamos descaracterizá-lo. É um crime comum, pois pode ser praticado por qualquer pessoa até mesmo pelos que ocupam os mais altos poderes.
Quando falamos que o crime se torna especial é que de maneira nenhuma se pode retirar a competência procedimental do Júri para julgar tais condutas delitivas.
Outro aspecto importante a se destacar é a segurança jurídica e pública que traz ao seio social o tribunal do júri. Podemos analisar que todo ser humano é um ser passional que age mais com o seu coração do que com a sua razão. Quando o seu ego é ferido, quando ele se vê em uma situação de real ameaça e risco, seu poderio de vingança é altamente elevado.
Quando o judiciário, de certa forma, dá o poder de julgar tal delito como o de homicídio doloso, ali o ser humano passional vê sua grande chance de vingança. Sua chance de dar o troco. O poder de punição fica na mão do homem.
Por isso é tão importante o tribunal do júri em um Estado Democrático de Direito, para que a lei de talião não volte e que prevaleça o que podemos chamar de punição ou “vingança”, dentro dos moldes da lei.
4. Crimes Dolosos contra a Vida.
Não há como falar em crime simples de natureza comum quando a natureza delitiva se apoia em um homicídio doloso. Nesse o agente ativo do ato quer no seu mais profundo desejo ver o resultado morte. Ele procura fazer. Ele faz. Ele se exalta por ter cometido o fato crimino e de nada se arrepende.
Vale aqui ressaltar as palavras do ilustre metre Nelson Hungria, um dos maiores penalistas da história do Brasil:
“O homicídio é o tipo central contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinquência violenta ou sanguinária, que representa como que uma reversão atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada (1979, p. 25)”.
Nas brilhantes palavras, Nelson Hungria destaca a natureza sanguinária do crime de homicídio que vai além das barreiras atemporais da moralidade. Quebra todas as regras sociais proposta por Rousseau quando da Obra Contrato Social. Comer o ato descrito como Homicídio é ferir não tão somente o indivíduo e seus familiares, é rasgar a conceito de harmonia intrínseco na sociedade. É ferir a própria sociedade.
Veja que o legislador se preocupa tanto com o bem “vida” que desclassificou o crime de homicídio culposo no caso de alguém que ingere qualquer tipo de bebida alcoólica, que de certa forma diminua sua capacidade Motora-laboral, e mesmo assim ainda conduza algum tipo de veículo automotor, e por vias óbvias mate alguém. Se o individuo bebeu, dirigiu e matou, homicídio doloso.
Percebe-se tal preocupação com o bem mais precioso que qualquer ser humano pode ter que é a vida, quando nosso diploma Penal antes de tudo, tutela a vida.
A vida é tão importante para o individuo como para a sociedade. Pois sem vida, não a que se falar em convívio social. Nada mais justo do que atribuir a sociedade, sem exceção, a qualidade para julgar aqueles que cometem tais crimes contra a vida.
5. Foro por Prerrogativa de Função
Na linguagem mais popular é conhecido também como “foro privilegiado”, onde se concede um tratamento diferenciado a pessoas que exercem altos poderes públicos perante a sociedade. Este foro especial é previsto no texto constitucional, no artigo 96, III, artigo 102, I, “b”, “c”, “d”, no artigo 105, I, “a”, ”b” e artigo 108, I, “a”.
Diz a redação constitucional que em caso de crimes comuns e de responsabilidade, cada qual que cometeu tais atos serão julgados pelos respectivos órgãos, taxativamente elencados nos artigos descritos acima.
Não diz respeito à pessoa que está exercendo o cargo, pois se assim fosse estaria configurado o desrespeito ao principio da igualdade e impessoalidade.
A tutela do foro por prerrogativa de função diz respeito ao cargo que está sendo exercido. Sua importância perante a sociedade e o poder que nele é atribuído quando da investidura do cargo. Justo pelo ponto de vista ético, moral e judiciário.
Nada disso quer dizer que juízes de primeira instância não são competentes para julgar tais pessoas. Bem longe disso, aliás. Porém juízes de segunda e terceira instância estão nessa posição pela sua experiência profissional, por seus méritos intelectuais, e de certa forma poderíamos dizer que eles têm “costas largas”, se é que posso usar esse jargão popular. Seria injusto até, em caso de discordância popular ou midiática, que tais julgados caíssem sobre os juízes singulares.
Diga-se também que não é só no Brasil que existe essa figura. Países como Alemanha, Itália, França, Estados Unidos entre outros, também fazem uso do instituto do foro por prerrogativa de função.
Porém a grande discussão que fica no emaranhado do Direito é: o que prevalece no caso de homicídio doloso? Tribunal do Júri ou Foro por Prerrogativa de Função?
6. Conflito aparente de normas Constitucionais?
Tanto o tribunal do júri quanto o foro por prerrogativa de função estão explícitos na Constituição. Existe realmente um conflito de normas? O que prevalece quando os dois institutos em epígrafe se confundem?
No ano de 1998 houve proferido acórdão declarando a prevalência do tribunal do júri perante foro por prerrogativa de função expressa em constituição estadual.
“1. Habeas Corpus. 2. Procurados do Estado da Paraíba condenado por crime doloso contra a vida. 3. A constituição do estado da Paraíba prevê, no art. 136, XII, foro especial por prerrogativa de função, dos procuradores do Estado, no Tribunal de Justiça, onde devem ser processados e julgados nos crimes comuns e de responsabilidade. 4. O art. 136, XII, do estado da Paraíba, não pode prevalecer, em confronto com o ar. 5º, XXXVIII, letra d, da Constituição Federal, porque somente regra expressa da lei magna da República, prevendo foro especial por prerrogativa de função, para autoridade estadual, nos crimes comuns e de responsabilidade pode afastar a incidência do art. 5º, XXXVIII, letra d, da Constituição Federal, quanto a competência do Júri. 5. Em se tratando, portanto, de crime doloso contra a vida, os procuradores do Estado da Paraíba hão de ser processados e julgados pelo Júri. 6. Habeas Corpus deferido para anular, ab initio, o processo, desde a denúncia inclusive, por incompetência do Tribunal de Justiça do Estado, devendo os autos ser remetidos ao Juiz de Direito da comarca de Taperoá, PB, determinando-se a expedição de alvará de soltura do paciente, se por al não houver de permanecer preso. (HC 78.168-7 – DF, STF, Relator Ministro Néri da Silveira, Publicado DJ 29/08/2003)”.
Aqui temos a clara manifestação do STF quanto do conflito destas normas. Aqueles que têm o foro especial por prerrogativa de função baseado em Constituição do Estado, não está protegido do Tribunal do Júri nos casos de homicídio doloso.
Isso porque, nas claras palavras do Eminente Ministro Néri da Silveira, a Constituição dos estados-membros está diretamente subordinada a Constituição Federal, não se aplicando o foro especial nos casos dos crimes dolosos contra a vida.
Porém nos casos daqueles que têm a prerrogativa de foro garantida pela Constituição Federal, não serão submetidos ao Júri nos casos de crimes dolosos contra a vida.
A súmula 721, do STF, aprovada em 24/09/2003 ratifica as palavras do Ministro Néri da Silveira:
“A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecida exclusivamente pela Constituição estadual.”
Já pensando em possíveis confrontos futuros sobre tais normais constitucionais, o STF, em 08 de abril de 2015, na presidência do eminente Ministro Ricardo Lewandowski, propôs a edição da PSV 105 (proposta de súmula vinculante), proposta essa que foi apresentada pelo também Ministro Gilmar Mendes.
“Decisão: O Tribunal, por unanimidade, mediante a conversão da Súmula nº 721, aprovou a proposta da edição da Súmula vinculante nº 45, nos seguintes termos: “A competência constitucional do tribunal do júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição Estadual”. Ausentes, justificadamente, o Ministro Celso de Mello e, participando do 3º Seminário luso-brasileiro de Direito, em Portugal, o Ministro Gilmar Mendes. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 08.04.2015”.
Ressaltando ainda mais que, aqueles que têm o foro especial por prerrogativa de função, garantido pela Constituição Federal não serão julgados por júri popular, as palavras do Ministro Marco Aurélio:
“A competência do tribunal do júri não é absoluta; vê-se mitigada pelo próprio texto constitucional Maior, no que fixou, em face da dignidade de certos cargos e da relevância destes para o Estado, a competência de tribunais.”
Destarte disso, temos hoje como um norte jurisprudencial concreto a Súmula Vinculante nº 45, do STF, com a mesma redação da Súmula 721 deste mesmo tribunal.
Com isso ficamos com o entendimento que, apesar de parecer, não há um conflito de normas constitucionais. Isso porque a instituição do tribunal do júri quando narrada no Art. 5º, XXXVIII, da CF, somente deixa claro que serão julgados apenas em questão de crime doloso contra a vida, escurecendo o entendimento de quem realmente irá ser julgado por tal crime.
Já os artigos constitucionais que tratam do foro especial por prerrogativa de função, são muito claros e taxativos ao dizer quem terá tal foro especial em razão do cargo que ocupa.
Ou seja, trata-se de regra e exceção. Em regra todos serão julgados pelo tribunal do júri quando cometerem algum tipo de crime doloso contra a vida. Exceto aqueles em que a Constituição confere o foro especial por prerrogativa de função.
Já aqueles que têm tal foro especial concedido por Constituição Estadual, serão julgados pelo Júri popular, pois nenhuma norma está acima da Constituição Federal.
Agora a pergunta que fica ecoando no subconsciente é: há justiça em ter foro por prerrogativa de função nos casos de crimes dolosos contra a vida, se a garantia da sociedade em julgar e reprovar tal ato ilícito é o tribunal do júri atribuído pela própria constituição?
Se formos analisar o caso minunciosamente o texto constitucional só garante o órgão julgador no caso do foro especial, e nada fala no procedimento que será usado para se processar e julgar.
Usando uma interpretação latu sensu, seria o caso de montar um júri no próprio órgão julgador do caso e dentre os membros magistrados deste, escolher aqueles que formarão o júri. Em meias palavras, seria usar o procedimento e os princípios do Júri no próprio órgão competente.
Seria mais justo pelo menos.