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Hermenêutica e prudência

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Agenda 20/04/2016 às 15:03

3.O PROBLEMA HERMENEUTICO FUNDAMENTAL: A APLICAÇÃO;

Com esses conceitos fundamentais da hermenêutica filosófica de Gadamer podemos analisar a concretude da compreensão dos sentidos.

Antes de mais nada, é preciso destacar que o  processo compreensivo é uma conjugação indissociável entre subtilitas inteligendi, subtilitas explicandi e subtilitas aplicandi. Isso porque não se pode conceber uma interpretação in abstratu da lei, porque o intento interpretativo é o de retirar o fundamento de validez de uma lei abstrata em face de um caso concreto. Portanto, não se investiga o sentido de uma lei, para somente depois explicá-la e aplicá-la, essas três coisas se dão concomitantemente. Antes os meios são definidos pelas contingências, e não o contrário.

Assim, texto bíblico reclama sempre validez e aplicação, porque sua interpretação é sempre voltada para a mensagem atual e concreta da redenção. Assim como uma lei não quer ser compreendida somente historicamente, ela não é um mero documento historiográfico, mas reclama validez enquanto vigora, e essa validez só pode ser concretizada na aplicação, em face das situações atuais que não cessam de se mostrar em face dela.

É, portanto, um processo dificultoso, porque como implicação daquela distância temporal que analisamos (A aplicação, por exemplo, do Direito Romano frente aos conflitos patrimoniais na França de Napoleão, mais de mil anos após o Corpus Juris Civillis), existe a impossibilidade de, por meio da expressão textual, abarcar todas as situações específicas que possam surgir.

O texto é o cadáver do pensamento, e um morto não consegue dizer mais nada além do que ele já disse. Mas ele está ali em memória, e sua memória reclama constante presença nos que vivem e se lembram dele na atualidade deste mundo. O sentido que sobra é sempre maior do que o que  a expressão textual quis abarcar. A pretensão platônica de encerrar todo o sentido essencial nos objetos é, portanto, impossível. Antes, é só no milagre da compreensão, no desvelamento, que o Ser se mostra.

É precisamente diante dos fatos atuais e concretos submetidos à abstração geral da lei que ocorre a interpretação. O intuito, portanto, é interpretativo e não criativo. O intérprete, como o próprio nome diz, interpreta o que já existe, seu ato é mais uma recriação do que uma criação inédita. A direção oposta a isso é a pretensão lógico-dedutiva de continuar tentando abstrair e conservar os sentidos. Ou também a pretensão do positivismo kelseneano de entregar discricionariedade ao juiz, para que ele crie direito novo sempre em face de indeterminações.

 No Brasil isso tem como exemplo a proliferação das súmulas vinculantes e enunciados jurisprudenciais. É o fetiche de perpetuar a vã tentativa de conservar os significados no texto.

Contudo, asseveremos novamente, que a proposta de gadamer não é a de fazer um ataque geral contra o racionalismo e contra o método. É que o intuito racional está compreendido pela atividade interpretativa e por isso não há uma necessária contraposição entre Hermenêutica e Lógica. Esta cuida daquilo que pode ser verificado, dissecado, conhecido. A crítica que Gadamer faz ao metodologismo é, sobretudo, quando ele ingressa no domínio das ciências do espírito pretendendo-se como critério supremo.

A lógica é uma ferramenta eficiente de verificação e abstração. A matemática é essa linguagem que nos permite ao menos tentar compreender a nossa insignificância na infinidade do Universo, como nenhum outro modo de conhecimento proporciona, talvez nem mesmo o religioso. O abismo gigantesco das escalas estelares, das grandes explosões, e dos buracos negros, parece, às vezes, muito maior do que aquele provocado pela ideia de um Deus onipresente.

 Contudo, no campo das relações interssubjetivas, isso não funciona muito bem, mormente no campo discursivo. A dinâmica da lógica se dá no monólogo da abstração e da demonstração, mas o modo de realização hermenêutica se dá no campo do diálogo, mesmo que seja somente o diálogo da alma com ela mesma. É em face das situações que não foram previstas, na qual estão contidas pessoas em seus respectivos mundos, cada qual com suas infinitas particularidades que ocorre o processo de compreensão hermenêutico.

A hermenêutica partilha com a Lógica a universalidade, mas a supera porque opera também no campo do não dito, que no final das contas é todo o universo de coisas ainda não transpostas linguisticamente, ou que a expressão linguística ou numérica não consegue abarcar.

Assim, Hermenêutica atua  também sobre o sentido que sobra mesmo quando pensamos encerrada a atividade de compreensão. Estamos condenados, pois, a interpretar a realidade que nos cerca.

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Em face do não dito, o método lógico-dedutivo e também o neopositivismo lógico entregam uma carga imensa de discricionariedade, ampliando ainda mais aquela já imensa distância entre a abstração do texto legal com o caso concreto. O maior problema do positivismo jurídico, a despeito de todo o avanço técnico que ele proporciona, é essa distancia que ele provoca entre a lei e os fatos.

Frustram-se, portanto, as pretensões do que se poderia esperar de uma decisão judicial, porque o juiz decidiu “de acordo com sua consciência”, ou porque é “a autoridade competente”, ou por qualquer argumento contrafático, baseado em uma “pampricipiologia” prima facie que sustente a sua discricionariedade ao julgar em face da indeterminação da lei.

Interessante notar também que o próprio discernimento acerca da indeterminação legal, já comporta arbitrariedade. Já há atividade interpretativa mesmo  quando se analisa se a demanda em questão é ou não um caso difícil, algo diametralmente oposto ao conhecido cânone da hermenêutica clássica, in claris cessati interpretatio.

Como se define que está claro? Interpretando os fatos. ”. Nesse assunto é bastante precisa a observação de LARENZ:

“Os textos jurídicos são problematizáveis deste modo porque estão redigidos em linguagem corrente, ou então numa linguagem especializada a eles apropriada, cujas expressões - com ressalva de números, nomes próprios e determinados termos técnicos - apresentam uma margem de variabilidade de significação que torna possível inúmeros cambiantes de significação. É precisamente na profusão de tais cambiantes que se estriba a riqueza expressiva da linguagem e a sua susceptibilidade de adequação a cada situação. Seria deste modo um erro aceitar-se que os textos jurídicos só carecem de interpretação quando surgem como particularmente «obscuros», «pouco claros» ou «contraditórios»; pelo contrário, em princípio todos os textos jurídicos são susceptíveis e carecem de interpretação”.( LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito)

 

A despeito disso, a discricionariedade é uma justificativa teórica para fundamentar a negação à compreender/interpretar o caso concreto.

A Hermenêutica filosófica é, portanto, diametralmente oposta à opção pela discricionariedade, pois a sua vinculação à coisa que se interpreta impede relativismos, ela veda que se diga “qualquer coisa sobre qualquer coisa”, como Lenio Streck repete exaustivamente.

 Feitos esses delineamentos acerca da diferença entre uma postura positivista (normativismo kelseneana) e a postura Hermenêutica, urge analisar descrição gadameriana da aplicação.

 

3.1. A ANÁLISE ARISTOTÉLICA DA PHRONESIS (A VIRTUDE DA PONDERAÇÃO REFLEXIVA) ;

Aristóteles separara a Ética da Metafísica, tornando aquela uma reflexão sobre o agir humano. O objeto da ética aristotélica não é mais uma busca pelo bem absoluto e ideal, mas sim o estudo do que é bom para esse agir.

Para Platão, as coisas mundanas seriam meras cópias de um mundo ideal. Tudo o que se faz aqui neste mundo é uma mera tentativa de aproximação desse ideal. A virtude, em Platão, consiste nessa tentativa. A realidade, nossas ações e as coisas mundanas são meros reflexos, mutáveis e imperfeitos. O real (sensível) se dá em face do ideal (inteligível) e imutável.

O bem faz parte dessa plêiade de ideias que se deve buscar o alcance. Seguindo essa linha, o homem virtuoso é aquele que busca esse ideal. O sábio é aquele que tenta se desgarrar das coisas mundanas (que nos aproximam dos outros animais) e dá preponderância a sua parte inteligível (que nos aproxima dos deuses).

 

 

A ideia, a sua presença no sensível, a atividade demiúrgica e o receptáculo informe (a matéria) são, portanto, as causas da existência do mundo sensível. (SANDRINI, 2011, p.121)

 

Para Aristóteles as ideias é que são reflexo dos objetos materias, elas derivam dos nossos sentidos quando percebemos as coisas.

Com a sua teoria sobre ato e potência, as coisas estão sempre em movimento, em um constante vir a ser. Em um retorno continuo dessa relação causal entre ato e potência estaria o ato puro, um motor originário que confere funcionamento ao universo. O Deus aristotélico atrairia para si todo o sentido, sendo natural que seres imperfeitos o procurem , mas seria impossível esse ato puro pensar sobre seres impuros, pois ele é um ser que somente pensa a si mesmo.

Ele admite portanto uma realidade imutável (matéria, substância), mas que se realiza na mutabilidade das coisas (forma). Aqui ele tenta se reconciliar com o platonismo.

 Mas isso é fundamental para a compreessão aristotélica acerca do Direito Natural, já que a sua mutabilidade seria justamente uma característa inerente à natureza das coisas, como aponta Gadamer  (VERDADE e método, pág, 420). Essa concepção é oposta ao que comumente se firmou e se atribuiu erroneamente a aristóteles acerca do Direito Natural.

A mobilidade é, portanto, característica do ser. “Antes, aquele que atua está às voltas com coisas que nem sempre são como são, pois podem também ser diferentes” (GADAMER, Hans georg. Pag. 414)

Neste passo Gadamer recolhe da análise aristotélica sobre o saber prático os subsídios para descrever a atividade da aplicação.

Ele assevera que a reflexão de Aristóteles não leva em conta a historicidade do acontecer hermenêutico, mas que a separação que ele faz entre Areté (virtude) e Logos (razão), é bastante precisa para descrever um saber que só se mostra em concretude.

Essa separação vai de encontro à teoria socrático-platônica das virtudes e é também o traço distintivo da ética aristotélica.

Virtude é compreendia como uma disposição de caráter, é uma disposição firme e que sempre se volta para um bem. Em Aristóteles as virtudes são sempre um meio, uma “cumeada entre dois abismos”, o excesso e a falta.

A teoria das virtudes é, contudo, um mero esboço que orienta a ação, porque o homem virtuoso, não é aquele que sabe sobre virtudes, mas sobretudo aquele que age virtuosamente. É ação virtuosa que determina o homem virtuoso e não o contrário.  

O homem virtuoso é aquele que se faz. Mas ele não se faz como um artífice, porque ele não detêm a si mesmo. Por isso que a ética não pode ser reduzida a uma técnica.

O artista tem uma técnica que pode ser empregada, ensinada e replicada. A sua competência reside em aplicar perfeitamente um projeto prévio no material que ele molda.

Ao homem que conhece de virtudes não é garantido o agir virtuoso, ou antes ele só é virtuoso se agir virtuosamente. “Não existe uma determinação prévia daquilo em que se orienta a vida em seu todo (GADAMER)”, porque a vida é uma experiência contingente, não há como prever as coisas. Por isso, a sabedoria consiste justamente em agir corretamente em face dessas situações imprevistas. O artífice tem como prever e aplicar perfeitamente a sua habilidade. O homem ético, pelo contrário, não tem como deter um saber prévio que sempre orientará corretamente sua ação.

O homem que tem sabedoria sobre os universais, mas não sabe aplicá-lo aos particulares em verdade não tem sabedoria nenhuma. Por isso o sábio só é sábio quando sabe aplicar os gerais aos particulares. Não há sabedoria (no sentido antigo da Sophia) somente  in abstacto.

Em ética a nicômaco aristóteles delineia as virtudes que devem orientar essa ação. E a Prudência (phronesis) é justamente a virtude descritiva  e essecial à sabedoria prática.

A phronesis é compreendida e traduzida entre nós como prudência. No entanto, esse uso é evidentemente resultado de inúmeras deturpações de significado que se deram pelo passar dos milênios. Prudência, somente ela, é compreendida como cautela, cuidado. Não seria possível sequer colocá-la como uma virtude, de tão passiva e vantajosa que é (Sponville). Já a antiga phronesis, abarca também o seu sentido moderno, mas em seu conceito está contido também um intuito decisório. É uma virtude que cuida, fundamentalmente do ato de decidir; e isso não significa somente ter cautela, ter uma atitude passiva, significa sim, além de evitar os perigos, discernir sobre as ações e os seus resultados.

 A phronesis é, como demonstra São Tomás de Aquino, a virtude da decisão correta. Como toda virtude, ela só pode se voltar ao bem, se não for assim é mera astúcia.

 Além disso, e para o que nos interessa, a phronesis tem como objetos os fins contingentes. Como assevera Aristóteles, ela é oriunda de um saber prático, que se difere do saber científico.

O saber prático, portanto, cuida de situações concretas, atuais, imprevistas, insuscetíveis de abstração, e o saber científico, por seu turno, cuida dos universais e dos necessários, e além disso, o saber prático prescreve ordens.

Mas inteligência e sabedoria prática não são a mesma coisa. Esta última prescreve ordens, visto que o seu fim é o que se deve ou não se deve fazer; A inteligência, por sua vez, se limita a prescrever juízos. (ética a nicômaco, pag.134)

 Por esse motivo, para o estagirita, um jovem não poderia jamais ser um sábio, pois só lhe seria acessível o conhecimento do abstrato, das matemáticas. A experiência, fundamental ao sábio, seria constituída pelo acesso às situações contingentes.

O saber prático também, diferentemente das ciências, não pode ser ensinado e nem esquecido. Ele exsurge justamente nas situações contingentes. Também não é uma técnica, pois não há caminho idôneo para seu alcance, e muito menos pode ser replicado.

A phronesis, se assemelha mais ao que concebemos como responsabilidade. Uma virtude decisória responsável, portanto. O intuito interpretativo teria que ser decorrente de uma necessidade de conhecer os meandros do caso concreto em questão, analisando-o em face de todo o contexto que o envolve e de todas aquelas condicionantes inerentes à compreensão.

 

 


REFERÊNCIAS

 

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WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5.ª ed., rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009.

AQUINO. Tomás de. A PRUDÊNCIA AVIRTUDE DA DECISÃO CERTA, Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo. Martins Fontes, 2005.

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CADERNOS DE FILOSOFIA DO DIREITO. Editado e organizado por Oscar d’Alva e Souza Filho. Fortaleza-CE. Editora IMPRECE, 2011. 

LOPES, Tomás Jobin. Reflexões sobre hermenêutica clássica e filosófica. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20n. 425625 fev. 2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/32380>. Acesso em: 19 abr. 2016.

PONDÉ, Luiz felipe. Torre de Babel. https://www.youtube.com/watch?v=6mVOgEbKhsg.

Sobre o autor
Tomás Jobin Coutinho Lopes

Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí - UFPI; Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Piauí - UESPI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Tomás Jobin Coutinho. Hermenêutica e prudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4676, 20 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48271. Acesso em: 22 nov. 2024.

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