5. A aplicação da Teoria à realidade brasileira
No Brasil, a teoria da culpabilidade por vulnerabilidade não teve até então a reverberação merecida. A doutrina nacional pouco comenta sobre o assunto e às vezes ainda o confunde com a coculpabilidade. Os tribunais pátrios em geral também não aplicam a teoria. Em que pese esse cenário de aparente rejeição, mostraremos a seguir porque a teoria deveria ser largamente aplicada no Brasil e qual seu cabimento dentro da legislação penal brasileira.
Inicialmente, podemos lembrar que no Brasil, muito embora haja centenas de crimes tipificados em lei, prende-se na maioria das vezes por basicamente 7 deles: tráfico de drogas, roubo, furto, homicídio, porte ilegal de arma, receptação e estupro. Não é demais reforçar que, como fora dito, apesar de a maioria das pessoas cometem crimes, apenas uma ínfima parte é criminalizada e punida. A seletividade é patente no sistema penal, especialmente em detrimento das pessoas marginalizadas que cometem esses tipos penais mais rudes.
Com isso não se quer dizer que esses crimes sejam os mais importantes, nem tampouco que as pessoas presas sejam as mais prejudiciais para a sociedade. Muito pelo contrário, os crimes com maior repercussão na qualidade de vida de toda a população são raramente investigados e punidos (crimes contra a ordem tributária, crimes de corrupção, etc), pois seus autores muitas vezes têm alto poder econômico e político e, portanto, ostentam um baixíssimo estado de vulnerabilidade.
Outrossim, voltando ao dado da seletividade criminalizante, a vulnerabilidade é ainda maior para aqueles que já foram “fichados” (seja porque são reincidentes, seja porque apenas foram investigados, indiciados ou processados criminalmente). Diante dessa vulnerabilidade, para equilibrar essa verdadeira “perseguição” aos estigmatizados, torna-se imperioso adotarmos a teoria em comento.
No que tange à possibilidade legal de aplicação da teoria, esta encontra guarida em dois dispositivos do Código Penal (arts. 59, caput, e 66), que versam respectivamente sobre a primeira e a segunda fase da dosimetria pena. Vejamos o primeiro dispositivo:
“Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:”
Na primeira fase da dosimetria da pena, mediante a análise das chamadas “circunstâncias judiciais” para a fixação da pena-base, a lei é clara ao determinar que o juiz deve considerar a culpabilidade do agente em razão do fato por ele cometido, conforme seja necessário, em um claro juízo de reprovação, que deve aferir, dentre outros aspectos, a culpabilidade do agente pela vulnerabilidade analisada no momento do delito. Portanto, deve ser considerado o (maior ou menor) esforço do agente para se colocar numa situação concreta de vulnerabilidade, consoante o método já tergiversado acima. Agora vejamos o segundo dispositivo:
“Art. 66 - A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.”
Na segunda fase da dosimetria, em que se verifica a existência de circunstâncias atenuantes, deve-se analisar o estado de vulnerabilidade do agente, que, caso seja consideravelmente alto, resta salutar aplicar a atenuante genérica do art. 66 a partir da constatação de ter havido um mínimo esforço do réu para cometer o crime, ser percebido e punido.
Na legislação extravagante, interessante previsão é encontrada na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), que em seu art. 14 traz uma atenuante compatível com a ideia da vulnerabilidade do agente.
“Art. 14. São circunstâncias que atenuam a pena: I - baixo grau de instrução ou escolaridade do agente;”
Portanto, vê-se que, em matéria de crime ambiental, essa vulnerabilidade deve ser expressamente considerada a fim de dosar a pena de uma maneira mais justa e consentânea com a culpabilidade pela vulnerabilidade do agente.
6. Conclusão
Diante de todo o exposto, podemos visualizar que a culpabilidade, desde a teoria causalista do delito até hoje, passou por significativas mudanças de entendimento e compreensão. De um pressuposto da pena, composta apenas por elementos psicológicos, tornou-se elemento essencial à caracterização do delito, formada a culpabilidade nessa fase somente por elementos normativos. Sua natureza valorativa, no entanto, não pode estar alheia à realidade concreta do crime praticado, nem tampouco distante da constatação de elementos objetivamente verificáveis, como o estado de vulnerabilidade do agente e seu esforço para cometer o crime e se colocar em situação de vulnerabilidade criminalizante.
Portanto, diante da função de reduzir e limitar o estado de polícia latente em nossa sociedade, as agências judiciais devem voltar-se para uma análise mais apurada dos fatos e em especial da culpabilidade do agente. Não fosse essa a função do Direito Penal, o processo penal seria inútil e dispensável, haja vista que o poder punitivo da polícia, de outros agentes estatais e até da própria população não requer os ritos judiciais para ser satisfeito de maneira irracional e desumana.
Referências
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