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A teoria do poder constituinte

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Agenda 14/03/2004 às 00:00

Segundo a visão de diversos constitucionalistas, a diferenciação entre Poder Constituinte e Poder Legislativo ordinário ganhou concretização na Revolução Francesa, quando os Estados Gerais, se proclamaram como Assembléia Nacional Constituinte, sem nenhuma convocação formal.

Conforme temos trabalhado até o momento, os teóricos do Direito constitucional são quase unânimes em afirmar que o constitucionalismo moderno começa a ser formado no processo que se inicia com a Magna Carta na Inglaterra em 1215. Entretanto ali não está presente a idéia de uma Assembléia Nacional Constituinte que elaborando uma Constituição dará início a uma nova realidade constitucional, fruto da vontade de um poder soberano e devendo se basear na vontade popular. Temos portanto duas realidades constitucionais que hoje parecem, lentamente, gradualmente, se fundirem, mas que ainda são muito distintas.

Embora o Brasil tenha sofrido influência do Direito estadunidense a partir da Constituição de 1891, que copiou diversas instituições dos Estados Unidos da América como o federalismo, o presidencialismo, o seu modelo bicameral, o modelo de suprema corte e o modelo de controle difuso de constitucionalidade, nossa tradição constitucional é construída a partir do modelo continental europeu, transformando o nosso constitucionalismo em um dos mais ricos do mundo, pois promove a construção de um processo de síntese, ainda inicial, dos dois grandes sistemas jurídicos modernos, o que pode ser expresso no nosso controle misto de constitucionalidade das leis, que infelizmente vem sofrendo ataques inconstitucionais que buscam implantar o controle concentrado único, o que é contra a democracia e logo inconstitucional.

Entretanto, há algo em comum entre o modelo estadunidense e o europeu continental, não compartilhado pela Inglaterra: a existência de um poder constituinte originário, inicial, soberano e de primeiro grau capaz de romper com a ordem anterior e iniciar uma nova vida jurídica constitucional com a nova Constituição.

Segundo a visão de diversos constitucionalistas, a diferenciação entre Poder Constituinte e Poder Legislativo ordinário ganhou ênfase e concretização na Revolução Francesa, quando os Estados Gerais, por solicitação do Terceiro Estado, se proclamaram como Assembléia Nacional Constituinte, sem nenhuma convocação formal.

Na França revolucionária (1789) foram superadas as velhas teorias que determinavam a origem divina do poder, afirmando a partir de então que a nação, o povo (seja diretamente ou através de uma assembléia representativa), era o titular da soberania, e, por isso, titular do Poder Constituinte. Entendia-se então que a Constituição deveria ser a expressão da vontade do povo nacional, a expressão da soberania popular. Idéias que podem parecer um pouco românticas ou artificiais em uma construção teórica transdisciplinar contemporânea. Podemos dizer que as dificuldades (ou impossibilidade) contemporâneas para afirmar a existência de uma (única) vontade popular, em sociedades de extrema complexidade, é bem maior hoje que no passado, mas sempre estiveram presentes no Estado moderno. Por mais democrático que tenha sido qualquer poder constituinte vamos encontrar no complexo jogo de poder por traz da constituinte aqueles que tem a capacidade ou possibilidade de impor seus interesses com mais força do que outros.

Podemos dizer que a elaboração geral da teoria do Poder Constituinte nasceu, na cultura européia, com SIEYES, pensador e revolucionário francês do século XVIII. A concepção de soberania nacional na época assim como a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos com poderes derivados do primeiro é contribuição do pensador revolucionário.

SIEYES afirmava que objetivo ou o fim da Assembléia representativa de uma nação não pode ser outro do que aquele que ocorreria se a própria população pudesse se reunir e deliberar no mesmo lugar. Ele acreditava que não poderia haver tanta insensatez a ponto de alguém, ou um grupo, na Assembléia geral, afirmar que os que ali estão reunidos devem tratar dos assuntos particulares de uma pessoa ou de um determinado grupo. 1

A conclusão da escola clássica francesa colocando a Constituição como um certificado da vontade política do povo nacional sendo que para que isto ocorra deve ser produto de uma Assembléia Constituinte representativa da vontade deste povo, se opõe Hans Kelsen, que afirma que a Constituição provém de uma norma fundamental. 2 Importante ressaltar neste ponto que os conceitos dos diversos autores serão influenciados pela compreensão da natureza do Poder Constituinte: seja um poder de fato ou um poder de Direito.

Um outro aspecto que devemos estudar sobre o Poder Constituinte é relativo a sua amplitude. Alguns autores entendem que o poder constituinte se limita a criação originária do Direito enquanto outros compreendem que este poder constituinte é bem mais amplo incluindo uma criação derivada do Direito através da reforma do texto constitucional, adaptando-o aos processos de mudança sociocultural 3, e ainda o poder constituinte decorrente, característica essencial de uma federação, quando os entes federados recebem (ou permanecem com) parcelas de soberania expressas na competência legislativa constitucional.

Um terceiro aspecto a ser estudado, e sobre o qual também existem divergências, diz respeito à titularidade do Poder Constituinte.

Para uma melhor compreensão desta matéria e de sua diversas compreensões, é necessário estudar separadamente cada um destes elementos. Não se pode vincular, como pretenderam alguns, o posicionamento com relação à natureza do Poder Constituinte com a sua amplitude, e mesmo com sua titularidade em determinados casos.

Finalmente o aspecto mais importante de todos é o estudo dos limites ao pode constituinte tanto originário, como derivado e decorrente. Estes aspectos estaremos estudando nos próximos capítulos.


Os limites do Poder Constituinte

O poder constituinte derivado, ou de reforma, divide-se em dois: o poder de emenda e o poder de revisão, enquanto o poder originário pertence a uma assembléia eleita com finalidade de elaborar a Constituição, deixando de existir quando cumprida sua função, sendo um poder temporário, o poder de reforma é um poder latente, que pode se manifestar a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais e observados os seus limites materiais.

O poder de reforma por meio de emendas pode em geral se manifestar a qualquer tempo, sofrendo limites materiais, circunstanciais, formais e algumas vezes temporais. Este poder consiste em alterar pontualmente uma determinada matéria constitucional, adicionando, suprimindo, modificando alínea(s), inciso(s), artigo(s) da Constituição.

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O poder de revisão em geral tem limites temporais, além dos limites circunstanciais, formais e materiais, ocorrendo, em algumas Constituições, sua manifestação periódica, como na Constituição portuguesa de 5 em 5 anos. Na nossa Constituição, houve a previsão de manifestação de poder uma única vez não podendo ocorrer de novo pois estava prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A revisão é mais ampla que a emenda, pois como sugere o nome trata-se de uma revisão sistêmica do texto, respeitados os limites. No Brasil entretanto, a nossa revisão foi atípica, se manifestando através de emendas. Entretanto, bem ou mal feita, o que ocorreu foi uma revisão, pois se deu, respeitados os aspectos formais processuais da revisão prevista no ADCT.

Além do poder de reforma encontraremos nos estados federais (e apenas nos estados federais) o poder decorrente que pertence aos entes federados sejam dos estados membros no federalismo de dois níveis, sejam dos estados membros e municípios no federalismo de três níveis. Este poder também é subordinado e limitado, tendo limites expressos e devendo respeitar os princípios fundamentais e estruturantes da Constituição Federal.

Quanto aos limites do poder constituinte podemos dizer o seguinte:

Esta discussão não é nova e encontramos no clássicos do Direito Constitucional nacional e estrangeira varias referencias a amplitude do poder constituinte e o poder de reforma.

NELSON DE SOUZA SAMPAIO afirmava que o poder reformador está abaixo do Poder Constituinte e jamais poderá ser ilimitado como este. Seja como se queira chamar este poder reformador, seja de Poder constituinte constituído como faz SANCHES AGESTA; poder constituinte derivado como faz PELAYO e BARACHO, ou poder constituinte instituído segundo BURDEAU, devemos encará-lo como faz PONTES de MIRANDA, como uma atividade constituidora diferida ou um poder constituinte de segundo como faz também ROSAH RUSSOMANO. 4


A natureza do poder constituinte

Alguns autores entendem que o poder constituinte originário é o momento de passagem do poder ao Direito. É inegável que o poder constituinte originário é o momento maior de ruptura da ordem constitucional, onde o poder de fato que se instala, forte o suficiente para romper com a ordem estabelecida, é capaz de construir uma nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual está rompendo. Se entendermos o Direito como sendo sinônimo de lei positiva, posto pelo Estado, o poder constituinte originário será apenas um poder de fato. E é justamente neste ponto que reside sua força. É claro que não reduzimos o Direito nesta perspectiva positivista já ultrapassada, que reduz o Direito à regra, transformando construção do Direito em uma simples aplicação da receita pronta da lei ao caso concreto. Entretanto isto será objeto de estudo mais adiante. O que nos interessa agora é entender a força do poder constituinte originário como poder de fato, capaz de romper com a ordem vigente, e, portanto, um poder ilegal e inconstitucional em relação a ordem com a qual rompe, e pela qual não se limita. Esta afirmativa contém a essência da segurança que busca o constitucionalismo moderno: a Constituição na sua essência deve ser tão forte e perene que nenhum poder constituinte pode romper com seus fundamentos e estrutura, mas somente um poder social tão forte, que nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo pois é o poder de transformação social da própria história. Neste recurso do Direito Constitucional ao poder social, ao poder de fato, transformador e histórico, reside sua própria segurança, contra maiorias temporárias parlamentares que queiram transformar toda a Constituição, escrevendo uma nova, procurando se legitimar no voto que elegeu os representantes. A proteção contra o autoritarismo da maioria reside na exigência de poder social irresistível, única justificativa para a ruptura constitucional. Defensores de tese contraria procuram desenvolver mecanismos meramente representativos e consultivos (plebiscitos e referendos) para legitimar uma alteração radical do texto constitucional, que afete seus princípios fundamentais, criando na verdade uma nova Constituição. Estes mecanismos são verdadeiros golpes contra a segurança jurídica, que como disse, só pode ser rompida pela força social irresistível que não se expressa em meras representações, pois quinhentos não podem o que só milhões poderão. Pode-se afirmar entretanto que estes milhões podem ser ouvidos em plebiscitos, mas como proteger estes milhões da força de manipulação da propaganda na construção de uma falsa vontade popular. Por isto nada pode substituir a mobilização popular, única justificativa para rupturas constitucionais profundas.

Retornando à discussão inicial, podemos dizer, ao contrário, que, se entendermos entretanto que o Direito não se resume ao direito positivo, mas que está essencialmente ligado a idéia do justo, do correto, do direito, estaremos no campo das várias correntes do pensamento do Direito natural. Neste sentido o Direito é sinônimo de justo, e logo a lei positiva pode ou não conter o Direito, pois só será Direito se conter uma norma justa. O conceito do que é justo muda em cada corrente do Direito natural, mas o que há em comum nas varias teorias é a compreensão de que Direito é diferente de lei. Seguindo esta hipótese, o poder constituinte originário será um poder de Direito se representar o justo, o correto, o direito, e ao contrário, será um mero poder fato, ilegítimo, contra o Direito, se não representar a idéia do justo, do correto, do direito.

Não nos filiamos ao pensamento do Direito natural por considerarmos elitista, no sentido que ao se reconhecer que existe um direito justo anterior e superior ao direito produzido pelo Estado, quem será a pessoa ou pessoas que dirão o justo. Quem terá o discurso legitimado. Se o justo está na vontade divina, quem será o interprete desta vontade. Se o justo está na razão do filósofo, qual será o filosofo que nos dirá o justo.

Por este motivo, entendemos que só processos democráticos dialógicos com ampla mobilização popular pode justificar uma ruptura, que sendo fato irresistível se afirma com força, mas não de forma ilimitada. O Direito não se encontra apenas no texto positivado, ou na decisão judicial, mas latente na idéia de justiça dialógicamente compartilhada em processos democráticos de transformação social, e será esta compreensão dialógicamente compartilhada, em uma sociedade, em um determinado momento histórico, que legitimará o Direito, sua compreensão democrática e sua transformação democrática, inclusive as rupturas constitucionais. O Poder constituinte originário só será legitimo se sustentado por amplo processo democrático dialógico que ultrapasse os estreitos limites da representação parlamentar e penetre nos diversos fluxos comunicativos da complexa sociedade nacional.

Portanto, podemos concluir que este poder de fato será também de Direito, se efetivamente democrático, entendendo-se democrático, como um processo dialógico amplo que envolva o debate dos mais variados interesses e valores da sociedade nacional.


O Poder Constituinte decorrente

Outro aspecto referente à amplitude do Poder Constituinte diz respeito ao Poder Constituinte decorrente, ou seja, o poder constituinte dos entes federados, no nosso caso, Estados membros e Municípios. Já estudamos no nosso livro Direito Constitucional, tomo II, da Editora Mandamentos, as características principais do Estado Federal. Naquele momento, deixamos claro que o que difere o Estado Federal de outras formas descentralizadas de organização territorial do Estado contemporâneo é a existência de um poder constituinte decorrente, ou seja, a descentralização de competências legislativas constitucionais, onde o ente federado elabora sua própria constituição e a promulga, sem que seja possível ou necessário uma intervenção ou a aprovação desta Constituição por outra esfera de poder federal. Isto caracteriza a essência da Federação, a inexistência de hierarquia entre os entes federados (União, Estado e Municípios no caso brasileiro), pois cada uma das esferas de poder federal nos três níveis brasileiros, participa da soberania, ou seja, detém parcelas de soberania, expressa na suas competências legislativa constitucional, ou seja, no exercício do poder constituinte derivado.

Não estamos afirmando que os estados membros, a União e os municípios são soberanos, pois soberano e o Estado Federal e a expressão unitária da soberania, ou seja, sua manifestação integral, só ocorre no Poder Constituinte Originário. O que afirmamos, é que no Estado Federal, além de uma repartição de competências legislativas ordinárias, administrativas e jurisdicionais, há também, e isto só ocorre no Estado Federal, uma repartição de competências legislativas constitucionais. Esta repartição de competências constitucionais implica na participação dos entes federados na soberania do Estado, que se fragmenta nas suas manifestações.

Entretanto, este poder constituinte decorrente, embora represente a manifestação de parcela de soberania, não é soberano, e por este motivo deve ser um poder com limites jurídicos bem claros, limites estes que podem ser materiais, formais, temporais e circunstanciais. No caso da Constituição de 1988, esta estabelece limites materiais expressos e obviamente implícitos, deixando para o poder constituinte decorrente, que é temporário (assim como o originário), prever o seu funcionamento, e o funcionamento do seu próprio poder de reforma e seus limites formais, materiais, circunstanciais e temporais. O poder constituinte decorrente é segundo grau (se dos Estados membros) e terceiro grau (se dos municípios), subordinados a vontade do poder constituinte originário, expressa na Constituição Federal. A repartição de competências no nosso Estado federal ocorre da seguinte forma:

Quanto aos limites do poder constituinte decorrente encontramos em vários momentos na constituição Federal e são limites materiais expressos e implícitos. Os limites expressos ocorrem todo momento que a Constituição distribui competências e normatiza condutas dos entes federados. Quanto aos limites implícitos, estes são os princípios estruturantes e fundamentais da República, que se impõem a todos os entes federados como por exemplo, a democracia, a separação de poderes, os direitos humanos, a redução das desigualdades sociais e regionais, a dignidade humana, entre outros.

Alguns entendem que a Constituição Federal deve ser quase que copiada pelos entes federados o que no nosso entendimento é anti-federal. Se a Constituição federal expressamente não mencionou mandamentos aos entes federados, está livre o constituinte dos Estados e Municípios para dispor, desde que respeitados os princípios que estruturam e fundamentam a ordem constitucional federal. Por exemplo: se a Constituição Federal prevê o quorum de três quintos em dois turno para emenda a Constituição Federal, como norma regulamentadora do funcionamento do poder constituinte derivado federal, nada impede que o Estado Membro ou o Município estabeleçam quorum diferente, desde que respeitados o princípio da rigidez constitucional que caracteriza sua supremacia em relação as leis ordinárias e complementares e respeitado o princípio da separação de poderes.

Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. A teoria do poder constituinte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 256, 14 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4829. Acesso em: 18 dez. 2024.

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