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O direito real de habitação legal no Direito brasileiro

Agenda 29/04/2016 às 13:43

Análise conceitual e tipológica da figura em questão,incluindo seus desdobramentos dogmáticos e embates na aplicação prática.O texto fornece os contornos teóricos para a abordagem do conflito com a sucessão hereditária,ultimada em artigo diverso do Autor.

1. Conceito:

De início, convém rapidamente tecer algumas considerações sobre o instituto em análise, revisitando suas premissas teóricas com o objetivo de consolidar as balizas que nortearão o presente artigo.

Conceitualmente, valendo-se da definição contida no art. 1.414, do Código Civil, pode-se dizer que o direito real de habitação consiste no direito de habitar gratuitamente casa alheia, utilizando-a como residência sua e de sua família. Esta é a redação do comando legal referido:

“Art. 1.414. Quando o uso consistir no direito de habitar gratuitamente casa alheia, o titular deste direito não a pode alugar, nem emprestar, mas simplesmente ocupá-la com sua família”.

2. Modalidades:

Com relação à sua tipologia, predomina no Direito Brasileiro a subdivisão desse modelo em duas espécies: direito de habitação convencional e legal.

É esta última espécie, direito de habitação legal, que apresenta os contornos relevantes à presente abordagem, e será doravante objeto de análise no presente texto.

3. Forma de instituição do direito de habitação legal:

A propósito do direito de habitação legal, decorrente de sucessão hereditária, sua instituição deriva da simples ocorrência da situação prevista em lei, ou seja, pela sobrevivência de cônjuge no imóvel destinado à residência da família. Nesse contexto, não há necessidade de registrar tal direito junto ao fólio real do imóvel, a teor do que se extrai da letra do art. 167, inciso I, n. 7, Lei 6.015/73:

No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos.  (Renumerado do art. 168 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).

I - o registro: (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975).

7) do usufruto e do uso sobre imóveis e da habitação, quando não resultarem do direito de família (BRASIL, Lei n. 6015, 1973, art. 197, inciso I, n. 7);

4. Peculiaridades

A esta altura, passa-se a abordar cenários diversos envolvendo o direito de habitação legal, que são capazes de conferir interpretação adequada sobre a gênese e extensão da figura legal, indispensáveis para que se ultime a apropriada abordagem do tema proposto.

4.1. Aplicabilidade às uniões homossexuais

De inicio, vale assinalar que, alçada a igualdade de valores entre as uniões heterossexuais e as homossexuais, e assente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a plena possibilidade de celebração de casamento entre pessoas do mesmo sexo (Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277/DF) não há impediente para que o direito de habitação seja conferido no caso de a união ou casamento homossexuais.

4.2. Incidência nas uniões estáveis

Conforme já antecipado em capítulo próprio, alusivo à digressão histórica, instala-se acirrada problemática no que tange ao cabimento do direito real de habitação às uniões estáveis.

Isso ocorre porque o Código Civil de 2002, ao consagrar o direito real em questão, disciplinou exclusivamente de sua aplicação ao cônjuge sobrevivo, deixando de contemplar em seu texto o companheiro supérstite. Dada a sua relevância, pede-se vênia para transcrição do dispositivo:

Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar (BRASIL, Lei n°. 10.406, 2002, art. 1.831).

A omissão, para muitos estudiosos do direito, significou clara vedação do instituto nas uniões estáveis, ao fundamento de que, caso pretendesse estender o direito real de habitação ao modelo de família convivencial, bastaria ao legislador acrescentar a expressão correspondente ao texto da Lei, providência que preferiu não adotar.

Por outro lado, a par da respeitabilidade dos civilistas mencionados, é certo que a grande maioria da doutrina, avalizada pelo entendimento jurisprudencial, perfilha entendimento contrário.

Nesse enfoque, parte-se da premissa de que o parágrafo único, do art. 7º, da Lei n. 9.278/1996 não foi revogado, inexistindo, ademais, qualquer fundamento hábil a tratar de forma desigual o casamento e a união estável, especialmente porque a própria Constituição Federal reconhece a união estável como genuína entidade familiar.

Trilhando esta linha de raciocínio, possível identificar o entendimento de Fabio Ulhoa Coelho (2012b, p. 595), Maria Berenice Dias (2008, p. 72), Roberto Senise Lisboa (2012b, p. 167), entre outros, perfilhados a esta corrente.

4.3. Prescindibilidade da condição de herdeiro.

Avançando na análise da figura do habitador, agora adentrando ao elenco dos requisitos de concessão da benesse, cumpre observar que não existe qualquer exigência de que o cônjuge sobrevivo tenha participação no imóvel, ou tampouco seja herdeiro do morto, para que seja contemplado com o direito real de habitação. Em outros termos, basta que a existência de vínculo conjugal ou convivencial entre o de cujus e o favorecido, a fim de constituir ipso facto o direito de habitação do supérstite.

4.4. Concessão do Direito de Habitação Legal a mais de uma pessoa

Sob outro vértice, cabe destacar que é plenamente possível que o direito real de habitação seja conferido a mais de uma pessoa conjuntamente. Nesse caso, porém, deve ser observado mandamento expresso no Código Civil de que a habitação por um dos habitadores jamais poderá excluir a dos demais, tampouco servir de motivo para a cobrança de aluguel para exercício do direito pelo outro:

Se o direito real de habitação for conferido a mais de uma pessoa, qualquer delas que sozinha habite a casa não terá de pagar aluguel à outra, ou às outras, mas não as pode inibir de exercerem, querendo, o direito, que também lhes compete, de habitá-la (BRASIL, Lei n°. 10.406, 2002, art. 1.415).

Admissível ainda, segundo observação de Sebastião De Assis Neto[1], que dentre a família do habitador encontrem-se também pessoas que não sejam de sua família, desde que observada a condição de inexistir onerosidade da hospedagem no imóvel.

Tal premissa não enseja a conclusão, porém, de que outros herdeiros do de cujus tenham a faculdade de morar juntamente com o habitador, já que o direito de habitação envolve o uso exclusivo do imóvel. Nesse sentido são os ensinamentos de Fabio Ulhoa Coelho[2]:

A lei não é expressa a respeito, mas deve-se reconhecer ao cônjuge sobrevivo o direito de usar todo o imóvel com exclusividade. O ascendente ou descendente coproprietário do bem não pode vir morar com o cônjuge, se antes não habitava o mesmo local. Assim deve ser, porque caso contrário o art. 1.831 do CC não teria qualquer implicação. Veja, é direito do condômino usar o bem em condomínio, desde que não exclua nenhum dos outros coproprietários. O cônjuge, portanto, na condição de condômino do imóvel herdado, já titula o direito de usá-lo. Para que o gravame da habitação, que a lei determina recair sobre esse bem, tenha algum significado, é necessário reconhecer ao seu titular mais direitos do que os derivados do condomínio.

4.5. Valor do imóvel habitando

Nessa seara, cumpre advertir, inexiste limitação quanto ao valor do imóvel habitando, justamente porque a mens legis que orientou a concepção do instituto teve por escopo a manutenção do padrão de vida que o habitador desfrutava antes da morte de seu consorte.

Esse entendimento encontra ressonância no Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu, em julgamento que é alvo de severas críticas, o direito de habitação à companheira supérstite no imóvel em que vivia com o de cujus, a despeito de ter adquirido outro imóvel com a indenização recebida de seguro de vida do falecido. Este é o julgado mencionado, transcrito apenas na parte de interesse:

DIREITO DAS SUCESSÕES. RECURSO ESPECIAL. SUCESSÃO ABERTA NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. COMPANHEIRA SOBREVIVENTE. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. ART. 1.831 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. (...)

4. No caso concreto, o fato de a companheira ter adquirido outro imóvel residencial com o dinheiro recebido pelo seguro de vida do falecido não resulta exclusão de seu direito real de habitação referente ao imóvel em que residia com o companheiro, ao tempo da abertura da sucessão.

5. Ademais, o imóvel em questão adquirido pela ora recorrente não faz parte dos bens a inventariar.

6. Recurso especial provido (PODER JUDICIÁRIO, Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma. Recurso Especial n°. 1.249.227/SC. Partes: Maria Ivete Blanckenburg e Mariza Schwalb Rosa. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Santa Catarina. Data do Julgamento: 17/12/2013. Data da Publicação/Fonte DJe 25/03/2014).

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Em sentido oposto já decidiu o E. Tribunal de Justiça deste Estado de São Paulo, valendo-se de entendimento reputado mais sensato pela Turma Julgadora:

Reivindicatória. Companheira sobrevivente. Direito de habitação em imóvel que servia de residência. Ré já conseguiu imóvel residencial por doação testamentária. Obtenção do bem proporciona proteção que concede moradia à companheira supérstite. Imóvel pertencente ao polo ativo não pode ampliar o direito de habitação da apelada, pois, do contrário, configuraria dupla proteção, em detrimento dos autores. Aspecto teleológico do legislador foi dar amparo de moradia a quem perdeu o companheiro por morte, e não expandir consideravelmente a proteção. Recorrida obteve moradia ante a doação, o que caracteriza que o companheiro falecido já proporcionara a habitação para a convivente. Reivindicatória apta a sobressair. !missão na posse deve prevalecer. Apelo provido (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 7ª Câmara de Direito Privado. Apelação n°. 9087291-46.2004.8.26.0000. Partes: Lourdes de Fátima Sanson Gasparini e Vera Lúcia Lopes Campanha, Relator: Natan Zelinschi de Arruda, Americana, Data de Julgamento: 28/01/2009. Data de Registro: 09/02/2009).

4.6. Habitação versus legado ou doação do imóvel a terceiro

De resto, oportuno deixar consignado que este benefício é concedido ao sobrevivente ainda que o de cujus tenha legado o imóvel sob disputa em favor de outrem. Nesse caso, o legatário terá que suportar o direito de habitação, conservando a nua propriedade do imóvel enquanto durar o direito real do supérstite.

Nesse particular, verifique-se o ensinamento de Mauro Antonini[3]:

O autor da herança não poderá dispor do imóvel residencial por testamento sem observar a limitação decorrente do direito real de habitação (...) Suponha-se que seja casado por comunhão parcial de bens e deixe por testamento a terceiro, como legado, o imóvel residencial do casal, bem particular do testador, adquirido antes do casamento. Segundo a tese que ora se defende, essa disposição testamentária poderá ser reduzida a pedido do cônjuge sobrevivo, resguardando-se seu direito real de habitação, mantendo-se a disposição testamentária somente em relação à transmissão da nua propriedade. Quando futuramente se extinguir o direito real de habitação (pela morte do beneficiário, novo casamento etc), consolida-se a propriedade plena em favor do legatário testamentário.

Prossegue o renomado civilista, alertando que a limitação citada quanto à disposição testamentária também se aplica nas hipóteses de doação do imóvel com reserva de usufruto:

A mesma limitação quanto à disposição testamentária deve ser estendida quanto à doação do imóvel residencial, pois, do contrário, seria possível burar por ato inter vivos o que é vedado por sucessão causa mortis. Tome-se o exemplo do casado por comunhão parcial de bens que doa aos filhos o imóvel que adquiriu antes do casamento, no qual mantém a residência conjugal, reservando para si o usufruto vitalício, visando burlar o direito real de habitação que caberia a seu cônjuge. Pois, quando de sua morte, extinguindo-se o usufruto, consolida-se a propriedade plena em favor dos filhos e o imóvel não é objeto de sucessão hereditária. Seria possível ao cônjuge, nesse caso, conforme a posição ora defendida, postular a redução da doação, na parte em que atingiu seu legado ex lege, representado pelo direito real de habitação (ANTONINI, 2015, p. 2111-12)

4.7. Disponibilidade do direito de habitação

Volvendo à natureza disponível do direito real de habitação, importa observar que, diante da superveniência do falecimento de um dos cônjuges, nada impede que o supérstite renuncie ao direito de habitação.

Este, por sinal, foi o conteúdo do Enunciado n. 271, aprovado na III Jornada de Direito Civil “O cônjuge pode renunciar ao direito real de habitação, nos autos do inventário ou por escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança” (CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, 2012, p. 28):

4.8. “Único da natureza a inventariar”

Por outro lado, aspecto que gera particular acirramento exegético é a parte final do artigo 1.831, do Código Civil, que exige que o imóvel habitando seja o único daquela natureza a inventariar, vedando, com isso e a princípio, a concepção do direito nos casos em que exista outro bem imóvel passível de divisão.

Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar (BRASIL, Lei n°. 10.406, 2002, art. 1.831).

Ao abordar a relevância desta restrição, pondera Daniel Blikstein[4]:

Essa restrição se justifica, pois, havendo mais bens imóveis residenciais na herança, o consorte sobrevivente irá receber, com certeza, a título de meação ou herança, algum dos bens deixados pelo falecido, dando-se sempre preferência ao imóvel residencial da família.

Tal entendimento é adotado por Câmaras do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como se vê:

Agravo de instrumento - Decisão que reconhece direito real de habitação do viúvo meeiro - Existência de mais de um bem da mesma natureza inventariado - Impossibilidade - Inteligência do art. 1.831, parte final, do Código Civil - Impossibilidade de instituição de direito real de usufruto legal fora da previsão do artigo 1.831 do código civil - Pendência de usufruto sobre os bens que são objetos do pedido de extinção de condomínio direitos reais - Possibilidade de extinção do condomínio entre os nus proprietários - Sequela - Dado provimento parcial ao recurso (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 9ª Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento n°. 0086979-14.2013.8.26.0000. Partes: Aziel Guimarães Bonfin e Greice Brolo, Relator: Lucila Toledo, Jundiaí, Data de Julgamento: 10/09/2013. Data de Registro: 27/09/2013).

Nada obstante, subsistem doutrinadores que enxergam neste trecho do dispositivo legal nítida incongruência do sistema, como é o caso de Fabio Ulhoa Coelho.

A crítica em alusão tem por cerne o fato de tal requisito representar inegável benéfico para a união estável, em detrimento do casamento. Tudo porque o art. 1.831 estabelece como requisito para a outorga da habitação ao cônjuge supérstite a inexistência de outro bem desta natureza a inventariar, enquanto, por outro lado, nada alude a respeito dessa condição a Lei n. 9.278/96, em seu art. 7º, parágrafo único, ao prever o beneplácito à união estável.

Art. 7°. Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família. (BRASIL, Lei n°. 9.278. 1996. art. 7º, parágrafo único).

A solução proposta pelo doutrinador nominado seria simplesmente igualar as condições, suprimindo-se o requisito de unicidade do imóvel dessa natureza para ambos os casos, conferindo assim tratamento isonômico para ambas as situações. Veja-se, a propósito:

Por fim, observo que o art. 1.831 do CC estabelece como condição, para a instituição do direito real de habitação, que o imóvel onde reside o cônjuge sobrevivente seja o único dessa natureza a inventariar. Pelo texto da lei, portanto, se na herança houvesse qualquer outro bem imóvel, o cônjuge sobrevivente não seria titular do direito real de habitação. Aqui, estamos diante de mais uma inconstitucionalidade do Código Civil, que trata o cônjuge de forma menos vantajosa que o companheiro. O art. 7º, parágrafo único, da Lei n. 9.278/96 assegura a este último o direito real de habitação, sem o condicionar à inexistência de outros imóveis na herança. Uma vez mais, não há motivos para discriminar o cônjuge na extensão desse direito sucessório (COELHO, 2012b, p. 595).

Ainda, cabe ressaltar que, à míngua de vedação legal, a aplicação jurisprudencial do instituto não vislumbra impeditivo para que o cônjuge supérstite usufrua do direito de habitação mesmo na hipótese em que seja proprietário de outro imóvel. Cita-se entendimento do E. Tribunal Bandeirante:

Inventário - Desocupação do imóvel pela viúva - Inadmissibilidade - Direito real de habitação previsto no art. 1.831 do Código Civil - Existência de imóvel próprio não afasta a norma - Recurso improvido (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 6ª Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento n°. 0029149-90.2013.8.26.0000. Partes: Zulmira De Mora Carvalho (Espólio) e Ana Maria Domingues, Relator: Eduardo Sá Pinto Sandeville, Votorantim, Data de Julgamento: 14/03/2013. Data de Registro: 16/03/2013).

Agravo de instrumento - Inventário - Direito real de habitação - artigo 1.831 do código civil de 2002 - interpretação analógica que busca preservar o princípio geral da vedação ao retrocesso - aplicação do enunciado 117 do conselho da justiça federal - para ser passível do direito real de habitação o imóvel deve ser "o único daquela natureza a inventariar", e não o único de propriedade do consorte sobrevivente - decisão mantida - recurso não provido (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 5ª Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento n°. 2191583-55.2014.8.26.0000. Partes: Eduardo de Carvalho e Maria Jose da Silva, Relator: Erickson Gavazza Marques, Praia Grande, Data de Julgamento: 09/09/2015. Data de Registro: 11/09/2015).

        

União estável. Reconhecimento "post mortem". O reconhecimento da união estável depende de comprovação da convivência duradoura, pública e contínua, estabelecida com o objetivo de constituição familiar (art. 1.723 do Cód. Civil). Sentença de procedência. Conjunto probatório que corrobora a existência da união estável entre a autora e o falecido no período apontado na inicial. Tese de que o relacionamento consistia apenas em namoro. Descabimento. Caso em que a autora figura como dependente previdenciária do "de cujus". Eventual existência de duas residências que não macula a coabitação. Precedentes. Temática recursal desacompanhada de qualquer fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da demandante (art. 333, II, do CPC). Incidência do brocardo Allegare nihil et allegatum non probare paria sunt. Sentença mantida. União estável e direito real de habitação. Reconhecimento. Permanência da autora no imóvel utilizado pelo núcleo familiar durante a convivência. Possibilidade. Posse justa a que se dá proteção (art. 7º da Lei nº 9.278/96). Precedentes. Sentença reformada. Recurso dos réus desprovido, provido o apelo adesivo da autora.    (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 7ª Câmara de Direito Privado. Apelação n°. 0065957-93.2010.8.26.0002. Partes: Romari De Brito Costa e Jurema Aparecida Buono, Relator: Rômolo Russo, São Paulo, Data de Julgamento: 19/08/2015. Data de Registro: 19/08/2015).

4.9. Duração do Direito de Habitação Legal

Na quadra atinente à duração do direito de habitação, ganha relevo a distinção entre o direito de habitação convencional e legal, de acordo com ressalva já abordada em linhas anteriores.

Isso porque, no que toca ao benefício convencional, é assente que o prazo de duração dependerá da manifestação da vontade e comportamento das partes, seja pelo advento do termo ou implemento da condição, ou pelo descumprimento de alguma obrigação pelo habitador.

Já com relação à duração da modalidade legal, no bojo da sucessão hereditária, importante tecer algumas considerações para a correspondente análise.

Por primeiro, cumpre observar que o Código Civil de 2002, ao disciplinar o direito real de habitação do cônjuge supérstite não repetiu a limitação que havia na Codificação de 1916, que dispunha que o habitador faria jus ao direito real de habitação enquanto vivesse e permanecesse viúvo.

Daí decorre a conclusão, adotada por parte dos intérpretes da norma, de que não subsiste mais impedimento para que o habitador constitua nova família no imóvel, podendo, inclusive, contrair novas núpcias enquanto beneficiário do direito, e ainda assim permanecer de forma vitalícia no bem habitando.

Acerca de tal temática, veja-se o escólio de Washington de Barros Monteiro[5]:

Cuida-se de direito personalíssimo e vitalício, devendo o beneficiário utilizar o bem exclusivamente como residência sua, não podendo alugá-lo ou cedê-lo, independentemente de manter-se viúvo, condição que exigia o Código de 1916. Este previa, efetivamente, que o viúvo conservasse tal estado para manter aludido direito real de habitação, que, muitas vezes, incide sobre bem de extremo valor. O Código de 2002 dispensou mencionado requisito, de tal sorte que perdura o direito ainda que o viúvo se case novamente ou estabeleça união estável.

Há precedentes jurisprudenciais, inclusive, do E. Tribunal de Justiça de São Paulo nesse sentido, a saber:

Ação de arbitramento de aluguel. Pretensão dos herdeiros, ora autores, a compelir o genitor a pagar aluguel pela permanência no imóvel, residência da família. Direito real de habitação. Proteção legal conferida ao cônjuge supérstite desde que o imóvel seja destinado à residência da família e que seja o único dessa natureza a inventariar, sem limitação de outra ordem. Direito que permanece ainda que convolada novas núpcias. Sentença de improcedência mantida. Recurso desprovido (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 7ª Câmara de Direito Privado. Apelação n°. 3000697-50.2013.8.26.0022. Partes: Leandro Henrique Luni Castilho e Vanderlei Castilho, Relator: Mary Grün, Amparo, Data de Julgamento: 28/01/2015. Data de Registro: 29/01/2015).

ARROLAMENTO Direito real de habitação Cônjuge sobrevivente Direito estendido a todos os regimes de bens e que não está condicionado ao estado de viuvez do beneficiário Art. 1831, do Código Civil Irrelevância, ainda, a existência de outros bens a arrolar Desobrigatoriedade de pagamento de aluguel à herdeira Inteligência art. 1.415, do Código Civil Agravo desprovido (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 7ª Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento n°. 0183034-95.2011.8.26.0000. Partes: Hormízia Domiciano da Silva Ventreschi e Rudinei Ribeiro da Silva. Relator: Luiz Antonio de Godoy, Franca, Data de Julgamento: 20/03/2012. Data de Registro: 20/03/2012).

Todavia, vale aqui frisar que não há harmonia quanto a tal exegese, subsistindo, na verdade, diversas linhas argumentativas dão base a correntes distintas.

Isso porque a vitaliciedade do direito de habitação traz consigo acentuada polêmica, notadamente nas hipóteses em que o habitador omite a constituição de nova união, com o fito de continuar desfrutando do direito, ou nos casos em que há inequívoco abuso de direito no exercício da habitação.

Tais questões, no entanto, serão abordadas com mais vagar em capítulo próprio, cotejando-se as posições doutrinárias existentes com o entendimento jurisprudencial, de forma a analisar detidamente as vertentes soerguidas acerca deste sistema.

4.10. Extinção do Direito de Habitação Legal

Descendo ao exame da extinção do direito de habitação, sob o influxo da disposição contida no artigo 1.416, do Código Civil, segundo o qual “são aplicáveis à habitação, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto” (BRASIL, Lei n°. 10.406, 2002), fica claro que a extinção do direito de habitação deve se dar por todas as demais formas de extinção do usufruto.

Nesse contexto, Orlando Gomes pontua que, por tal razão, “a morte do usuário, a renúncia, a destruição da coisa, a consolidação e os outros modos de extinção do usufruto são comuns ao uso e à habitação”[6].

Assim, além das hipóteses já pontuadas em linhas anteriores, em que a extinção do direito de habitação se dá nos casos de implemento do termo ou condição, ou descumprimento das obrigações inerentes à habitação, é induvidoso que o direito em voga também se extingue no caso de morte do habitador.

Nesse caso, é bem de ver, os demais membros da família que residiam no imóvel não poderão continuar habitando o bem, dada a natureza intuitu personae do direito, que marca sua essência com caráter personalíssimo.

Colhe-se manifestação de Daniel Blikstein a respeito da questão em epígrafe (2011, p. 198):

Entretanto, em virtude da morte do cônjuge beneficiado com o direito real de habitação, tenha ele ou não constituído nova família, por seu caráter personalíssimo em relação aos demais sucessores do de cujus, haverá certamente a extinção da Habitação.

No mais, cumpre ressaltar que não implica a caducidade do instituto o simples fato de o habitador deixar de exercê-lo logo após o falecimento de seu consorte. Tal disposição, extremamente benéfica ao habitador, difere do adotado em outros ordenamentos, a teor do Direito Português, alhures examinado.

Calha à espécie pronunciamento do Colendo Superior Tribunal de Justiça a esse respeito:

RECURSO ESPECIAL - PEDIDO DE RETIFICAÇÃO DA PARTILHA HOMOLOGADA JUDICIALMENTE, PARA CONSTAR DIREITO DA VIÚVA AO USUFRUTO DE 1/4 DOS BENS DEIXADOS PELO AUTOR DA HERANÇA (ART. 1611, §1º, DO CC/1916) - RECONHECIMENTO, PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS, DO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO AO CÔNJUGE SUPÉRSTITE, COM FULCRO NO ART. 1.831, CC/02. INSURGÊNCIA DOS HERDEIROS.

(...)

3. A constituição do direito real de habitação do cônjuge supérstite emana exclusivamente da lei, sendo certo que seu reconhecimento de forma alguma repercute na definição de propriedade dos bens partilhados. Em se tratando de direito ex vi lege, seu reconhecimento não precisa necessariamente dar-se por ocasião da partilha dos bens deixados pelo de cujus, inocorrendo, por conseguinte, ofensa à coisa julgada. Nesse quadro, a superveniente declaração do direito real de habitação dispensa prévia rescisão ou anulação da partilha, pois com ela não encerra qualquer oposição.

4. De acordo com os contornos fixados pelo Código Civil de 2002, o direito real de habitação confere ao cônjuge supérstite a utilização do bem, com o fim de que nele seja mantida sua residência, independente do regime de bens do casamento e da titularidade do imóvel, afastado, inclusive, o caráter vidual estabelecido na legislação precedente. Substancia-se, assim, o direito à moradia previsto no art. 6° da Constituição Federal, assegurado ao cônjuge supérstite.

5.  Recurso Especial improvido (PODER JUDICIÁRIO, Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma. Recurso Especial n°. 1.125.901/RS. Partes: Hamilton Tonetti Magni e outros e Maria De Lourdes Fonseca Magni. Relator: Ministro Marco Buzzi, Rio Grande do Sul. Data do Julgamento: 20/06/2013. Data da Publicação/Fonte DJe 06/09/2013).

Consequência lógica da extinção do direito de habitação é a devolução do imóvel no estado de conservação em que o habitador o recebeu, como apregoa Caio Mário Da Silva Pereira[7]:

Cessando a habitação pelo advento do termo ou implemento da condição, far-se-á restituição do prédio ao proprietário ou seus herdeiros, no estado de conservação convencionado, ou, em falta de estipulação, naquele em que foi recebido, salvo deterioração derivada do uso regular.

Por derradeiro, cabe obtemperar que a extinção do condomínio entre os herdeiros não encerra a extinção do direito real de habitação, que fica mantido apesar do encerramento da copropriedade. Essa foi a exegese do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento das seguintes apelações:

Extinção de condomínio. Existência de direito real de habitação em favor da condômina. O direito real de habitação não representa óbice à extinção do condomínio, que é direito potestativo do condômino. Alienação judicial determinada, com a ressalva da existência direito real de habitação. Sentença mantida. Recurso a que se nega provimento (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 9ª Câmara de Direito Privado. Apelação n°. 1012194-90.2014.8.26.0562. Partes: Anália Cortes Marinho e Marcelo José Brasil. Relator: Mauro Conti Machado, Santos, Data de Julgamento: 22/09/2015. Data de Registro: 29/09/2015).

        

CONDOMÍNIO. EXTINÇÃO. ALIENAÇÃO JUDICIAL DA COISA COMUM. 1. O direito de habitação prescinde de qualquer formalidade como requerimento específico ou averbação em cartório de registro de imóveis. Assim, reconhecido o casamento, bem como a utilização do imóvel para moradia pelo cônjuge sobrevivente, está caracterizado o direito real de habitação. 2. O direito de habitação não obsta a alienação judicial da coisa comum para extinção do condomínio. Na elaboração do edital, deve ser expressamente consignado o direito real de habitação reconhecido em favor da ré. 3. Recurso parcialmente provido para este fim. (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 10ª Câmara de Direito Privado. Apelação n°. 0006962-51.2013.8.26.0077. Partes: Maria Helena Ribeiro dos Reis Costa e Marco Antonio Lucindo da Costa. Relator: Carlos Alberto Garbi, Birigüi, Data de Julgamento: 01/09/2015. Data de Registro: 02/09/2015).

Condomínio. Extinção por alienação. Parte ideal de imóvel adjudicado a terceiro, em execução de título extrajudicial. Direito real de habitação que não obsta a alienação. Litigância de má-fé não configurada. Sentença mantida. Recurso desprovido. (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 1ª Câmara de Direito Privado. Apelação n°. 0003913-36.2012.8.26.0562. Partes: Ignalba Borba Cangiano e Duty Erville Ripoli. Relator: Cláudio Godoy, Santos Data de Julgamento: 03/02/2015. Data de Registro: 05/02/2015).

Diante de moldura fática diversa, o Superior Tribunal de Justiça considerou extinto o direito real de habitação de cônjuge supérstite em relação a imóvel do qual eram coproprietários irmãos em condomínio formado muito antes da abertura da sucessão:

CIVIL. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. INOPONIBILIDADE A TERCEIROS COPROPRIETÁRIOS DO IMÓVEL. CONDOMÍNIO PREEXISTENTE À ABERTURA DA SUCESSÃO. ART. ANALISADO: 1.611, § 2º, do CC/16.

1. Ação reivindicatória distribuída em 07/02/2008, da qual foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 19/03/2010.

2. Discute-se a oponibilidade do direito real de habitação da viúva aos coproprietários do imóvel em que ela residia com o falecido. 3. A intromissão do Estado-legislador na liberdade das pessoas disporem dos respectivos bens só se justifica pela igualmente relevante proteção constitucional outorgada à família (art. 203, I, da CF/88), que permite, em exercício de ponderação de valores, a mitigação dos poderes inerentes à propriedade do patrimônio herdado, para assegurar a máxima efetividade do interesse prevalente, a saber, o direito à moradia do cônjuge supérstite.

4. No particular, toda a matriz sociológica e constitucional que justifica a concessão do direito real de habitação ao cônjuge supérstite deixa de ter razoabilidade, em especial porque o condomínio formado pelos irmãos do falecido preexiste à abertura da sucessão, pois a copropriedade foi adquirida muito antes do óbito do marido da recorrida, e não em decorrência deste evento.

5. Recurso especial conhecido e provido (PODER JUDICIÁRIO, Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma. Recurso Especial n°. 1.184.492/SE. Partes: José Domingos da Conceição e Kátia Cristina Pina Lima. Relator: Ministra Nancy Andrighi, Sergipe. Data do Julgamento: 01/04/2014. Data da Publicação/Fonte DJe 07/04/2014).

5. Resumo

Assim, com base no exposto, e em síntese, podem ser reunidas as seguintes características do direito real de habitação:


[1] ASSIS NETO, Sebastião et al. Manual de Direito Civil, volume único. 3ª ed: rev., amp. e atual. São Paulo: Juspodivm, 2015. P. 1458.

[2] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, família, sucessões, 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. 5 v. P. 595.

[3] ANTONINI, Mauro. PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.01.2002. 9. ed. rev. e atual. Barueri, São Paulo: Manole, 2015. P. 2111.

[4] BLINKSTEIN, Daniel. O direito real de habitação na sucessão hereditária. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. P. 215.

[5] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das coisas. 42. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 3 v. P. 114.

[6] GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21. ed. rev. e atual. por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2012. P. 329.

[7] PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. P. 210.

Sobre o autor
Marcio de Carvalho Valente

Assistente Jurídico no Gabinete dos Desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Pós-graduado em Direito Processual Civil (Universidade Presbiteriana do Mackenzie), Direito Civil (Escola Paulista da Magistratura) e Direito Público (Complexo de Ensino Damásio de Jesus).

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