“Não tem cabimento de falar em torcida organizada, pessoas que precisam ir escoltadas com aparato militar, porque senão eles se agridem ou são emboscados no meio do caminho. Isso não é torcedor, não tem que ser levado ao estádio de futebol. ”
Paulo Castilho, Promotor de Justiça de São Paulo
Domingo, após uma semana cansativa, sento-me para acompanhar as partidas de futebol ao final do dia. Quando repentinamente, deparo com uma cena que me deixa imensamente abalado.
Uma briga generalizada entre torcedores das organizadas do CRB e do CSA resultou em uma cena atordoante e grotesca, de revirar o estômago. Cerca de 15 “torcedores” do CRB cercaram um torcedor do CSA, pisoteando seu corpo, inclusive sua cabeça, tudo televisionado ao vivo, em rede nacional.
Diante disso, passei a refletir o que o mundo jurídico tem feito, ou pode fazer, para que cenas como essa, parem de acontecer com a frequência que tem ocorrido no Brasil.
Criadas para apoiar o seu time durante as partidas de futebol, posteriormente também migrando para outros esportes, as torcidas organizadas, seguindo o modelo capitalista, acabaram crescendo de maneira significativa, passando a ter um vasto capital, facilitando o seu aparelhamento.
Aparelhadas e com numerosos adeptos, as organizadas expandiram suas atividades, tendo como exemplo, a participação no carnaval e a comercialização de produtos. Atividades que servem como meio para a finalidade, que seria em tese, o apoio ao clube nas competições em que participar.
Porém, o crescimento dessas torcidas atravessou a esfera dos estádios e está presente cada vez mais fora deles. Os representantes dessas torcidas fazem exigências perante os dirigentes dos clubes, com a justificativa de que possuem uma grande influência com o restante dos adeptos. Podendo ou não, instaurar um caos interno caso suas demandas não sejam atendidas. Ingressos e benefícios são trocados por apoio político.
Não são poucas as vezes que presenciamos invasões aos centros de treinamento dos clubes, muito menos fachadas deterioradas e ônibus apedrejados. Tais atos mostram a força que tomaram as organizadas ao longo do tempo, e tem ligação direta com a execução precária dos dispositivos normativos, como o Estatuto do Torcedor, Lei nº 10.671 de 2003. Façamos uma breve análise de alguns dispositivos:
Art. 1o-A. A prevenção da violência nos esportes é de responsabilidade do poder público, das confederações, federações, ligas, clubes, associações ou entidades esportivas, entidades recreativas e associações de torcedores, inclusive de seus respectivos dirigentes, bem como daqueles que, de qualquer forma, promovem, organizam, coordenam ou participam dos eventos esportivos.
Logo neste artigo encontramos uma grande problemática existente em nosso país. Como grande exemplo, citaremos um recente confronto entre duas torcidas organizadas, dessa vez, dentro do estádio.
Ocorrida em Joinville no dia 08 de dezembro de 2013, a batalha campal ocorrida nas arquibancadas chocou o país e colocou em cheque a segurança do futebol brasileiro nos holofotes não só da mídia nacional, como também em âmbito internacional.
Nitidamente, olhando a situação fática antes mesmo do início do confronto, nem de longe a segurança necessária para aquela situação estava presente no dia do ocorrido. Pouco policiamento e uma péssima infraestrutura foram fatores determinantes para o desenrolar dos fatos.
Levando ainda em consideração que o artigo 1º-A do Estatuto coloca como um dos responsáveis para a prevenção da violência no esporte, as associações de torcedores. Justamente os grupos que estão sempre presentes nos conflitos dentro e fora dos estádios.
Art. 13. O torcedor tem direito a segurança nos locais onde são realizados os eventos esportivos antes, durante e após a realização das partidas.
Nesse caso, devemos responsabilizar as entidades encarregadas pelo descumprimento desse artigo, visto que o torcedor por muitas das vezes, se expõe a situações de extremo perigo para chegar ou sair de um evento esportivo.
Temos de atentar também para os confrontos entre torcidas organizadas previamente agendados, que estão se tornando uma rotina no Brasil. Com a popularização da internet, facilmente confrontos são agendados via redes sociais, e quem geralmente sofre os maiores impactos são os torcedores que são surpreendidos por estarem transitando com camisas de seus times no local acordado para o conflito.
Art. 13-A. São condições de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo, sem prejuízo de outras condições previstas em lei:
I - estar na posse de ingresso válido;
II - não portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência;
III - consentir com a revista pessoal de prevenção e segurança;
IV - não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, inclusive de caráter racista ou xenófobo;
V - não entoar cânticos discriminatórios, racistas ou xenófobos;
VI - não arremessar objetos, de qualquer natureza, no interior do recinto esportivo;
VII - não portar ou utilizar fogos de artifício ou quaisquer outros engenhos pirotécnicos ou produtores de efeitos análogos;
VIII - não incitar e não praticar atos de violência no estádio, qualquer que seja a sua natureza;
IX - não invadir e não incitar a invasão, de qualquer forma, da área restrita aos competidores.
X - não utilizar bandeiras, inclusive com mastro de bambu ou similares, para outros fins que não o da manifestação festiva e amigável.
Parágrafo único. O não cumprimento das condições estabelecidas neste artigo implicará a impossibilidade de ingresso do torcedor ao recinto esportivo, ou, se for o caso, o seu afastamento imediato do recinto, sem prejuízo de outras sanções administrativas, civis ou penais eventualmente cabíveis.
O artigo 13-A elenca os requisitos para o torcedor ter acesso aos estádios de futebol. Quem frequenta rotineiramente partidas de futebol, sabe que não são poucas as vezes que nos deparamos com os itens dispostos na Lei.
A grande problemática tem sido o controle de acesso aos estádios por parte dos torcedores que não cumprem as condições estabelecidas. O controle feito atualmente se mostra bastante ineficaz, visto que infratores voltam a descumprir os requisitos, sendo comum a reincidência por partes de integrantes das torcidas organizadas.
Recentemente, foi implementada a medida de realizar clássicos entre times onde historicamente há conflitos de organizadas com a presença de torcida única. Um ato severo, com a intenção de drasticamente acabar com as cenas de violência presenciadas no futebol nacional.
Porém, sabemos que tal medida está longe de ser a mais adequada. Recentemente, duas torcidas de Alagoas apresentaram um projeto de identificação por carteirinhas, através de um cadastro interno realizados nas torcidas organizadas, possibilitando um reconhecimento de cada membro de maneira mais rápida e fácil.
Apesar de melhorar bastante o sistema atualmente utilizado, não podemos deixar de citar o modelo europeu, de identificação biométrica, que se mostrou realmente eficaz na função de identificar os torcedores punidos, fazendo diminuir significativamente a violência, em países onde atos de extrema brutalidade foram destaque no cenário internacional nos anos 90.
Art. 39-A. A torcida organizada que, em evento esportivo, promover tumulto; praticar ou incitar a violência; ou invadir local restrito aos competidores, árbitros, fiscais, dirigentes, organizadores ou jornalistas será impedida, assim como seus associados ou membros, de comparecer a eventos esportivos pelo prazo de até 3 (três) anos.
Art. 39-B. A torcida organizada responde civilmente, de forma objetiva e solidária, pelos danos causados por qualquer dos seus associados ou membros no local do evento esportivo, em suas imediações ou no trajeto de ida e volta para o evento.
Como já citado anteriormente, encontramos muita dificuldade em punir as torcidas organizadas que descumprem o Estatuto do Torcedor, e mesmo quando as punições são aplicadas de maneira correta, há tentativas de burlar as sanções por parte dos envolvidos.
Além da complexa questão da identificação dos membros infratores das torcidas, temos também a adaptação que as mesmas realizam para não mais cumprir punições estipuladas pela lei.
Muitas das vezes, quando punidas de qualquer tipo de participação nos eventos, trocam de nomenclatura. Comparecem não uniformizadas, mas ao entrar no estádio voltam a agrupar-se em seu costumeiro local de encontro e até mesmo falsificam identificação para conseguir o acesso ao jogo.
A gravidade da situação é percebida quando, acompanhamos que nos últimos anos os casos de morte em conflitos de torcidas organizadas vêm aumentando. Mesmo quando identificados os autores dos crimes, não há uma responsabilização das organizadas pelos atos de seus membros.
Não sendo punidas severamente, as organizadas não exercem o combate interno aos atos delituosos praticados pelos seus membros. Como exemplo dessa situação, temos, dentre os presos do conflito entre torcidas de Corinthians e Palmeiras, no dia 03 de abril de 2016, que resultou na morte de um homem e a depredação de trens, dois torcedores que foram detidos no episódio de Kevin Espada, boliviano de 14 anos, morto por um sinalizador lançado pela torcida corintiana em 2013, durante partida da Libertadores.
Art. 41-B. Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores em eventos esportivos:
Pena - reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa.
§ 1o Incorrerá nas mesmas penas o torcedor que:
I - promover tumulto, praticar ou incitar a violência num raio de 5.000 (cinco mil) metros ao redor do local de realização do evento esportivo, ou durante o trajeto de ida e volta do local da realização do evento;
II - portar, deter ou transportar, no interior do estádio, em suas imediações ou no seu trajeto, em dia de realização de evento esportivo, quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência.
§ 2o Na sentença penal condenatória, o juiz deverá converter a pena de reclusão em pena impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, pelo prazo de 3 (três) meses a 3 (três) anos, de acordo com a gravidade da conduta, na hipótese de o agente ser primário, ter bons antecedentes e não ter sido punido anteriormente pela prática de condutas previstas neste artigo.
§ 3o A pena impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, converter-se-á em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta.
§ 4o Na conversão de pena prevista no § 2o, a sentença deverá determinar, ainda, a obrigatoriedade suplementar de o agente permanecer em estabelecimento indicado pelo juiz, no período compreendido entre as 2 (duas) horas antecedentes e as 2 (duas) horas posteriores à realização de partidas de entidade de prática desportiva ou de competição determinada.
§ 5o Na hipótese de o representante do Ministério Público propor aplicação da pena restritiva de direito prevista no art. 76 da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, o juiz aplicará a sanção prevista no § 2o
Tornamos a ressaltar, que não havendo punições severas, dado o grande nível de reincidência, esses grupos continuarão a vandalizar os eventos esportivos da maneira que lhes convém.
Dependendo do quão necessário for a tomada de atitudes drásticas, estender a punição aos clubes que não romperem vínculos com membros praticantes de atividades delituosas, através de multas ou até mesmo suspensão de campeonatos.
Clamamos pelas mudanças necessárias para que o futebol brasileiro rume para um novo tempo, onde as famílias possam comparecer aos jogos, sem temer por sua vida no trajeto e dentro do estádio, devolvendo o esporte para quem sabe o apreciar de verdade.
Referências
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Estatuto do torcedor – Lei nº 10.671 de 15 de maio de 2003
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http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-03/promotor-diz-que-torcidas-organizadas-atuam-como-gangues-e-trazem-panico