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Violência obstétrica: a dor além do parto

Agenda 21/03/2018 às 14:33

A pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, mostrou que uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto.

Esta ainda é uma forma de violência com nome pouco familiar, mas sua prática não é nada recente nem desconhecida da maioria das mulheres brasileiras: a violência obstétrica. Esta se define como qualquer ato ou intervenção direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera (que deu à luz recentemente), e/ou ao seu bebê, praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências. A pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, mostrou que uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. As mais comuns, segundo o estudo, são gritos, procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação e até negligência.

Há outras formas de praticar violência obstétrica, a exemplo de impedir que a mulher seja acompanhada por alguém de sua preferência (direito garantido pela Lei nº 11.108/2005); tratá-la de forma agressiva, não empática, grosseira, zombeteira, ou de qualquer forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido durante o trabalho de parto, parto e pós-parto; tratá-la de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e diminutivos; submetê-la a procedimentos dolorosos desnecessários ou humilhantes (lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos, posição ginecológica com portas abertas); submetê-la a mais de um exame de toque, especialmente por mais de um profissional; ministrar hormônios sintéticos sem indicação real para tornar o parto mais rápido; fazer episiotomia (corte no períneo) sem consentimento; fazer da parturiente “cobaia” para realizar procedimentos desnecessários apenas para exposição a alunos residentes; impedir que o bebê vá imediatamente aos braços e peito da mãe após o nascimento; realizar procedimentos violentos e desnecessários no recém-nascido; dentre outros atos.

O parto já foi culturalmente tratado como um evento natural e era assunto dado aos cuidados de outras mulheres, em sua maioria com saberes populares e ancestrais: as parteiras. Muitos de nós ainda nasceu sob a égide dessa cultura, como esta que vos escreve. Mas quando o parto passou a ser tratado como um evento médico, passou a ser ignorado o conhecimento das mulheres sobre os seus corpos, bem como se pôs em total descrédito o saber e tradição das parteiras, patologizou-se o estado de gravidez, a mulher passou a ser tratada como incapaz e doente, além de ter sido roubada sua autonomia e protagonismo no momento do parto. Sua voz não é levada em conta, suas escolhas são ignoradas, o saber dos profissionais da saúde é inquestionável, mesmo quando se trata de práticas repetidas ao longo dos anos sem nenhuma evidência científica sólida que comprove sua utilidade (a exemplo da episiotomia (corte no períneo) e a manobra de Kristeller (empurrar a barriga): os manuais da Organização Mundial de Saúde orientam que o primeiro procedimento deve ser feito de forma estritamente seletiva e o segundo é indistintamente condenado há mais de 30 anos).

Além disso, ainda há uma epidemia de cesarianas sendo realizadas em todo o país, pondo em risco a vida de muitas mães e bebês de forma desnecessária. A cesariana é uma cirurgia incrível e salva muitas vidas todos os dias, mas apenas quando é feita em situações em que há indicação real. Quando realizada sem indicação, expõe mãe e bebê a risco de hemorragias e infecções, além de dificultar a amamentação e de expor o corpo da mãe e da criança a uma quantidade de medicamentos muito grande que vem a fragilizar sua imunidade. A pesquisa “Nascer no Brasil”, divulgada pela FioCruz em 2014, revela que 80% dos nascimentos no Brasil acontecem no setor público e 20% no privado. Destes, 52% ocorrem através de cesariana. No setor público, 46% dos nascimentos acontecem através de cesariana, sendo que na rede privada este número salta para a cifra alarmante de 88%. A recomendação da Organização Mundial de Saúde é que apenas 15% dos nascimentos ocorram por esta via. Sem contar que a maior parte das cesáreas provoca nascimentos prematuros, roubando dos bebês a oportunidade de ter um nascimento respeitoso e de receber da sua mãe tudo o que o seu corpo precisa para nascer pronto para enfrentar esse mundo agitado aqui fora. Ainda perdem a oportunidade de receber as massagens no tórax que são feitas pelas contrações uterinas e ensinam o seu corpo a respirar, já que durante a gestação esse processo acontece através do cordão umbilical. Mãe e bebê perdem também o momento mágico em que a ocitocina, o hormônio do amor, corre naturalmente em suas veias e promove uma ligação ainda maior entre esses dois seres que estão nascendo. Sim, quando nasce um bebê, nasce também uma mãe.

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Por visualizar toda a dificuldade que as mulheres enfrentam nos serviços públicos e privados de saúde é que o movimento pela humanização do parto no Brasil vem crescendo. Não há mudança sem demanda, por isso é preciso ter as informações necessárias para não ser mais uma vítima desta violência, não aceitar nenhum procedimento sem saber do que se trata, além de acreditar no poder do seu corpo que é capaz de gerar uma vida e poderá também ser capaz de parir. Michel O´Dent, obstetra de referência nas políticas de humanização do nascimento diz que “Para mudar o mundo, é preciso mudar a forma de nascer”. Essa luta é por respeito ao direito de ter um parto respeitoso. Há muitas pesquisas que comprovam que a forma pela qual nascemos é determinante para muitos fatores ao longo da vida, especialmente os emocionais.

Alguém pode pensar: você é advogada e não profissional da saúde, por que está escrevendo sobre isso? Porque sou mulher e tenho muitas mulheres no meu círculo de convivência e qualquer uma de nós pode vir a ser vítima de um ato de violência obstétrica se não estivermos acompanhadas de profissionais humanizados. Nossas maiores proteções são a informação e o empoderamento. Por isso, não nos silenciemos! E se for preciso, vamos gritar!

Sobre a autora
Leonellea Pereira

Doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Mestra em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismos (UFBA). Especialista em Ciências Penais (UNIDERP) e também em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça (UFBA). Graduada em Direito (UEPB). Advogada (OAB/BA) na Presidência da OAB Subseção Irecê - BA (2022-2024). Professora do Curso de Direito da Faculdade Irecê - FAI. Técnica Universitária da UNEB Campus XVI - Irecê. Mediadora Judicial (NUPEMEC/TJBA/CNJ). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7207217841688056. E-mail: leonellea@hotmail.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Leonellea. Violência obstétrica: a dor além do parto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5376, 21 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49819. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Publicado na Revista Meio, ano 03, edição 16, outubro/novembro 2015.

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