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O fracasso da Lei nº 10.409/02

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Agenda 29/03/2004 às 00:00

BREVES COMENTÁRIOS ACERCA DAS LEIS ANTITÓXICOS

As medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinam dependência física ou psíquica ao indivíduo eram regidas pela Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976. Em seu bojo, estão contidas regras relativas à prevenção (arts. 1° a 7°), tratamento e recuperação (arts. 8° a 11), crimes e penas (arts. 12 a 19) pertinentes ao tema, além do procedimento criminal que deveria ser obedecido na apuração dos delitos em comento.

Ocorre que a sobredita lei, depois de mais de 25 anos em vigor, tornou-se defasada e carente de mudanças, posto que, como é cediço, a sociedade e, conseqüentemente, o Direito Criminal passaram por significantes mudanças ao longo desse tempo.

Nesse diapasão, visando à atualização e ao aprimoramento da Lei n° 6.368/76, tramitou no Congresso Nacional, durante 11 anos, o que hoje se conhece como a Lei n° 10.409, de 11 de janeiro de 2002. Criada para regular toda a matéria relativa aos entorpecentes ilícitos, a nova lei, que entrou em vigor em 28 de fevereiro de 2002, haveria de ser inovadora e completa, dispondo sobre prevenção, tratamento, fiscalização, controle e repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica.

Entretanto, a citada lei, que originalmente continha cinqüenta e nove artigos, sofreu inúmeros vetos por parte da Presidência da República, restando menos da metade de seu texto, o que, nas palavras de Sídio Rosa de Mesquita Júnior, "desnaturou sua ideologia inicial e fez com que perdurassem apenas textos esparsos, repletos de contradições". [1]

De fato, a sistemática adotada pela nova lei antitóxicos é extremamente confusa, pouco técnica e dá azo a grandes discussões interpretativas. Renato Flávio Marcão afirma que "permeado de inconstitucionalidades e impropriedades técnicas, o Projeto que a ela deu origem contou com dezenas de vetos Presidenciais, e a sobra acabou por constituir uma verdadeira colcha de retalhos". [2]

Ao contrário do que se quis, a Lei n° 10.409/02 não trouxe solução para as questões jurídico-penais e processuais atinentes à prevenção e à repressão do uso e tráfico de drogas ilícitas, antes, constituiu-se num grande problema de hermenêutica jurídica. [3]

São pesadas as críticas tecidas acerca da nova lei antitóxicos. Para Renato Flávio Marcão, a Lei n° 10.409/02 "representa, sem sombra de dúvida, o pior exemplo da produção desordenada e caótica do Poder Legislativo brasileiro, bem como a desorientação do Poder Executivo, que não vetou completamente o Projeto que a ela deu origem, quando deveria". [4] Renato de Oliveira Furtado considera a citada lei um "novo Frankstein Jurídico". [5] Para o autor, acompanhado de Renato Marcão, a nova lei impressiona e assusta:

"Impressiona por ter sido objeto de estudos pelo Poder Legislativo por mais de uma década e ter resultado em um ‘nada jurídico’ (ou injurídico); impressiona pelo conjunto de equívocos e erros crassos que alberga (mandato de citação, p. ex., cf. art. 38, caput); impressiona pelo conjunto de ‘regras perdidas’; pelo absurdo de certas disposições; pelos retalhos abandonados no universo jurídico após vetos Presidenciais ao Projeto que ela deu origem". (6)

Tamanhas são as discussões jurídicas engendradas pela Lei n° 10.409/02, que até mesmo o artigo 59 do Projeto que lhe originou, onde se revogava integralmente a Lei n° 6.368/76, precisou ser vetado, não sendo possível abandonar, de pronto, a ultrapassada legislação anterior. Como resultado, encontram-se em vigor duas leis antitóxicos parcialmente mutiladas face a inaplicabilidade de alguns dispositivos de uma e de outra, proporcionando as mais diversas conclusões e confusões jurídicas no campo interpretativo. De acordo com Renato Marcão, in verbis:

"Estamos diante de uma Lei que, a pretexto de melhorar a antiga sistemática da Lei 6.368/76 não a revogou. Não define crimes; estabelece um procedimento que não se aplica a nenhuma hipótese, a nenhum delito; não trata de inúmeras questões inevitáveis, que permanecem regidas pela Lei 6.368/76, como as pertinentes à semi-imputabilidade e inimputabilidade, tratadas nos arts. 19 e 29 do Diploma que se pretendeu minimizar como superado.

Além de não ajudar na prevenção e repressão dos crimes envolvendo produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, a Nova Lei só veio tumultuar ainda mais a questão e proporcionar mais impunidade.

Em se tratando de um Projeto que tramitou desde 1991, é inaceitável uma Lei tão ruim, péssima sob quase todos os aspectos, e pior que o texto do Projeto sancionado em parte, somente a ausência de coragem e vocação jurídica de quem não o vetou completamente." [7]

Tendo em vista o posicionamento exposto, que representa o entendimento majoritária da doutrina, e com vistas a evitar maiores e mais acirradas discussões doutrinárias e jurisprudenciais, o próprio Governo Federal, percebendo a inquietude da comunidade jurídica, encaminhou ao Congresso Nacional o texto do Projeto de Lei n° 6.108/2002, que altera a Lei n° 10.409/2002 e também a Lei n° 6.368/76, buscando o que de início se almejava: uma legislação única, moderna e que contemple o regramento necessário ao efetivo combate às drogas ilícitas em nosso país.


APLICABILIDADE DOS DISPOSITIVOS DA LEI N° 10.409/02

As severas e fundadas críticas à nova lei antitóxicos tangenciam a inaplicabilidade do procedimento nela previsto. Os defensores dessa corrente baseiam-se no que dispõe o artigo 27 da referida lei e no fato de o Capítulo III da mesma, onde haviam sido definidos os tipos penais pertinentes às drogas ilícitas, ter sido completamente vetado pelo Presidente da República.

Estabelece o citado artigo 27 que "o procedimento relativo aos processos por crimes definidos nesta Lei rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal" (grifos acrescidos). Ocorre que, com os vetos presidenciais, a nova lei não definiu qualquer tipo penal. Se o procedimento previsto na nova lei há de ser aplicado aos crimes nela definidos e inexistindo a definição de qualquer tipo penal na mesma, conclui-se, prima facie, que as disposições relativas ao procedimento previsto na Lei n° 10.409/02 não seriam aplicáveis.

Observe-se que a regra do artigo 27 da Lei n° 10.409/02 é semelhante àquela contida no artigo 20 da Lei n° 6.368/76 ("o procedimento dos crimes definidos nesta Lei reger-se-á pelo disposto neste capítulo aplicando-se subsidiariamente o Código de Processo Penal"), entretanto, ao contrário da primeira, nesta os tipos penais estão claramente definidos em seu Capítulo III – Dos Crimes e das Penas (arts. 12 a 19).

Assim, considerando que a Lei n° 10.409/02 nenhum crime definiu, permaneceria em vigor os tipos penais e o procedimento dispostos na Lei n° 6.368/76, restando inaplicáveis as regras previstas nos Capítulos IV (Do Procedimento Penal) e V (Da Instrução Criminal) da nova e confusa lei.

Este é o posicionamento, entre outros, de Guilherme de Souza Nucci. [8]

Luiz Flávio Gomes e Rômulo de Andrade Moreira discordam do renomado autor e defendem a aplicação na íntegra do procedimento adotado pela Lei n° 10.409/02. Isso porque, segundo apontam, não existem dúvidas acerca dos crimes aos quais se refere o artigo 27 da nova Lei. [9]

Escreveu Luiz Flávio Gomes que "pelo fato de não existir a menor dúvida sobre a quais crimes refere-se o art. 27 da Lei n° 10.409/02 (é evidente, óbvio e ululante que esse dispositivo legal diz respeito aos crimes previstos na Lei n° 6.368/76), segundo nosso ponto de vista, parece muito claro que o novo procedimento tem que ser observado em todos os seus termos, sob pena de nulidade total do processo (por inobservância do devido processo legal)". [10]

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Por sua vez, Rômulo de Andrade leciona que:

"Em que pese reconhecermos a atecnia resultante do veto [ao Capítulo III da Lei n° 10.409/02], não vemos obstáculo jurídico em admitir a validade deste novo procedimento em relação aos delitos tipificados na Lei n° 6.368/76, mesmo porque esta é a legislação que em nosso País tipifica delitos desta natureza. Por outro lado, ao estabelecer um novo procedimento, a lei nova, implicitamente, revogou a lei anterior nesta sua parte procedimental (art. 2°, §1°, da Lei de Introdução ao Código Civil)." (11)

Por fim, há ainda outro posicionamento no qual é defendida a vigência apenas do procedimento relativo à Instrução Criminal (arts. 37 a 45), prevista no Capítulo V da Lei n° 10.409/02, rechaçando a aplicabilidade do procedimento pré-processual da fase investigativa (arts. 27 a 34) contido no Capítulo IV da Nova Lei.

O fundamento para essa tese também está contido no artigo 27 da Lei n° 10.409/02, especificamente na expressão "rege-se pelo disposto neste Capítulo" (grifei). Consoante entendimento de Renato Flávio Marcão,

"É necessário ressaltar, entretanto, que o art. 27 diz que ‘o procedimento relativo aos processos por crimes definidos nesta Lei rege-se pelo disposto neste Capítulo’ (coloquei o itálico). O Capítulo IV (do procedimento penal) regula procedimento relativo a fase inquisitiva, e sua ineficácia, a nosso ver e sentir, não afeta em nada a eficácia do Capítulo V (da instrução criminal), muito embora o art. 27 se refira ao ‘procedimento relativo aos processos’. É que o mesmo art. 27 restringe seu alcance ao próprio Capítulo em que se encontra (Capítulo IV), e que só cuida da fase inquisitiva, conforme consignado." [12]

Muito embora o entendimento firmado pela Egrégia 3ª Procuradoria de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo seja no sentido que "para as infrações penais da Lei 6.368/76, continua em vigor o procedimento previsto no mesmo diploma legal, tendo em vista a inaplicabilidade do procedimento da Lei 10.409/02, ressalvando-se que eventual reconhecimento de nulidade por adoção de rito indevido estará sujeito a comprovação de efetivo prejuízo, nos termos do art. 563, CPP", a jurisprudência, a contrario sensu, tem entendido que "a inobservância da regra prevista no art. 38, da Lei 10.409/2002, que alterou disposições da Lei 6.368/76, impõe seja declarado nulo ex radie o procedimento, por importar óbvia violação do direito constitucional à ampla defesa", [13] prestigiando, pelo menos num primeiro momento, o procedimento referente à instrução criminal (Capítulo V, arts. 37 a 45) adotado pela nova lei antitóxicos.

Também a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo concedeu HC em processo por crime de tráfico de drogas, anulando o processo a partir da citação, determinando a adoção do rito previsto nos artigos 38 a 41 da Lei n° 10.409/02. (14)


PROCEDIMENTO DA NOVA LEI

Não obstante a divergência de posicionamentos sobre a aplicabilidade ou não do procedimento contido na Lei n° 10.409/02 e, além disso, a ausência de um firme entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da eficácia ou ineficácia dos Capítulos IV e V da nova Lei, cumpre-nos, em linhas gerais, apontar algumas importantes modificações de rito, pré-processual e processual, trazidas pela citada disposição normativa.

Fase Pré-Processual

A fase pré-processual, que se refere, essencialmente, à fase policial, está prevista nos artigos de 28 a 34, inseridos no Capítulo IV da Lei n° 10.409/02.

Em que pese o fato de o caput do artigo 28 ter sido vetado, prevaleceram - por mais estranho que isso possa parecer à boa técnica de estruturação legal - seus parágrafos 1° e 2°, determinando que "para efeito da lavratura do auto de prisão em flagrante e estabelecimento da autoria e materialidade do delito, é suficiente o laudo de constatação da natureza e quantidade do produto, da substância ou da droga ilícita, firmado por perito oficial ou, na falta desse, por pessoa idônea, escolhida, preferencialmente, entre as que tenham habilitação técnica" e que "o perito que subscrever o laudo a que se refere o § 1° não ficará impedido de participar da elaboração do laudo definitivo".

Insta observar que o citado laudo de constatação serve apenas para comprovação provisória da materialidade do delito e que nada indica quanto a autoria delitiva, tendo, portanto, o legislador se equivocado neste particular.

Diz o artigo 29 da Lei n° 10.409/02 que "o inquérito policial será concluído no prazo máximo de 15 (quinze) dias, se o indiciado estiver preso, e de 30 (trinta) dias, quando solto", prevendo seu parágrafo único que "os prazos a que se refere este artigo podem ser duplicados pelo juiz, mediante pedido justificado da autoridade policial".

Com a nova regra do citado artigo, além de o prazo para conclusão do Inquérito Policial, nos casos de indiciado preso, ter sido aumentado em cinco dias (posto que o art. 10, caput, do CPP, prevê, genericamente, o prazo de dez dias), passou-se a permitir também o pedido de dilação de prazo em qualquer circunstância em que se encontre o investigado, preso ou solto, o que somente era possível, segundo se infere do artigo 10, §3°, do CPP, quando o indiciado estivesse solto.

Ademais, o parágrafo único do artigo 29 prevê apenas possibilidade de duplicação dos prazos, de maneira que, ao que parece, não é mais possível a prorrogação reiterada de prazos, praxe comum na esfera policial devido ao grande volume de expedientes.

Rômulo de Andrade Moreira nota que, excepcionalmente, a nova lei, em seu artigo 30, determina que o relatório do Inquérito Policial indique, expressa e justificadamente, a qualificação jurídica do fato, com vistas a evitar o indiciamento arbitrário de meros usuários como traficantes e vice-versa. [15]

Do artigo 32 restaram apenas seus parágrafos 2° e 3°. Vejamos: "§ 2°. O sobrestamento do processo ou a redução da pena podem ainda decorrer de acordo entre o Ministério Público e o indiciado que, espontaneamente, revelar a existência de organização criminosa, permitindo a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, justificado no acordo, contribuir para os interesses da Justiça." e "§ 3°. Se o oferecimento da denúncia tiver sido anterior à revelação, eficaz, dos demais integrantes da quadrilha, grupo, organização ou bando, ou da localização do produto, substância ou droga ilícita, o juiz, por proposta do representante do Ministério Público, ao proferir a sentença, poderá deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la, de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), justificando a sua decisão".

Por ser um dispositivo sem caput, há quem entenda não ser aplicável. Embora o §2° refira-se a processo, não se trata de sobrestamento da ação penal, mas do inquérito policial ou da investigação. Fernando Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves esclarecem que o Capítulo IV, onde está inserido o dispositivo, "trata, em sua quase totalidade, do inquérito policial e de medidas investigatórias específicas, deixando para o capítulo V (instrução criminal) a incumbência de regulamentar, em todos os aspectos, o novo rito judicial em relação ao tráfico de entorpecentes". [16] Outrossim, no próprio parágrafo §2° há referência a indiciado, o que corrobora a tese de que, nas palavras de Eduardo Araújo Silva "o emprego do vocábulo ‘processo’ pelo legislador foi equivocado, pois o dispositivo trata da colaboração na fase pré-processual. O correto seria o emprego da expressão ‘sobrestamento do inquérito ou da investigação’, pois a colaboração na fase processual está disciplinada no §3° do mesmo dispositivo". [17]

Ocorre, entretanto, que a lei não estabeleceu prazo para o sobrestamento do inquérito e, por assim ser, deve-se, por aplicação analógica (art. 3°, CPP), no entendimento de Rômulo de Andrade Moreira, utilizar-se do artigo 89, caput, da Lei n° 9.099/95, sem, contudo, ser possível a suspensão do prazo prescricional, por absoluta falta de previsão legal. [18]

Por derradeiro, o artigo 33 autoriza, in verbis:

"Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos na Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995, mediante autorização judicial, e ouvido o representante do Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios: I – infiltração de policiais em quadrilhas, grupos, organizações ou bandos, com o objetivo de colher informações sobre operações ilícitas desenvolvidas no âmbito dessas associações; II – a não-atuação policial sobre os portadores de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que entrem no território brasileiro, dele saiam ou nele transitem, com a finalidade de, em colaboração ou não com outros países, identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.".

Outrossim, o Ministério Público e a Autoridade Policial, havendo indícios suficientes de prática criminosa e visando à adoção dos procedimentos investigatórios previstos no artigo 33, poderão requerer ao Juiz, na forma do artigo 34,

"I – o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, patrimoniais e financeiras; II – a colocação, sob vigilância, por período determinado, de contas bancárias; III – o acesso, por período determinado, aos sistemas informatizados das instituições financeiras; IV – a interceptação e a gravação das comunicações telefônicas, por período determinado, observado o disposto na legislação pertinente e no Capítulo II da Lei no 9.034, de 1995."

Fase da Instrução Criminal

Os artigos de 37 a 45, inseridos no bojo do Capítulo V da Lei n° 10.409/02, trata da segunda fase da persecutio criminis, qual seja, a fase judicial.

A regra prevista no caput do artigo 37 traz uma inovação no prazo de oferecimento da denúncia. Com o novo dispositivo, o Ministério Público, uma vez recebido os autos do Inquérito Policial em juízo, terá dez dias para adotar uma das providências elencadas nos incisos I, II, III e IV do supramencionado artigo. São elas: requerer o arquivamento (inciso I), requisitar diligências (inciso II), oferecer a denúncia (inciso III) e deixar, justificadamente, de propor a ação penal (inciso IV). Observe-se que o prazo de dez dias é o mesmo, estando o indiciado preso ou não.

Grande inovação trouxe o inciso IV do artigo 37, pois admite claramente mitigação ao princípio da obrigatoriedade, prestigiando o princípio da oportunidade. Note-se que a hipótese de deixar o MP de propor a ação penal é distinta da de requerer o arquivamento. Nesta, as regras não mudaram, podendo o representante do parquet requerê-lo em razão da atipicidade do fato, extinção da punibilidade, falta de justa causa e outras circunstâncias já sedimentadas em nossa doutrina e jurisprudência. No que tange à regra do inciso IV, o Ministério Público poderá deixar de propor a ação penal fundamentando seu entendimento em razões de política criminal.

O artigo 38 é o que mais celeuma trouxe à comunidade jurídica. Alvo de intensas discussões, prevê o caput do dispositivo mencionado que

"oferecida a denúncia, o juiz, em 24 (vinte e quatro) horas, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data da juntada do mandato aos autos ou da primeira publicação do edital de citação, e designará dia e hora para o interrogatório, que se realizará dentro dos 30 (trinta) dias seguintes, se o réu estiver solto, ou em 5 (cinco) dias, se preso." (grifos acrescidos).

Inovou o artigo 38 ao prever uma resposta preliminar à acusação antes do recebimento da denúncia pelo juiz. Nessa resposta prévia, o denunciado tem a oportunidade de argüir toda e qualquer matéria de defesa que julgar necessária a fim de obstacularizar a instauração da ação penal, podendo suscitar argumentos que ataquem o mérito da acusação e, se entender cabíveis, também exceções que possam beneficiá-lo.

A importância desta defesa prévia é tamanha que, não sendo apresentada no prazo legal de dez dias, o juiz nomeará defensor para fazê-lo (art. 38, §3°, Lei n° 10.409/02). Aqui encontra-se a primeira imperfeição da norma que Renato Flávio Marcão muito bem enunciou:

"Pelo que se vê, pouco importou ao legislador se o acusado contratou ou não advogado de sua confiança e se a opção defensória foi pelo silêncio, o que é perfeitamente possível, inclusive em razão do princípio da ampla defesa, e à defesa técnica compete optar pelo caminho a se seguir, inclusive pelo total e absoluto silêncio, conforme autorização Constitucional.

O texto é taxativo no sentido de que não havendo resposta no prazo legal, o Juiz ‘nomeará’ defensor para oferecê-la. Verificada a hipótese tratada na lei, a nomeação será obrigatória." (19)

Outra impropriedade do citado artigo é o uso do termo citação para designar o ato de comunicação ao acusado para apresente sua resposta preliminar. É mister atentar-se para o fato de que a entrega da defesa prévia é anterior ao recebimento da denúncia e, portanto, não poderia haver citação nessas condições. Sobre o tema, Renato de Oliveira Furtado disserta com maestria. In verbis:

"Citação não pode ser confundida com Notificação e não é possível falar-se já em citação quando a denúncia nem mesmo foi ainda recebida. A citação é ato introdutivo da instância penal que confere à relação processual a angularidade que a caracteriza como actum trium personarum, o que, nesta face do artigo em comento [art. 38], ainda não se instalou, podendo a denúncia vir até mesmo a ser não recebida. Seria o caso, a exemplo do procedimento análogo existente no art. 514 do C.P.P., de falar-se Notificação". [20]

Parece assistir razão ao ilustre estudioso, sendo certo que o Projeto de Lei n° 6.108/2002, proposto com a finalidade de dirimir as incongruências da Lei n° 10.402/02, corrige o erro técnico da redação atual, substituindo o termo citação por notificação. Malgrado tal benesse, olvidou-se o mencionado Projeto de Lei de indicar o momento da citação do acusado, pois em nenhum momento de seu texto faz menção ao termo. Aprovado o Projeto tal qual se encontra hoje, ter-se-ia um processo sem citação, o que é absolutamente inaceitável.

Versando sobre a "citação", percebe-se com clareza a falta de atenção do legislador e sua impropriedade técnica ao usar o termo mandato para a ela se referir, quando o certo seria mandado.

Questão das mais controversas, ainda no âmbito do artigo 38 da Lei n° 10.409/02, é a do interrogatório. Afirma a doutrina que há uma indiscutível contradição entre o artigo 38 e o artigo 41 da nova lei antitóxicos. Vejamos.

O caput do artigo 38, in fine, diz que ao proferir o despacho em que ordenará a "citação" do acusado para responder à acusação, o Juiz designará dia e hora para o interrogatório, que, pela lei, deverá ser realizado no decorrer dos trinta ou cinco dias seguintes, dependendo se o réu estiver solto ou preso, respectivamente. Ter-se-ia, ao que parece, um interrogatório antes do recebimento da denúncia e, considerando a situação de réu preso e os prazos constantes nos parágrafos do artigo 38, antes mesmo do recebimento da resposta preliminar do acusado.

Manifestando-se sobre o assunto, Renato Flávio Marcão explicita, de forma didática, a confusão jurídica gerada pela regra do artigo 38, no que tange ao interrogatório. Vale a pena transcrever, na íntegra, sua manifestação.

"Com efeito, nos precisos termos do art. 38, caput, última parte, da Lei 10.409/2002, ao proferir o despacho em que ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, o Juiz designará dia e hora para o interrogatório, que se realizará dentro dos 30 (trinta) dias seguintes, se o réu estiver solto, ou em 5 (cinco) dias, se preso.

Pela interpretação que se extrai do texto, o prazo de 30 (trinta) ou 05 (cinco) dias (seguintes) será contado do despacho e não da resposta escrita, já que a designação ocorrerá no despacho inicial, e nesta ocasião o juiz ainda não saberá a data em que será apresentada a resposta escrita, inclusive em razão das disposições contidas nos §§ 3º, 4º e 5º, do art. 38.

Há um grave problema, entretanto, que decorre da impossibilidade de realização do interrogatório dentro do prazo de 05 (cinco) dias, em se tratando de acusado preso, pois não é possível admitir seja ele interrogado antes da apresentação de sua resposta escrita, para a qual dispõe do prazo de 10 (dez) dias, contado da juntada do mandado de citação aos autos ou da primeira publicação do edital de citação (o que já vai demandar outros tantos dias). E mais, como interrogá-lo no prazo de 05 (cinco) dias se ainda é possível o acréscimo de mais 10 (dez) dias no prazo para a resposta escrita, além dos dez iniciais, na hipótese do § 3º do art. 38 e, em qualquer caso, dispondo o Ministério Público de 05 (cinco) dias para manifestar-se sobre a resposta escrita (§ 4º) e o Juiz de outros 05 (cinco) para decidir (§ 4º) sobre o recebimento ou não da denúncia, além de outros 10 (dez) na hipótese de se determinar a realização de diligências antes do recebimento (§ 5º) ?

Mesmo em se tratando de denunciado solto, não raras vezes seria impossível a realização do interrogatório em 30 (trinta) dias, contados da data do despacho inicial, a se considerar as hipóteses e os prazos regulados nos §§ 3º, 4º e 5º do art. 38.

Além da questão dos prazos inconciliáveis, pela lógica do artigo 38, caput, parte final, em se tratando de acusado preso o interrogatório sempre ocorreria antes mesmo da resposta escrita, e o que é pior e mais absurdo, antes do recebimento da denúncia." [21]

Irretocável a lição e as críticas do ilustre Promotor de Justiça do Estado de São Paulo.

Não bastasse a questão dos prazos inconciliáveis, os artigos 40 e 41 da Lei n° 10.409/02 [22] apontam para a realização de um suposto novo interrogatório, dessa vez levado a termo na audiência de instrução e julgamento, antes da inquirição das testemunhas. Ao que parece, no procedimento adotado pela nova lei antitóxicos haveria dois interrogatórios: um antes do recebimento da denúncia (totalmente descabido, frise-se) e outro na audiência de instrução e julgamento.

Os posicionamentos doutrinários acerca do tema são diversos. Fernando Capez e Vitor Eduardo Rios Gonçalves sustentam que há sintonia entre as regras contidas nos artigos 38 e 41, afirmando que a intenção do legislador foi aumentar a possibilidade de defesa dos acusados. [23] Para a maioria da doutrina, entretanto, a parte final do artigo 38, caput, não reúne condições de aplicabilidade e, assim sendo, a melhor interpretação seria a que a lei exige apenas aquele interrogatório que será realizado na audiência de instrução e julgamento, posto que inócuo o primeiro interrogatório realizado antes do recebimento da denúncia e, no caso de indiciado preso, antes de sua resposta preliminar. [24]

O Projeto de Lei n° 6.108/02 parece corroborar este último posicionamento. Tanto é verdade que, mantidos os textos dos artigos 40 e 41, a redação do artigo 38 foi alterada para: "Oferecida a denúncia, o juiz, em 24 (vinte e quatro) horas, ordenará a notificação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data da juntada do mandado aos autos ou da primeira publicação de edital". Perceba-se que a parte final foi excluída, abolindo-se o primeiro interrogatório. Outrossim, foram substituídos os termos citação por notificação, bem como corrigo o erro crasso referente ao termo mandato constante na redação atual da nova lei.

O Capítulo VI da Lei n° 10.409/02 dispõe regras sobre os efeitos da sentença, especialmente versando acerca da apreensão e da destinação de bens confiscados e da perda da nacionalidade.

Sobre o autor
Flúvio Cardinelle Oliveira Garcia

Graduado em Ciências da Computação pela Universidade Católica de Brasília (1995). Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2002). Pós-graduado em Direito Eletrônico e Tecnologia da Informação pelo Centro Universitário da Grande Dourados (2008). Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008). Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal na Pontifícia Universidade do Paraná. Delegado de Polícia Federal. Chefe do Núcleo de Repressão ao Crimes Cibernéticos da Polícia Federal do Paraná, com ênfase investigativa para os delitos de ódio e de pornografia infantojuvenil, mormente praticados pela Internet. Membro do Instituto Brasileiro de Direito da Informática (IBDI), do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico (IBDE) e do High Technology Crime Investigation Association (HTCIA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Flúvio Cardinelle Oliveira. O fracasso da Lei nº 10.409/02. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 265, 29 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4998. Acesso em: 22 nov. 2024.

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