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Aplicação dos precedentes judiciais

Agenda 27/06/2016 às 16:35

Este estudo se concentra na aplicação dos precedentes judiciais. Analisa-se, por sua vez, a segurança jurídica, o conceito de precedentes judiciais, seus elementos ratio decidendi e obiter dictum e as diferentes técnicas de flexibilização dos precedentes.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo passará, nas próximas linhas, a analisar a segurança jurídica, o conceito de precedentes judiciais, bem como seus elementos ratio decidendi e obiter dictuma. Também serão comentadas as diferenças entre precedentes, jurisprudência e súmulas. Por fim, no último item deste capítulo serão discutidas as técnicas de flexibilização e superação dos precedentes, distinguishing overruling, bem como os métodos denominados intermediários, sendo estes: técnica de sinalização, antecipatory overruling e overriding.

2 APLICAÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS

Este capítulo se dedica à compreensão da tão buscada segurança jurídica, da definição de precedentes judiciais e seus elementos, das diferenças entre precedentes, jurisprudência e súmulas e, por fim, dos mecanismos de flexibilização e superação dos precedentes.

2.1 Segurança jurídica

Antes de entrar em mais detalhes acerca da definição e dos elementos dos precedentes judiciais, necessário é dissertar sobre os aspectos da segurança jurídica, o que vem a ser feito a seguir.

A segurança jurídica é desejada pelos variados ordenamentos jurídicos. Tenta-se alcançá-la por diversas formas, pois representa elemento fundamental do direito e funciona como estabilizador das relações sociais, independentemente do sistema originário. Desta forma, por se tratar de valor extremamente importante, o Estado de Direito buscou assegurar essa certeza jurídica.

Na perspectiva do civil law, a segurança jurídica limitava-se à “determinação normativa” e à “garantia do conteúdo do direito” (MITIDIERO, 2014, p. 55) pelo intermédio dos institutos da coisa julgada, do ato jurídico perfeito e do direito adquirido. Entretanto, com o desenvolvimento do Estado Constitucional, o princípio da segurança jurídica ascendeu à condição de norma-princípio e, somando ao caráter estático da preservação dos institutos mencionados, atingiu contornos de dinamicidade, tornando-se flexível e preocupando-se com a interpretação e a aplicação do direito.

Isto é, “com a derrocada do modo cognitivista de entender o Direito em favor de uma solução não cognitivista e lógico-argumentativa, a segurança jurídica passou a constituir a dinâmica ‘controlabilidade semântico-argumentativa’ e ‘garantia de respeito’ do Direito” (MITIDIERO, 2014, p. 54). Conclui-se deste entendimento que o princípio da segurança jurídica relaciona-se com a racionalidade do direito (construção argumentativa dos aplicadores conforme as mudanças sociais) e o ordenamento jurídico (fontes formais e as decisões jurídicas).

Sobre a teoria da segurança jurídica, Macêdo (2015, p. 125) preceitua:

Segurança jurídica é norma contra arbitrariedades na construção do direito, dirigindo-se à razoabilidade e coerência dos processos jurislativos e aplicativos que busca garantir aos cidadãos uma porção indispensável de previsibilidade, estabilidade e cognoscibilidade.

Retira-se do conceito a interação da segurança jurídica com a construção racional do direito. Percebe-se que o conceito conflui com as modificações neoconstitucionais inseridas no ordenamento e, nessa linha de raciocínio, o doutrinador aponta três elementos principais para a realização da segurança jurídica, interconectados, “sendo impossível um sistema jurídico que apresente um desses conteúdos, negligenciando totalmente os demais” (MACÊDO, 2015, p. 128).

Constituem as três facetas atuais da segurança jurídica: a cognoscibilidade; a estabilidade; e a previsibilidade. O primeiro elemento caracteriza-se por ser o aspecto estático, o qual permite a compreensão anterior das fontes normativas e a determinação do seu preenchimento quanto ao sentido. A segunda faceta refere-se ao aspecto dinâmico, vinculando o passado com a continuidade e o desenvolvimento do direito. Este elemento está relacionado à garantia de certo nível de dificuldade para a modificação do direito, isto é, estabilidade das questões jurídicas tratadas nos Tribunais, combatendo as mudanças desprovidas de critérios. O terceiro elemento, a previsibilidade, está vinculado ao futuro, possibilitando a previsão razoável da aplicação e da interpretação do direito nas decisões judiciais. Melhor comentando, os cidadãos planejam as suas vidas e tomam decisões seguras conforme o entendimento dado a aplicação do direito, não se permitindo mudanças bruscas nas decisões das Cortes sem um amplo debate argumentativo (MACÊDO, 2015, p. 120 -136).

Esta terceira faceta é a que detém relação mais forte com o stare decisis, tendo em vista que este instituto corresponde ao seu meio de efetivação. Sabe-se, de antemão, que o entendimento do judiciário será mantido, salvo as possibilidades de revogação ou de superação. Consequentemente, a previsibilidade permite que o cidadão se comporte dentro desses parâmetros e planeje suas ações, sabendo das consequências jurídicas destas e de eventual direito de terceiros.

Conquanto a doutrina já tenha desenvolvido os conceitos mais modernos da segurança jurídica, bem como superado seu caráter estritamente estático, percebe-se que na prática, no Brasil, ainda persistem as velhas características dos institutos em estudo, consoante crítica trazida por Marinoni (2013, p. 61):

supôs-se no civil law que tais valores (segurança e previsibilidade) seriam realizados por meio da lei e da sua estrita aplicação pelo juízes, enquanto no common law, por nunca ter existido a dúvida de que os juízes interpretam a lei e, por isso, podem proferir decisões diferentes enxergou-se na força vinculante dos precedentes o instrumento capaz de garantir a segurança e a previsibilidade de que a sociedade precisa para se desenvolver.

No Brasil atual, o Judiciário mostra-se incapaz de atribuir previsibilidade às suas decisões e, dessa forma, efetivar a segurança jurídica nos moldes contemporâneos. Neste sentido, tem-se a afirmação de Marinoni (2013, p. 125 - 126) de que

as decisões do Superior Tribunal de Justiça não são respeitadas nem no âmbito interno da Corte. As Turmas não guardam respeito pelas decisões das Secções e [...] entendem-se livres para decidir os casos de forma desigual.

Continua o mesmo autor afirmando que “um sistema incapaz de garantir a previsibilidade, assim, não permite que o cidadão tome consciência dos seus direitos, impedindo a concretização da cidadania”.

Critica-se, portanto, a atuação dos Tribunais nacionais, pois a eles compete o dever de garantir os direitos fundamentais, entre eles a segurança jurídica, mas atualmente não a fazem a contento.

Nesse sentido, fundamentam os processualistas Miranda de Oliveira e Anderle (2014, p. 307- 324):

A segurança jurídica faz com que as partes consigam antever a norma que será aplicada no caso concreto e o resultado final da demanda. Trata-se da previsibilidade necessária que tem o jurisdicionado de saber que ao Poder Judiciário compete decidir as lides e declarar quem tem razão, sempre atuando de acordo com a autoridade e a vontade da lei. Essa certeza é o que proporciona à comunidade jurídica e à sociedade a sensação de estabilidade no entendimento das normas legais.

Desta forma, ao apreciar situação previamente decidida, o intérprete aplicará o precedente e decidirá a nova lide de maneira similar, garantindo-se a previsibilidade da decisão e, portanto, a segurança jurídica do jurisdicionado e a integridade e uniformidade do sistema jurídico.

2.2 Definição de precedentes judiciais

Primeiramente, para conceituar os precedentes, há de se distinguir estes das decisões judiciais, pois a expressão “precedentes judiciais” é comumente utilizada em sentido amplo, podendo confundir-se com o termo “decisões judiciais”.

A tutela jurisdicional constitui a atividade principal do Judiciário, que a realiza por meio de decisões judiciais, solucionando as demandas submetidas a ele. Isto é, “a decisão judicial surge como consequência da procura do provimento jurisdicional por sujeitos interessados em resolver questões fáticas da vida” (REQUIÃO, 2013, p.338). Para uma decisão judicial ser considerada precedente, entretanto, deve a decisão tratar sobre questão de direito e não de matéria de fato (MARINONI, 2013, p. 213). Nesse sentido, todo precedente decorrerá de uma decisão judicial, porém nem toda decisão consistirá em precedente.

Caracteriza-se o precedente judicial, também, por gerar norma jurídica a qual servirá de fundamentação à resolução de outros casos semelhantes e incorporará ao ordenamento jurídico, sendo comum na doutrina o reconhecimento dos precedentes como fonte do direito. Corroborando com esta tese, temos que “ao mesmo tempo em que julga, o magistrado de certa forma legisla, criando regras de decisão aplicáveis a outros casos similares”, conforme ensina Miranda de Oliveira (2013, p. 16). Nesse sentido, deve-se observar o aspecto “passado” dos paradigmas, tendo em vista que, por consequência da autoridade vinculativa destas, os julgadores deverão respeitá-las e aplicá-las nos futuros casos semelhantes, observando em qual condição e circunstância foi estabelecido o precedente a ser aplicado.

Fundamentando o caráter futuro do precedente e preocupado com a eficácia criadora da norma, Macêdo (2015, p. 45) aduz que “o magistrado, ao inovar sobre questão jurídica, enunciando ou trabalhando o que virá a ser uma norma aplicável a outros casos, deve tomar em consideração proposições sociais para que tal decisão venha a gerar uma norma adequada”. Os Tribunais Superiores, ao decidirem um caso que se tornará paradigma (lead case), deverão observar não só a resolução do caso conforme o ordenamento jurídico, mas as repercussões sociais, técnico-jurídicas, e o impacto econômico das mesmas. Importante destacar que a fundamentação da decisão deverá confrontar e debater os principais argumentos prós e contras acerca das questões de direito em análise trazidas no caso concreto.

Ademais, faz-se necessário analisar em qual grau jurisdicional proferiu-se a decisão passível de se tornar um precedente. Isto, porque, mesmo que a decisão contenha os requisitos a se tornar um precedente, ele não será assim considerado se proferido por um juiz singular ou Tribunal que não seja a última instância da jurisdição, ou seja, “uma decisão exarada por um tribunal inferior pode ser considerada precedente para um juiz de primeiro grau – desde que presentes os requisitos intrínsecos e necessários –, porém não será considerada como precedente em relação ao tribunal superior” (MIRANDA DE OLIVEIRA; ANDERLE, 2014, p. 307 - 324).

Desta forma, no sistema jurisdicional brasileiro, a norma extraída do precedente, conjuntamente com os demais requisitos inerentes a este, terá autoridade para vincular quando for proferido pelo STF, no que concerne ao direito constitucional; pelo STJ, em relação ao direito federal infraconstitucional; e pelos Tribunais de Justiça, em face da legislação estadual.

A vinculação do ato decisório estende-se em duas direções: a vertical e a horizontal. A obrigatoriedade vertical decorre da força hierárquica e da competência recursal do sistema judiciário. Serão afetados pelos precedentes prolatados pelas Cortes superiores os tribunais e juízes situados em posição inferior na hierarquia da estrutura judicial.

Por outro lado, incide também na direção horizontal, a qual consiste na vinculação da norma emanada pelo precedente ao próprio Tribunal prolator da decisão. Isto é, se já houve precedente formado por determinada turma ou seção de um Tribunal, os casos similares que, posteriormente, entrarem na pauta deste, deverão ser elucidados igualmente ao outro, isto é, consoante o precedente já afirmado pelo Tribunal. Já aos juízes de primeiro grau, entretanto, quando exararem decisão propensa a se tornar precedente, esta terá apenas força persuasiva, não precisando ser obrigatoriamente seguida pelo tribunal de grau hierárquico superior. Esta decisão servirá como argumento e, após o devido processo legal com a ampla participação dos litigantes, o tribunal com autoridade decidirá e poderá vincular todo o ordenamento.

Quanto à eficácia da norma gerada pelo precedente, os estudiosos, embora divirjam entre outras categorias, são unânimes em classificar os precedentes em obrigatórios ou persuasivos. Estes últimos (persuasive precedent) não são obrigatórios, “servindo apenas de indício de uma solução racional e socialmente adequada, podendo ser livremente seguidos ou inobservados pelo julgador subsequente” (GARCIA REDONDO, 2013, p. 408), não sendo considerado erro de julgamento quando não aplicado pelo magistrado. Quanto aos precedentes obrigatórios (binding precedent), caracterizam-se por serem aqueles que “geram a observância da norma neles contida para os julgadores subsequentes, devendo aplicá-las sob pena de incorrer em erro quanto à aplicação do direito [...] servindo como modelos determinantes para as decisões posteriores” (MACÊDO, 2015, p. 102).

Nessa toada, portanto, a Corte só poderá ignorar a aplicação da norma estabelecida em precedente caso haja argumentos convincentes e apresente decisão exaustivamente fundamentada em sentido diverso, no qual ocorre, em regra geral, nas hipóteses de superação (overruling) ou distinção (distinguish) da situação em apreço em face da decisão-paradigma. Válido indicar que estes dois institutos serão detalhados em item específico no decorrer deste trabalho.

2.3 Elementos do precedente judicial

Anteriormente, foram feitas considerações acerca do conceito de precedentes judiciais, entretanto, cabe ressaltar que para uma melhor compreensão do exato significado dos precedentes, necessário é analisar os principais elementos que os compõem.

Para Tucci (2004, p. 175), “todo precedente é composto de duas partes distintas: a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório”.

Segue-se, desta forma, aos estudos destes elementos.

2.3.1 Ratio decidendi

Um dos mais importantes conceitos na temática dos precedentes judiciais, ratio decidendi significa, literalmente, “razões de decidir”. A relevância da identificação da ratio decidendi é justificada pelo fato de esta ser a única parte do precedente que possui efeito vinculante. Quer dizer, considerando a decisão como um todo, apenas a ratio decidendi vinculará, imperiosamente, as próximas decisões.

Desta forma, para que haja o devido respeito ao precedente judicial, é necessário que se esclareça qual trecho da decisão deverá ser seguido pelos demais magistrados. Essa necessidade advém do fato de que não é o próprio órgão judicial que profere a decisão que indica expressamente qual é a ratio decidendi. Na verdade, é tarefa dos juízes, ao deparar-se com casos semelhantes, extrair do precedent sua razão de decidir, a qual poderá ou não incidir no caso concreto, conforme explica Tucci (2004, p. 175). Ou seja, as razões de decidir de um precedente, na maioria das vezes, não estão completamente delineadas. Assim, serão as decisões posteriores àquele precedente que definirão, mediante forte argumentação, o real conteúdo e eficácia daquela norma, podendo, até mesmo, ampliar ou reduzir a incidência da norma.

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Neste sentido, conceituam-se as razões de decidir, em uma primeira análise, como “a tese jurídica ou a interpretação da norma consagrada na decisão” (MARINONI, 2013, p. 220), ou seja, constitui os motivos determinantes elencados pelo intérprete para solucionar determinado caso.

A problemática decorre não da conceituação das razões de decidir da decisão, entretanto da forma de obtenção desta, visto que não existe correspondente à ratio decidendi na processualística civil brasileira, ou seja, nos elementos internos à decisão.

Há que se esclarecer, desde logo, que, embora a razão de decidir decorra, principalmente, da fundamentação da decisão, ela não se corrobora apenas com esta, incorrendo em erro quem assim o faz, visto que “a ratio decidendi envolve a análise da dimensão fático-jurídica das questões que devem ser resolvidas pelo juiz” (MITIDIERO, 2012b, p. 66).

A regra do precedente, nesse sentido, deve ser extraída da leitura conjunta dos elementos da decisão (relatório, fundamentação e parte dispositiva), importando saber: “a) as circunstâncias fáticas relevantes adotadas; b) a interpretação dada aos preceitos normativos naquele contexto; c) a conclusão a que se chega” (DIDIER JR.; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p 447).

Necessário destacar a observação feita por Ataíde Jr. (2011, p. 70) quanto ao sistema brasileiro, visto que a força dos precedentes não se relacionará obrigatoriamente com a análise fática, mas voltadas a discussão de teses jurídicas, por consequência de os Tribunais Superiores serem, em sede de recurso extraordinário e recurso especial, competentes para apreciarem as questões de direito repercutidas nos casos em concreto. Nesse sentido, a ratio decidendi constituir-se-á, igualmente, pelos motivos necessários à resolução do caso, porém com apreciação da situação fática de maneira indireta.

Há, portando, grande dificuldade de extrair e identificar a ratio decidendi da decisão judicial, tanto que, nem mesmo no common law, chegou-se a um entendimento no tocante a definição e o modo de obtê-la, encontrando-se a discussão “bastante presente na doutrina do commom law, sem que se tenha chegado a um consenso metodológico ou mesmo conceitual” (MIRANDA DE OLIVEIRA; ADERLE, 2014, p. 310).

Diversos estudiosos tentaram desenvolver metodologias para extrair devidamente do precedente as suas razões, por exemplo, Eugene Wambaugh e Arthur Googhart. Contudo, deve-se atentar para a conclusão alcançada por Macêdo (2015, p. 322), o qual se posiciona na direção de se afastar de conceitos metodológicos, evitando “uma exacerbada preocupação na construção de formas a priori para definir a ratio decidendi e admitindo a sua dimensão argumentativa”.

Relevante se faz esclarecer sobre a possibilidade de existirem decisões-paradigmas com duas ou mais razões. Marinoni (2013, p. 240-242) é preciso ao descrever que no common law não se admite a ocorrência de duas rationes em um mesmo precedente, ou melhor, “há inescondíveis problemas em se admitir uma decisão com duas rationes, ainda que cada uma delas possa constituir base necessária e suficiente para se dar ao caso solução idêntica”.

Este entendimento se depreende do raciocínio jurídico divergente efetuado pelos juristas do common law. Para eles, a definição da ratio decorre do direito material, diminuindo-se a importância do direito processual, ou seja, “o precedente, reflete a solução do caso e não a solução das questões nele envolvidas” (MARINONI, 2013, p. 242). Nesse sentido, caso uma decisão precise enfrentar uma questão processual para, posteriormente alcançar o mérito, apenas as razões de decidir relacionadas ao mérito constituirão a norma-regra desta decisão.

O mesmo entendimento, contudo, não deverá ser incorporado pela doutrina brasileira, pois é sabido que, no ordenamento nacional, “as questões processuais efetivamente discutidas e decididas adequadamente formam precedentes obrigatórios” (MACÊDO, 2015, p. 332). Nesta senda, quando o Tribunal competente para elucidar determinada questão processual assim o fizer, antes da análise material da lide, constituirão, tanto a solução processual, quanto a questão de mérito, razões de decidir e, portanto, norma do ordenamento jurídico.

Por fim, vale analisar as decisões das quais não é possível extrair uma ratio decidendi. A doutrina aponta para duas possibilidades. A primeira caracteriza-se pela impossibilidade de delinear a ratio da decisão, por consequência de problemas na fundamentação, retirando daquela a sua eficácia vinculante.

Nesse sentido, bem descreve Didier Jr., Oliveira, Braga (2015, p. 448): “se for difícil identificar a ratio decidendi de uma decisão, seja porque a sua fundamentação é insuficiente, seja porque não há uma tese jurídica bem delineada, entende-se que ela deve ser considerada desprovida de ratio e, por seguinte, de autoridade obrigatória”.

A segunda possibilidade extrai-se da decisão judicial do órgão colegiado, na qual cada magistrado, não obstante o resultado unânime ou não em determinada direção, decide por motivos diversos. Inexiste, portanto, fundamento dominante na decisão, impossibilitando a construção de uma norma, conforme observado por Macêdo (2015, p. 335): “embora os juízes alcancem o mesmo resultado, as razões determinantes para isso são diferentes o que acaba por eliminar a possibilidade de construção de uma norma a partir desse tipo de decisão”.

Quanto a esta segunda possibilidade, válido ressaltar que muitas vezes no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, ao decidir determinada lide, muitas vezes mesmo que de maneira unânime, fundamentam em dispositivos legais divergentes. Nestes casos, portanto, não ensejarão a formação de norma integrante do ordenamento e vinculante às futuras decisões.

Consoante demonstrado, denomina-se ratio decidendi a norma jurídica extraída do precedente judicial mediante a análise hermenêutica das situações fático-jurídicas necessárias a elucidação do caso concreto e caracteriza-se, desta forma, por ser o elemento vinculante da decisão judicial.

2.3.2 Obiter dictum

No item anterior chegou-se à conclusão de que a ratio decidendi se caracteriza por ser a norma retirada da decisão judicial, integrando o ordenamento jurídico e vinculando os demais juízes e Tribunais.

Entretanto, existem discussões realizadas durante o julgamento do caso concreto que não integram as razões de decidir, porquanto não são suficientes à elucidação deste, isto é, “juízos acessórios, periféricos, provisórios, refletindo impressões que não tem influência relevante” (GARCIA REDONDO, 2013, p. 405), realizados pelos intérpretes e ou inseridos no corpo do acórdão. Esses elementos são chamados de obiter dictum.

Mitidiero (2012b, p. 67) define obiter dictum como sendo o argumento “dito de passagem”, ou seja, “aquilo que é dito durante um julgamento ou consta em uma decisão sem referência ao caso ou que concerne ao caso, mas não constitui proposição necessária para a solução”.

Esclarecem também o elemento ora em destaque:

É o argumento jurídico, consideração, comentário exposto apenas de passagem na motivação da decisão, que se convola em juízo normativo acessório, provisório, secundário, impressão ou qualquer outro elemento jurídico-hermenêutico que não tenha influência relevante e substancial para a decisão (DIDIER JR.; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 444).

Embora os trechos transcritos traduzam o resumo doutrinário para conceituar o obiter dictum, os processualistas definem o termo, também, por sua forma negativa, conceituando-o, em resumo, como as proposições jurídicas inerentes no precedente, mas que não integram a ratio decidendi deste.

Por não fazerem parte das razões de decidir, o obiter dictum não gera vinculação formal às futuras decisões, justamente por constituírem em enunciações anexas, acessórias ou de passagem.

Este caráter de não obrigatoriedade do obiter dictum decorre da inobservância do contraditório judicial e, portanto, da ausência de ampla discussão acerca de determinada preposição pelas partes no processo. Nessa senda, apropriadamente observa Macêdo (2015, p. 338):

A ideia do obiter dictum é importante justamente por excluir da geração do precedente as partes da decisão que não foram objeto da argumentação das partes, geralmente possuindo pouca importância para a solução da causa, mas que vieram a ser consignadas no ato decisório. Assumir que é possível a construção de norma a partir de fundamentos que não foram objeto do contraditório, no sistema jurídico brasileiro, não é lídimo.

Sendo assim, o requisito de eficácia da norma jurídica extraída da decisão decorre da ampla argumentação das partes e, consequentemente, da formação gradual do precedente. Neste sentido, não são dotadas de eficácia as enunciações não aventadas e não fundamentadas pelos sujeitos do processo, mesmo que inseridas no corpo do acórdão. Portanto, caracteriza uma das funções do obiter dictum garantir a formação legítima das normas extraídas das decisões.

O pronunciamento lateral, ademais, poderá apontar para a distinção da demanda em análise da moldura fática do precedente vinculante. Igualmente poderá evidenciar possível superação de entendimento pelo Tribunal. Neste aspecto, os magistrados, em ponderações laterais, demonstram que, para o caso em análise, manter-se-á o entendimento retirado da decisão paradigma em respeito a segurança jurídica. Porém, aos futuros casos e, caso as partes argumentem ao longo do processo sobre o obiter dictum, o Tribunal julgará consoante a moderna concepção jurídica, por consequência de uma mudança na cultura social, por exemplo. Percebe-se, portanto, como bem descreve Didier Jr., Oliveira, Braga (2015, p. 446), que as considerações realizadas a título de obiter dictum em casos prévios poderão contribuir para a elucidação de julgamentos futuros e, até mesmo, tornar-se ratio decidendi, caso cumpridos os requisitos de formação desta.

2.4. Diferenças entre precedentes, jurisprudência e súmulas

Para o devido prosseguimento no estudo da teoria dos precedentes, importante trazer as distinções dos mencionados institutos, tendo em vista serem comumente confundidos.

Primeiramente, cabe dissertar a respeito das diferenças entre os precedentes e as jurisprudências. Estas se caracterizam por constituírem a aplicação reiterada de um corpo de decisões nas quais explicitam “o entendimento de determinado tribunal acerca de uma questão jurídica ou sobre a exegese de um texto legal” (MIRANDA DE OLIVEIRA, 2013, p. 20). Retira-se do conceito, portanto, que a aplicação reiterada das decisões constitui característica basilar da jurisprudência. Por outro lado, o precedente decorre da importância de uma única decisão proferida por Tribunal, constituindo fonte normativa e tornando-se obrigatória.

Enquanto a jurisprudência traz consigo a ideia intrínseca de pluralidade de decisões, o precedente decorre de apenas uma decisão. Esta diferença é percebida na prática forense, ainda que haja interação entre os institutos, conforme ensina Garcia Redondo (2013, p. 409): “quando determinado precedente é reiteradamente aplicado, passando a refletir o posicionamento predominante do Tribunal, diz-se que o mesmo se tornou jurisprudência”.

Ademais, a construção da jurisprudência demanda um amplo lapso temporal para agregar força normativa, enquanto basta um precedente para que este seja obrigatório, sendo possível a prolação de decisão-paradigma que dissente da jurisprudência atual.

Acrescentando ao tema, Miranda de Oliveira e Anderle (2014, p. 310) assim delimitam:

a jurisprudência afasta-se do caso concreto, uma vez que sua pesquisa limita-se ao enunciado geral e abstrato da ementa. Em vez de focar em uma decisão, com ementa e fundamentação, os juristas buscam o maior número de julgados possível que justifiquem, de forma geral e abstrata, a tese jurídica que se quer afirmar. O precedente judicial, diversamente, delimita os debates e argumentos enfrentados no caso concreto para chegar a determinada tese jurídica de forma coerente, possibilitando sua correta aplicação pelo intérprete.

Nesse sentido, enquanto o precedente elucida e delimita determinada matéria de direito considerando a conjuntura fática do caso, a jurisprudência separa-se do caso concreto, limitando-se à averiguação da ementa e extraindo o enunciado normativo de maneira abstrata, perfazendo a função do texto legal.

Constata-se, desta forma, que tanto as características quanto o modo de aplicação entre a jurisprudência e os precedentes obrigatórios são completamente divergentes. Não obstante esses institutos se inter-relacionem na prática, eles não podem ser utilizados e fundamentados de maneira semelhante.

Quanto às súmulas, temos que estas, diferentemente dos binding precedents, consistem na retirada do enunciado normativo da jurisprudência dominante, de tal forma que “o fenômeno súmula identifica-se com um resumo das ideias contidas em reiteradas decisões de um tribunal, proferidas num mesmo e determinado sentido. Na verdade, trata-se da apreensão do conteúdo jurídico essencial de decisões num mesmo sentido” (MIRANDA DE OLIVEIRA, 2013, p. 24).

Quando algum Tribunal cria, edita ou modifica uma súmula, ele extrai da jurisprudência a essência normativa daquelas decisões, tentando sintetizar em um verbete normativo, objetivamente e de maneira clara, a posição dominante do tribunal. Dessa forma, as súmulas se caracterizam pela objetividade e pela tentativa de tornar fácil a compreensão da norma retirada do conjunto de decisões aos aplicadores do direito, embora várias súmulas sejam editadas de maneira confusa para os aplicadores do direito, tendo, em alguns casos, que serem reeditadas, pois não refletem a realidade fática do enunciado, reproduzindo, apenas, o entendimento majoritário, de modo geral e abstrato.

Ademais, as súmulas constituem atos jurídicos autônomos, externos às decisões judiciais, e possuem procedimento específico para sua criação, não se confundindo, portanto, com os precedentes, os quais são extraídos do ato decisório.

Outra diferença consiste na eficácia das súmulas. Mesmo que a classificação destas se divida em persuasivas e obrigatórias, a eficácia obrigatória limita-se às súmulas vinculantes editadas pelo STF, mediante a aprovação de 2/3 dos seus membros. As súmulas dos outros Tribunais Superiores, contudo, detêm eficácia meramente persuasiva, passível de não aplicação pelo próprio tribunal e podendo ser reeditadas a qualquer momento. Na doutrina do stare decisis, entretanto, uma decisão-paradigma proferida por Tribunal Superior detém caráter obrigatório às instâncias inferiores e ao próprio tribunal, preservando-se a estabilidade das relações e, necessitando forte carga argumentativa e modificações sociais para que o precedente, por exemplo, seja superado.

As diferenças entre súmulas e precedentes são tão grandes que há uma divisão doutrinária acerca da compatibilidade ou não destes no mesmo ordenamento jurídico. Isto porque, nos sistemas que respeitam a vinculação do precedente, prefere-se a identificação da ratio decidendi à catalogação de súmulas (MARINONI, 2013, p. 216).

Macêdo (2015, p. 113-114), defendendo a incompatibilidade dos institutos, assevera que, “caso se atribua obrigatoriedade ao precedente, considerado em sua unidade, nenhuma utilidade restará aos entendimentos sumulados a partir de reiteradas decisões: a primeira decisão desta linha já guardaria importância e tornar-se-ia obrigatória aos juízes subsequentes”.

Por outro lado, para Marinoni (2013, p. 214-216) existe a possibilidade de coexistência de ambos os institutos, visto que nem sempre a ratio decidendi será clara e de fácil compreensão, conforme preleciona: “de fato, quando uma decisão não define, com clareza, a tese jurídica proclamada, pode haver a necessidade de delimitação mediante enunciado. Nessa hipótese [...] a súmula nada acrescentará ao que foi dito pelo Tribunal, mas apenas precisará a tese proclamada”.

Sobre este aspecto, percebe-se que os doutrinadores fundamentam suas posições a partir de óticas distintas. Nesse caso, é necessário esperar e avaliar a clareza das decisões proferidas após a entrada em vigor do novo código processual civil brasileiro, para que se possa concluir se a ratio decidendi das decisões-paradigmas serão suficientemente claras para se extrair o enunciado normativo ou se edição de súmulas permanecerá imperiosa.

Demonstrou-se, então, as diferenças inerentes aos institutos dos precedentes, da jurisprudência e das súmulas. Saber destas distinções, ressalte-se, constitui norte essencial à correta aplicação do direito, ainda mais nos tempos atuais, de recente entrada em vigor do NCPC.

2.5. Mecanismos de flexibilização e superação dos precedentes

Trazidos os elementos que compõem os precedentes judiciais, é fundamental considerar as técnicas que podem ser utilizadas pelo magistrado quando concluir que o caso pendente difere do precedente ou que o entendimento encontra-se superado, por exemplo. Percebe-se, desde logo, que são importantes mecanismos para a manutenção de um direito dinâmico, atento à realidade social.

2.5.1 Distinguishing

Distinguishing é uma técnica de aplicação, comparação e interpretação dos precedentes, sendo possível apresentar duas acepções: a primeira, refere-se à própria técnica de comparação entre o caso sub judice e o paradigma; a segunda, a qual consiste “em não se aplicar o precedente quando o caso a ser decidido apresenta uma peculiaridade, que autoriza o afastamento da rule e que a decisão seja tomada independentemente daquela” (MIRANDA DE OLIVEIRA; ADERLE, 2014, p. 314).

Desta forma, o termo distinguishing pode ser utilizado no sentido amplo, também denominado distinguishing-método, que representa a técnica de comparação e diferenciação entre o caso vertente e o paradigma, procedimento pelo qual, no momento de aplicação do precedente, as partes confrontarão as diferenças e as similitudes dos casos. O julgador, igualmente, utilizará desta técnica para comparar os casos e “verificar se o caso em julgamento pode ou não ser considerado análogo ao paradigma” (TUCCI, 2012, p. 125).

A técnica de comparação caracteriza-se, então, por ser o meio de aplicação dos precedentes e, portanto, deve ser constantemente utilizado. Nesta sentido, resumidamente, deve-se realizar a delimitação dos fatos substanciais e verificar se há similitude fática entre o caso atual e o paradigma, comparando-os e concluindo-se pela aplicação ou não do consequente jurídico da ratio ao primeiro caso.

Descrevendo sobre o assunto, Ataíde Júnior (2011, p. 82) o sintetiza:

Percebe-se que a observância de um precedente no caso em julgamento requer uma confrontação entre os fatos materiais (relevantes) dos dois casos, para assim saber se a ratio decidendi do primeiro afigura-se adequada para servir de motivo determinante à decisão que venha regular as consequências jurídicas dos fatos do caso em julgamento.

Já a segunda acepção, o distinguishing em sentido estrito, também mencionado como dinstinguish-resultado, refere-se ao resultado do procedimento de comparação entre o caso paradigma e o sub judice, concluindo-se pela não aplicação da ratio neste último, por consequência das diferenças entre os casos. Consoante Garcia Redondo(2013, p.409), estaremos diante desta acepção em sentido estrito quando houver:

Diferença entre o caso concreto em exame e o paradigma anterior, seja porque inexiste coincidência com os fatos que embasaram a ratio decidendi, seja porque, a despeito de eventual aproximação entre eles, há uma peculiaridade no caso em julgamento que impõe a não aplicação do precedente.

Válido mencionar que existem possibilidades de distinguir os casos em contraponto ao paradigma. Primeiramente, pode-se constatar que não há semelhança fática entre as causas, pois os fatos matérias são distintos e, dessa forma, autoriza o juiz do caso em questão a afastar a rule e adotar uma solução jurídica diferente. Outra possibilidade ocorre quando há divergências fáticas, porém irrelevantes. Neste caso, deverá o magistrado aplicar a ratio, pois os fatos substanciais ou são parecidos ou podem ser categorizados da mesma forma, não havendo nenhum fato novo que possa justificar a não aplicação da ratio.

Há uma outra possibilidade, na qual há, simultaneamente, diferenças e similitudes fáticas substanciais entre as causas, tornando-se difícil a simples associação ou dissociação entre elas e, por consequência, a aplicação ou não da ratio. Neste caso, importante será o processo argumentativo das partes, as quais deverão demonstrar a coerência entre os princípios e as regras basilares utilizados na construção da ratio decidendi em face dos fatos do caso em debate, impulsionando, ou não, à mesma solução jurídica.

O ampliative distinguishing consiste em estender a hipótese fática da ratio decidendi aos fatos da situação em debate, acrescentando-os, visto que estes não eram anteriormente abrangidos pela decisão-paradigma. Em outra direção, tem-se o restrictive distinguishing, por meio do qual os fatos do caso que estariam inseridos no âmbito fático do precedente, serão afastados, restringindo-se a amplitude da ratio, limitando a sua incidência fática e especificando a categorização dos fatos desta, afastando-se, portanto, a aplicação da mesma tese jurídica ao caso em questão.

Contribuindo com o tema, Marinoni (2013, p. 330) ensina que “há o desenvolvimento do significado e da força dos precedentes que passam a se adaptar, sem rupturas, às situações que vão surgindo à medida que o tempo passa”.

A realização da distinção e, consequentemente, a não aplicação da ratio ao caso concreto, entretanto, não autoriza o magistrado a realizar distinções arbitrárias, sendo vedadas as distinções efetuadas arbitrariamente pelo julgador, “sendo facilmente desmascarado quando tenta distinguir casos com base em fatos materialmente irrelevantes” (MARINONI, 2013, p. 326).

Válido acrescentar que “a aplicação do distinguishing não significa uma superação ou revogação do precedente invocado, tampouco que o mesmo está equivocado. Na maioria das vezes, o distinguishing não afeta a autoridade do precedente” (MIRANDA DE OLIVEIRA; ANDERLE, 2014, p. 315). Resta claro, então, que, mesmo que a ratio não tenha sido aplicada a determinado caso, por motivo de distinções substanciais contidas neste, ela permanece como norma do ordenamento jurídico, inclusive produzindo os seus efeitos jurídicos e de observação obrigatória aos demais casos.

Além disso, conforme ensina Macêdo (2015, p. 251), a competência para realizar a distinção não é apenas do Tribunal do qual emanou a decisão paradigma, mas sim de todos os juízes vinculados a ratio. Sendo assim, quando há diferenças substanciais, o magistrado de primeiro grau é competente para distinguir o caso da rule e aplicar solução jurídica diversa, fornecendo uma prestação jurisdicional justa ao caso, ressaltando-se que o princípio da igualdade seria ferido caso fosse possível tratar causas diferentes de maneira igual.

Quanto à realização das distinções, e sua relação com o desenvolvimento do direito e a preservação da estabilidade, sustenta Marinoni(2013, p. 331):

O sistema de precedentes, quando visto a partir da técnica da distinção, sem perder a sua função de preservação da estabilidade, torna-se maleável e capaz de permitir o desenvolvimento do direito, dando conta das novas realidades [...] sem que com isso, seja preciso o rompimento do sistema ou revogação do precedente que ainda é necessário e suficiente para tratar das situações que contemplou desde a sua origem.

Por consequência das distinções, portanto, não se permite que uma lide, com situação fática fortemente divergente, receba igual solução jurídica àquela conferida ao leading case. Além disto, o desenvolvimento do direito permanece constante, porquanto os precedentes adaptam-se às novas situações que vão surgindo sem romperem as suas rationes.

2.5.2 Overruling

No tópico anterior, comentou-se acerca da possibilidade de um precedente deixar de ser aplicado, em um caso específico, quando for confrontado com situação fática diferente materialmente da que originou a decisão paradigma.

Já neste tópico, antes de detalhar o assunto referente ao mecanismo de overruling, cabe ressaltar que o precedente judicial, na sua origem teórica, não foi gerado para durar infinitamente, até mesmo porque, caso não fosse possível a sua superação, o Direito seria fossilizado e se tornaria injusto, por decidir de acordo com uma decisão-paradigma incompatível com a realidade naquele momento.

O overruling consiste na técnica de superação dos precedentes judiciais, na qual se retira do ordenamento jurídico determinada ratio decidendi vigente, substituindo-a por outra norma (DIDIER JR.; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 494), objetivando a continuidade no desenvolvimento do direito. Isto porque, por conta das mudanças sociais e o próprio desenvolvimento da área jurídica, bem como suas teses, o precedente perde os alicerces que o fundamentavam, tornando-se impossível, portanto, manter a rule ultrapassada, porquanto incompatível com a nova realidade.

Nesse sentido, Marinoni (2013, p. 389), discutindo acerca dos parâmetros de desenvolvimento e mudança do ordenamento jurídico, aduz que:

Um precedente está em condições de ser revogado quando deixa de corresponder aos padrões de congruência social e consistência sistêmica e, ao mesmo tempo, os valores que sustentam a estabilidade – basicamente os da isonomia, da confiança justificada e da vedação da surpresa injusta – mais fundamentam a sua revogação do que a sua preservação.

O precedente paradigma torna-se incompatível, no aspecto social, “quando o precedente desponta errado, injusto, obsoleto, aviltando o sentimento de justiça do cidadão comum” (MIRANDA DE OLIVEIRA; ANDERLE, 2014, p. 316). Quer dizer, o leading case não mais corresponde às proposições morais, políticas, jurídicas, técnicas que o fundamentaram, fazendo-se necessário que a Corte o modifique e o adeque ao novo momento social.

Por outro lado, a inconsistência sistêmica decorre da incoerência da decisão-paradigma, “quando os fundamentos do precedente a ser superado passam a ser incompatíveis com os fundamentos afirmados em outros precedentes do mesmo tribunal ou dos Tribunais Superiores” (MIRANDA DE OLIVEIRA; ANDERLE, 2014, p. 316).

Válido acrescentar que o precedente deverá ser superado quando carecer da dupla coerência (congruência social e consistência sistêmica), bem como quando “os princípios básicos que sustentam a regra do stare decisis – segurança jurídica e igualdade – deixam de autorizar a sua replicabilidade (replicability)” (MITIDIERO, 2012, p. 69).

Quanto ao suposto dilema “superação do precedente versus manutenção do precedente e preservação da segurança jurídica”, imperioso destacar que sendo as razões de mudança adequadas e mais fortes do que as de continuidade, deve-se, dessarte, superar os precedentes.

É uma preocupação devida, pois a norma extraída do precedente cria a confiança legítima do jurisdicionado e afasta as surpresas injustas, pautando a sua maneira de se comportar, de realizar suas escolhas socioeconômicas e de se planejar juridicamente. Seria, então, injustiçado o jurisdicionado que, comportando-se dentro dos parâmetros normativos até então conhecidos, fosse prejudicado por uma mudança do entendimento da Corte.

É sobre esta suposta problemática que Mitidiero (2012, p. 69) se posiciona:

a possibilidade de superação do precedente coloca em evidência a necessidade de proteção da confiança daqueles que o tinham em consideração para fazer as suas escolhas e [...] a mudança do precedente não pode causar surpresa injusta (unfair surprise).

São diversos os fatores que demonstram o desgaste da decisão-paradigma, os quais acabam prejudicando a segurança jurídica, dentre os quais: a realização de reiteradas distinções pelos Tribunais; o não uso e esquecimento de precedentes antigos, os quais não são reafirmados em novos casos; a aplicação constante de distinções inconsistentes; a superveniência de lei nova com conteúdo incompatível com aquele estabelecido na rule (MACÊDO, 2015, p. 400 - 407).

Relevante mencionar a importância do posicionamento da doutrina na constatação das ausências da congruência social e da consistência sistêmica. As críticas efetuadas pelos juristas consagrados, bem como pelos acadêmicos, no tocante a ambos aspectos, enfraquecem a estabilidade dos precedentes, pois consegue-se individualizá-los, identificando pontualmente as suas inconsistências e os seus defeitos, explicitando as razões para a sua superação, de tal forma que os Tribunais também possuirão maior base teórica para decidirem pela superação do precedente.

Quanto à análise de que um precedente está prestes a ser superado e a consequente instrução devida aos seus clientes, evitando a surpresa injusta e a quebra da confiança, “Cabe aos advogados, em vista das necessidades de seus clientes, a análise do grau de força de um precedente em determinado momento histórico” (MARINONI, 2013, p. 335).

Outra maneira de se evitar a quebra da confiança legítima e a surpresa injusta resulta da possibilidade de postergar os efeitos do overruling, tornando a nova rule obrigatória a partir de certa data definida pela corte (prospective overruling), mesmo que, de regra, a revogação de um precedente possua efeitos retroativos (retrospective overruling) no commom law (MIRANDA DE OLIVEIRA; ANDERLE, 2014, p. 317).

Igualmente à formação e à aplicação da ratio decidendi, a definição do obiter dictum e a definição do distinguishing, percebe-se que a superação do precedente necessita de alta carga argumentativa para ocorrer, não estando o magistrado livre para realizá-la. O ônus argumentativo decorrerá tanto do contraditório substancial das partes, quanto, principalmente, da contundente fundamentação da decisão, ou seja, o magistrado, adstrito às alegações das partes, deverá intensamente argumentar os motivos da superação, demonstrando a presença das inconsistências sistêmicas e ou sociais, além de elencar os fatores desgastadores da segurança jurídica.

Em relação à forma, a superação do precedente poderá ser expressa (express overruling), quando a corte expressamente abandona a orientação anterior e adota uma nova; ou implícita (implied overruling), quando o tribunal abandona o posicionamento anterior sem expressa substituição, entretanto, da tese subsequente (GARCIA REDONDO, 2013, p. 410).

Diferentemente do distinguishing, a competência para superar a decisão-paradigma é exclusiva do Tribunal que a prolatou. Tal competência advém da vinculação hierárquica do precedente e, destarte, da posição de topo na estrutura jurisdicional do Tribunal. Não haveria sentido em falar de superação de precedente por magistrado singular ou tribunal inferior, visto que eles estão vinculados ao precedente. Caso estes julgadores optassem por não aplicar a ratio decidendi, estariam defrontando o princípio do stare decisis e, desse modo, ocorreria error in judicando e restaria a decisão ser reformada.

Demonstrou-se que a técnica do overruling permite não apenas a continuidade e o desenvolvimento do direito, mas também estabelece parâmetros para que a superação seja realizada, afastando consideravelmente as possíveis injustiças que tal medida pode acarretar aos jurisdicionados.

O que foi estudado neste item só reforça a tese de que a correta aplicação de precedentes, conforme teoria desenvolvida no common law, não provoca um processo de estagnação do Direito, tendo em vista que os magistrados têm, a seu dispor técnicas de diferenciação e superação, cada uma com suas peculiaridades, para manter o desenvolvimento do direito, observando as mudanças sociais, políticas e jurídicas.

3.5.3 Técnicas intermediárias

O common law americano desenvolveu e acolheu algumas técnicas de flexibilização do direito que possuem características intermediárias se comparadas ao overruling e o distinguishing, dentre as quais, a técnica de sinalização (technique of signaling), o overriding (reescrita) e o antecipatory overruling.

Primeiramente, a sinalização é caracterizada por ser técnica preparatória para a revogação do precedente, por meio do qual o Tribunal, percebendo a desatualização deste, porém sem os elementos seguros para afastá-lo e garantir a expectativa legítima dos jurisdicionados, anuncia que irá modificá-lo (DIDIER JR.; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 505).

Com o anúncio, ou sinalização, da superação, a Corte tutela a confiança legítima e a surpresa injusta, afastando qualquer argumentação realizada nesse sentido posteriormente à sinalização da mudança. Não obstante o tribunal continue a seguir o precedente, ele esclarece à sociedade que aquela decisão-paradigma não é mais confiável (MACÊDO, 2015, p. 409), indicando que a qualquer momento poderá superá-la. Assim, de imediato, os advogados poderão precaver os seus clientes, indicando qual conduta não é mais confiável e propondo novas soluções às atividades e negócios dos clientes.

Além disso, conforme realça Marinoni (2013, p. 334-337), a técnica de sinalização difere da superação com modulação prospectiva de seus efeitos, porquanto a partir do seu anúncio, leva-se a questão ao debate da sociedade, podendo-se avaliar o posicionamento da comunidade jurídica, especialmente por meio da crítica dos trabalhos acadêmicos e doutrinários, e, dependendo da temática, do posicionamento da sociedade em geral.

Outra técnica de intermediária é o overriding (reescrita), no qual “o tribunal limita o âmbito de incidência do precedente, em razão da superveniência de regra ou princípio legal, ou de entendimento posteriormente formado” (GARCIA REDONDO, 2013, p.410). A Corte, portanto, diminui o âmbito de aplicação da ratio decidendi já estabelecida em favor de outra norma que surgiu depois.

Como exemplo de overriding, temos a seguinte situação hipotética: há uma ratio decidendi que possui como hipótese fática as situações A, B, C e D. Contudo, posteriormente à consolidação deste entendimento,é criada uma lei, na qual são tuteladas as situações B e D de maneira diversa daquela já consolidada. Não sendo mais aplicável a ratio às situações B e D, por força da norma superveniente, o Tribunal restringirá a hipótese fática da rule às situações A e C, exclusivamente.

Percebe-se, desta forma, que “a partir da reescrita, algo que não foi considerado no precedente anterior é sopesado e aí o seu alcance é comprimido. O precedente não é totalmente revogado, mas perde espaço de incidência” (MITIDIERO, 2012, p. 70).

O overriding pouco se assemelhando com o overruling, mas aproxima-se do distinguishing (distinção redutiva), entretanto, ressalte-se, não se confunde com esta técnica. Isto porque, a distinção decorre da não aplicação da norma por consequência da verificação de fato novo materialmente distinto daqueles descritos na ratio. Em contrapartida, o overriding trata de uma questão de direito, elemento externo a relação jurídica, tal como uma nova lei, princípio ou entendimento posteriormente formado, no qual há restrição do suporte fático (DIDIER JR.; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 507-508).

Por fim, há a técnica da superação antecipada, conceituada por Ataíde Jr. e Peixoto (2014, p. 283), in verbis:

O anticipatory overruling consiste em uma técnica utilizada pelas Cortes inferiores de antecipar um overruling anteriormente induzido de diversas formas pelas Cortes Superiores, mediante a não aplicação, ao caso em julgamento, do precedente supostamente vinculante invocado por uma das partes. Trata-se de uma espécie de exercício de previsibilidade exercido pelos tribunais inferiores.

Entende-se, desta forma, que o antecipatory overruling é realizado pelo Tribunal inferior àquele que definiu o precedente.

Em um primeiro momento, esta técnica parece ir de encontro à regra de competência mencionada anteriormente, na qual compete ao Tribunal que o instituiu o precedente superá-lo, além de confrontar as próprias bases do stare decisis.

Entretanto, não há uma usurpação de competência, pois, na verdade, representa a não aplicação de determinado precedente pelo tribunal inferior, por este perceber que a corte superior já utilizou algum dos fatores de enfraquecimento da rule e está próximo a superá-la. Fala-se “em uma espécie de exercício de previsibilidade, justamente porque não incumbe aos tribunais inferiores o poder de revogar os precedentes das Cortes Superiores” (ATAÍDE JR.; PEIXOTO, 2014, p. 284).

Não há, porém, uma lista taxativa de fatores que possibilitam a previsibilidade dos tribunais e legitimam-no a não aplicação de determinada ratio. Entretanto, Macêdo (2013, p. 402) apresenta alguns fatores mais típicos, quando há: “(i) erosão do precedente; (ii) sinalização da sua superação; e, (iii) inconsistência com os precedentes do tribunal superior”.

A erosão decorre da superveniência de normas incompatíveis com a ratio, retirando a consistência sistêmica daquele precedente. Por outro lado, a sinalização demonstra que a Suprema Corte está na espera de um caso apropriado para realizar o overruling. O último fator decorre da incompatibilidade e desarmonia de um específico precedente com as demais decisões do Tribunal, permitindo-se concluir que aquele precedente será revogado.

Sobre o assunto, Marinoni (2013, p. 408) ensina que “Por mais paradoxal que possa parecer, a legitimidade do antecipatory overruling advém do dever de a Corte de Apelação se comportar de acordo com a Suprema Corte”.

Corroborando com este posicionamento, Ataíde Jr. e Peixoto (2014, p. 290), apontam a possibilidade de aplicação do antecipatory overruling no direito brasileiro desde que

presentes os fundamentos que justificam a utilização do instituto e, sem haver o descuido quanto à necessidade de um forte ônus argumentativo por parte das Cortes inferiores em demonstrar a forte probabilidade de revogação do precedente pela Corte Superior.

Assim sendo, entende-se que as três técnicas intermediárias – técnica de sinalização, overriding e antecipatory overruling – devem ser internalizadas ao sistema jurídico brasileiro, porquanto auxiliam no desenvolvimento do direito, conferindo maior flexibilidade e dinamicidade ao sistema de precedentes, ressaltando-se , contudo, que o emprego destas técnicas é condicionado a forte carga argumentativa tanto dos advogados, ao aduzirem a utilização de algumas destas técnicas, quanto dos julgadores, os quais deverão fundamentar intensamente a sentença, apontando às partes e aos jurisdicionados os motivos da utilização ou não de determinada técnica no caso sub judice.

3 CONCLUSÃO

Diante do que foi apresentado neste artigo, foi possível identificar que os precedentes não possuem eficácia “ad eternum”, pois, se contrário fosse, o direito que aplicasse essa teoria perderia a sua dinâmica com passar dos anos, tornando uma ciência incompatível com a realidade social. Por esse motivo, existem técnicas que permitem as partes na lide discutir a aplicação de determinado precedente judicial, bem como a sua superação, consoante aqui estudado. Dessa forma, um precedente não terá congruência social quando violar valores morais, políticos e sociais. Será, por outro lado desprovido de consistência sistemática quando não possuir adequação com as decisões recentes do Tribunal.

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