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Normas constitucionais inconstitucionais

(Verfassungswidrige Verfassungsnormen)

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Agenda 01/04/2004 às 00:00

VII – DIREITO CONSTITUCIONAL NÃO ESCRITO

VII.1 – VIOLAÇÃO AO DIREITO SUPRALEGAL NÃO POSITIVADO

Anteriormente abordada, suscita-se a indagação de se saber se o direito supralegal não positivado também faria parte do direito constitucional, na qualidade de elemento não escrito da Ordem Jurídica e se poderia existir norma constitucional que violasse esse direito supralegal não positivado.

Nesse tema, o professor Otto Bachof responde a seus questionamentos de forma a admitir a incorporação desse direito supralegal não positivado na Constituição, não obstante reconhecer que, na Alemanha, a Constituição já teria positivado vastamente o direito supralegal, sendo muito generosa nesse processo de incorporação.

Na linha de seu pensamento, aduz dois argumentos que irão afastar quaisquer dúvidas para o reconhecimento da obrigatoriedade do direito supralegal não positivado. Primeiramente, sustenta que uma Ordem Jurídica deverá ter o direito supralegal a ela inerente para que possa ser chamada de legítima. Segundo, quando a Constituição reconhece efetivamente a existência do direito supralegal ao realizar a positivação em seu texto, não poderá alegar um reconhecimento parcial, ou seja, deverá reconhecer todo o direito supralegal, inclusive o não positivado. Conclusão a que se chega é que não se reconhece um direito somente pela metade. Reconhece-se por completo a sua existência.

Como já citado, a incorporação de direito supralegal em nosso Ordenamento ocorre de forma sistemática, deixando crer como é importante esse questionamento no direito atual. Não obstante as críticas a seu pensamento, esse direito supralegal não positivado faz parte da Ordem Jurídica, tendo como manifestações consistentes de seus postulados os princípios da Razoabilidade, da Proporcionalidade, da Eficiência, agora positivado, e quem sabe, da Cooperação Mútua e da Responsabilidade Fiscal, consagrando a existência, portanto, de uma Ordem de Valores Supralegais.

Infere-se, então, que norma constitucional infensa a direito supralegal não positivado é carecedora de legitimidade, no que toca à sua obrigatoriedade.


VIII – SISTEMA MISTO DE CONTROLE

VIII.1 – CONTROLE DE LEGITIMIDADE DA NORMA

Inicialmente, por lealdade ao debate, a tese aqui proposta é de lege ferenda. Não há previsão constitucional para o controle de legitimidade como defendemos. No entanto, boa parte do pensamento tem sustentação na Carta de 1988, como a idéia da participação popular nas decisões políticas fundamentais para a nação. Em nosso caso, o ideal consubstancia-se em conferir efetividade e aplicabilidade à Constituição. Vale dizer, o princípio constitucional de democracia participativa (artigo 1º, § único) e o direito político de participação popular (artigo 14) devem ser exercidos concretamente pelo titular do poder constituinte, i.e., pelo povo. Estaremos, sim, confirmando a prática da soberania popular e não deixando-a abandonada numa "folha de papel", como Ferdinand Lassale prescreveu em sua obra clássica "A Essência da Constituição". A Constituição pode ou não representar o efetivo poder social mas, na hipótese de não espelhar os fatores reais de poder, seria apenas a folha de papel. No Estado Democrático de Direito, devemos concretizar os mecanismos de participação popular nas decisões políticas fundamentais, sob pena de ficarmos com uma democracia participativa apenas em uma folha de papel.

Após muita análise no seio doutrinário, verificamos que, na esteira da doutrina italiana, o referendo [47]vincula-se à deliberação sobre ato prévio dos órgãos estatais, para ratificar ou rejeitar lei já em vigor ou projeto de lei, projeto ou norma constitucional, enquanto o plebiscito [48] seria uma consulta de "caráter geral, ou pronunciamento popular sobre fatos ou eventos (e não atos normativos) excepcionais e que, justamente por isso fogem à disciplina constitucional [49]".

Neste sentido [50], Santi Romano considera o referendo como na aprovação ou desaprovação de um ato normativo, seja ele de uma carta constitucional, seja uma lei ordinária ou um ato jurídico. Oswaldo Aranha Bandeira de Melo defende o referendo como "the gun behind the door" para os casos de emergência, pois na sua forma facultativa é organizado de modo a ser usado só em ocasiões extraordinárias, como último recurso legal de que o povo possa lançar mão contra os excessos dos legisladores, parece-nos ser uma garantia de paz e progresso, evitando os abusos. José Afonso da Silva entende que referendo versa sobre aprovação de textos de projeto de lei ou emenda constitucional, já aprovados; o referendo ratifica ou rejeita o projeto aprovado. Para Dalmo de Abreu Dallari, o referendo consiste numa consulta à opinião pública para a introdução de uma emenda constitucional ou mesmo uma lei ordinária, quando esta afeta um interesse público relevante. Assim, em vários países, o referendo é obrigatório para o caso de reforma constitucional, como Cuba, Panamá, Peru, Paraguai, Venezuela, Áustria, Dinamarca, França, Suécia, Coréia, Filipinas e Japão.

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Somando argumentos favoráveis ao referendo, podemos apresentar o professor Paulo Bonavides, que cita o professor Jorge Xifras Heras advogando as seguintes razões [51]: "[...] serve de anteparo à onipotência eventual das assembléias parlamentares; torna verdadeiramente legítima pelo assenso popular a obra legislativa dos parlamentos; dá ao eleitor uma arma com que sacudir o ‘jogo dos partidos’; faz do povo, menos aquele espectador, não raro adormecido ou indiferente às questões públicas, do que um colaborador ativo para a solução de problemas delicados e da mais alta significação social; promove a educação dos cidadãos; bane das casas legislativas a influência perniciosa das camarilhas políticas; retira dos ‘bosses’ o domínio que exercitavam sobre o governo".

Assim, o sistema misto de controle de legitimidade seria realizado em duas fases. Na primeira fase, o exercício da democracia participativa terá seu início com a propositura de uma Ação Declaratória de Legitimidade da norma constitucional perante um Tribunal Constitucional. Esse Tribunal não tem apenas a função de guardar a Constituição, mas também de proteção da Ordem de Valores supralegais. A legitimidade ativa para a propositura da Ação fica a cargo dos Chefes dos Poderes Executivo e Legislativo Federal e Estadual, do Procurador Geral da República, das entidades de classe com representatividade nacional e da iniciativa popular com participação de pelo menos cinco Estados da Federação.

Na segunda fase, sendo declarada ilegítima a norma constitucional, o Tribunal Constitucional remeterá o processo ao Congresso Nacional, que realizará uma consulta popular por meio de um referendo. Assim o povo, na qualidade de titular do poder constituinte, será consultado sobre a permanência ou alteração da norma constitucional em vigor. Neste caso, estaríamos dando efetividade à Constituição no exato termo de que o poder emana do povo e em nome dele deve ser exercido. Este desenho afigura-se de acordo com o modo de democracia participativa escolhida pelo povo na própria Constituição, artigo 1º, § único c/c artigo 14, incisos I, II, e III ambos da CF88. Logo, o titular do poder constituinte originário constatará que algum valor essencial por ele escolhido não está sendo atendido na sua plenitude, porque a norma declarada ilegítima não o realiza. Essa solução visa a colmatar a quebra da unidade no Ordenamento Jurídico.

Nesse passo, além de politizar mais a sociedade, pelos debates políticos que surgiriam, provocaríamos um deslocamento da força popular, que somente comparece às urnas de quatro em quatro anos, por apenas alguns minutos. Advogamos a tese de que o exercício da soberania popular e a discussão de questões que afetem diretamente o cotidiano formarão pessoas mais responsáveis e conscientes.

Assegura-se, então, o ciclo de legitimidade, pois o poder de criar uma Constituição estaria retornando a seu titular originário. O próprio poder que concede é o que pode retirar.


IX – O ENTENDIMENTO DO STF – ADIN Nº 815-3

No direito brasileiro, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal manifestou seu entendimento sobre o tema no leading case, Adin 815-3, que foi proposto pelo Governador do Rio Grande do Sul, questionando a constitucionalidade dos parágrafos 1º e 2º do artigo 45 da Carta Política de 1988. O argumento central da Ação Direta de Inconstitucionalidade está escorado no tratamento desigual e desproporcional feito ao voto dos cidadãos brasileiros. Acentua, juridicamente, que a norma constitucional em pauta fere princípios constitucionais superiores, que estão albergados pelas cláusulas pétreas, e por consubstanciarem concreções positivas do direito supralegal, estariam num patamar superior de hierarquia. Alega a violação dos princípios da Igualdade (artigo 5º da CRFB/88), da Igualdade do Voto (artigo 14 da CRFB/88), do exercício, pelo povo, do poder (artigo 1º prágrafo único da CRFB/88), da cidadania (artigo 1º, inciso II, da CRFB/88), da Democracia (artigo 1º da CRFB/88) e do Regime Federativo (artigo 60, parágrafo quarto, inciso I c/c artigo 1º da CRFB/88). E sob fundamento lógico-jurídico, explica de forma técnica que há uma real desproporção e discriminação na divisão existente entre a população do país, participação no PIB e composição do Congresso Nacional. Assim, demonstra que a região do SUL/SUDESTE detém 57,7% da população do país, participa de 77,4% do PIB e compõe de 45% o Congresso Nacional. Enquanto isso, a região NORTE/NORDESTE detém 42,3% da população, participa com 22,6% do PIB e compõe de 54,3% o Congresso Nacional. Complementa, ainda, exemplificando que essas distorções invadem todas as atividades legislativas, ocorrendo esse fenômeno na Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização do Congresso Nacional e na Comissão Mista criada para avaliar exatamente os desequilíbrios regionais. Dessa forma, sublinha que há uma disparidade, um descompasso real nessa divisão, que se torna discriminatória e injusta, tendo em vista que atribui pesos diferentes a cidadãos absolutamente iguais. Há uma colisão entre os valores de justiça e de eqüidade.

A título de reconhecimento, há entendimento doutrinário na mesma linha da argumentação do Governador do Rio Grande do Sul, consignado pela voz do professor José Afonso da Silva [52] que pontifica: Essa expressão – voto com valor igual para todos, constante do artigo 14 – é mais do que a simples relação de igualdade de voto entre eleitores. Ela, além do princípio one man, one vote, traz a idéia da igualdade regional da representação, segundo a qual a cada eleito, no País, deve corresponder o mesmo número ou um número aproximado de habitantes. Contraria a regra do valor igual o fato de que um voto, por exemplo, no Acre, vale cerca de vinte vezes mais do que um voto em São Paulo, pois para se eleger um Deputado Federal naquele bastam cerca de dezesseis mil votos, enquanto neste são necessários aproximadamente trezentos mil votos.

E por último, o Supremo Tribunal Federal, na dicção do Sr. Ministro Moreira Alves, discorda do pensamento desenvolvido pelo Governador do Rio Grande do Sul, lembrando que esse Governador não sustenta que as normas impugnadas são violadoras de direito supralegal não positivado na Constituição. E sim, que as normas impugnadas ferem direito supralegal positivado na Constituição ou ferem normas de grau superior da Constituição.

Ressalta a impossibilidade de controle do Poder Constituinte Originário por parte do Poder Judiciário, um Poder Constituído. O Supremo Tribunal Federal, como órgão máximo do Poder Judiciário, tem a função precípua de guardião da Constituição, no sentido de impedir qualquer ataque à Constituição por meio de atos infraconstitucionais. Assim que se observa a sua jurisdição. Admitir a função de verificar se o constituinte originário desrespeitou o direito suprapositivo seria despropositada e usurpadora de uma função, que cabe somente ao constituinte originário. Do contrário, teríamos que fazer uma nova Constituição.

Dissolve, também, a idéia de hierarquia entre normas constitucionais apoiada em normas de grau superior, como as cláusulas pétreas. Compreende que esse entendimento não tem cabimento no sistema de rigidez constitucional adotado pela Constituição de 1988 (a rigidez constitucional coloca limites à atividade legislativa). As cláusulas pétreas servem como limites ao constituinte derivado, impondo-lhe maior rigidez na escolha das matérias que poderão ser alteradas por via de Emenda Constitucional, e não como parâmetro de superioridade frente às outras normas. Porquanto, assevera que todas as normas inseridas no texto constitucional são ditas constitucionais, não cabendo a denominação de normas formal ou materialmente constitucionais.

Ademais, como prescrito na ementa da Adin, verifica-se que o fundamento do julgado foi igual ao que ocorreu em Portugal, quando o Tribunal Constitucional Português rechaçou a hipótese de norma constitucional inconstitucional [53], mas não adentrou no fundo da questão. O Supremo Tribunal Federal descartou a questão julgando pela impossibilidade jurídica do pedido. Porém, não penetrou no cerne do problema para discutir sobre a órbita dos valores capitais vinculantes do constituinte originário, que traduz o pano de fundo dessa Adin. O STF poderia ter avançado nesta matéria, sendo o guardião também da Ordem de Valores.


X – CONCLUSÃO

O momento de concluir um trabalho talvez seja o mais difícil. As preocupações com a clareza no raciocínio e na consistência técnica sempre geram pertubações. Em apertada síntese podemos dizer que:

(a) A hipótese de norma constitucional inconstitucional restaria configurada quando houvesse a violação de valores fundamentais de justiça, sedimentado em direito supralegal não positivado na Constituição, levando a crer que os valores a sustentar essas normas estariam em colisão, pois o processo de concretização dos valores é feito por meio dos princípios, depois pelas normas e depois pelos demais atos normativos, inclusive as sentenças. Logo, restaria insustentável a permanência das incoerências no Ordenamento Jurídico. A violação à Ordem de Valores, em medida insuportável dos postulados fundamentais de justiça, importaria no controle de legitimidade da norma, pois não foi possível a resolução das antinomias pelos critérios da hermenêutica e da técnica da ponderação de interesses. Pensamento que sustentamos em espeque nas reflexões do professor Otto Bachof;

(b) O controle de legitimidade da norma constitucional seria realizado em duas fases. A base de sustentação desse controle é a democracia participativa, um sistema misto de controle. A primeira fase é exercida pelo mais alto órgão técnico da Justiça, um Tribunal Constitucional. Nele, o Tribunal reconheceria a existência da incoerência das normas constitucionais e enviaria ao Congresso Nacional para que realizasse uma consulta popular, sob a forma de referendo, visando à permanência ou à alteração do texto constitucional.

Em suma, desejo aqui plantar uma semente no intuito de gerar uma reflexão atualizada sobre o tema. A intenção maior está no repensar contínuo do direito. A preservação do Estado de Direito coloca-se na necessidade de garantir um mínimo existencial de justiça a todos, sem discriminações. Acredito que os dias de hoje devem ser escritos com os olhos no amanhã. Porquanto, algumas perguntas colocadas pela filosofia do direito mais valem pelas indagações que provocam do que pelas respostas que produzem.

Sobre o autor
André Luiz Carvalho Estrella

procurador do Estado do Rio de Janeiro, advogado, membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESTRELLA, André Luiz Carvalho. Normas constitucionais inconstitucionais: (Verfassungswidrige Verfassungsnormen). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 268, 1 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5021. Acesso em: 23 dez. 2024.

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