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O poder normativo do preâmbulo da Constituição

(ensaio acerca da natureza jurídica dos preâmbulos constitucionais)

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Agenda 02/04/2004 às 00:00

5. Os valores superiores na Constituição de Espanha

A idéia do presente e simplório texto é identificar nos preâmbulos constitucionais a existência de uma norma jurídica de aplicação imediata, de forma a caracterizar e fomentar a construção teórico-doutrinária de um direito sócio-material, de atribuição de valor fundamental da realização material e concreta dos direitos sociais, numa política de relevância do Direito como ciência interdisciplinar. Procurando-se, pois, fundamento (jurídico e científico-político) para a sustentação de que estes não se tratam apenas de princípios norteadores ou programáticos do Estado, mas sim, de normas portadoras de valores materiais fundamentais, que intrinsecamente podem ser vislumbradas como aqueles dispositivos jurídico-constitucionais impulsores da visibilidade dos direitos sociais e, conseqüentemente, de manutenção do Estado democrático de direito, para os próximos decênios.

O pensamento consiste em demonstrar que os preâmbulos constitucionais representam o fundamento de todo o ordenamento jurídico, da unidade constitucional. É, este último, que vai determinar o sentido material aqui identificado e relevado, ficando convencionado que toda interpretação e aplicação deve prestar atenção ao disposto no preâmbulo da Constituição.

Esta identificação dos valores materiais nos preâmbulos constitucionais foi encontrada, também, por KELLY SUSANE ALFLEN, na Constituição de Espanha. Assim fala a autora que, "a Constituição espanhola traz os valores superiores de seu sistema jurídico; o artigo 1 proclama como ‘valores superiores de seu ordenamento jurídico a liberdade, a justiça, a igualdade e o pluralismo político’, e no Título I, artigo 10, e Capítulo II, Seção 1ª (arts. 14 a 30); o artigo 10, alínea 1, declara que ‘a dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à Lei e aos demais são fundamento da ordem política e da paz social’, e o Capítulo II, Seção 1ª, formula o sistema formal de liberdades e direitos fundamentais. Por segundo, destaca o âmbito material básico inserto na Constituição, o qual resulta da proteção reforçada no procedimento de reforma constitucional, equiparando (art. 168) a revisão de qualquer desses preceitos (mais na forma de estado monárquico) a uma revisão total da Constituição a uma mudança de sistema" (33)

O entendimento aqui esboçado é o de que os princípios destacados pela Carta de Espanha, revestem-se de um enorme caráter envolvendo: validez, vigência e eficácia. Não podendo, pois, ser entendidos apenas como uma mera declaração de intenções, um emaranhado de promessas fazias, de cunho formalista típico do processo individualista da modernidade, mas sim, um leque de dispositivos jurídico-político constitucional de realização sócio-material que exige o pensamento jurídico-científico coletivista da era pós-moderna e contemporânea. É taxativa (podendo ser e significar até mesmo de forma inconsciente, o que não recebe mais a menor importância) a opção feita pelo legislador constituinte espanhol, no sentido da democracia, do Estado democrático e social de direitos, pela igualdade e liberdade entre os homens, etc.

São normas primárias fundamentais que se encontram no topo da pirâmide do ordenamento jurídico espanhol, que determinam obrigatória observação pelo legislador ordinário na hipótese (cada vez mais real e concreta nos dias atuais) de reforma constitucional, bem como daquele intérprete do sistema jurídico nacional. Ainda sob este prisma, a Constituição espanhola expõe uma série de preceitos que podem ser considerados menos importantes do que os primeiros, porém, resultando por parte dos agentes uma obediência idêntica.

A lição fornecida por KELLY SUSANE ALFLEN é no sentido de que, "a Constituição espanhola consagra princípios menos relevantes, sobre os quais a eficácia interpretativa de todo o sistema jurídico infraconstitucional resulta, da mesma forma, indiscutível; por exemplo, na Seção 2ª do Capítulo II do Título I encontram-se consignados os preceitos prescritos que tratam dos direitos e deveres dos cidadãos não conceituados como imediatamente tuteláveis; no Capítulo III do mesmo Título I estão os princípios diretivos da política social e econômica; nos artigos 103 3 107, sobre a posição constitucional da Administração Pública; no Título VI, da mesma forma, sobre o Poder Judicial; no Título VII, Economia e Fazenda; no Título VIII, Sobre a Organização Territorial do Estado, etc.". (34)

Portanto, seja na reforma constitucional, seja na construção jurisprudencial ou na análise interpretativa tanto do preâmbulo quanto da esfera material básica e fundamental, o agente encontra uma determinação de obrigatório cumprimento, irrenunciável e imodificável, sob pena de argüição de inconstitucionalidade do ato jurídico.


6. Os Preâmbulos das Constituições da França de 1946 e 1958, e as Decisões do Conselho Constitucional da França

O preâmbulo da Constituição francesa de 1946 reafirma solenemente os direitos e liberdades do homem e do cidadão consagrados pela Declaração de Direitos de 1789. O preâmbulo da Constituição em vigência (1958), por sua vez, re-ratifica a Declaração fazendo expressa referência ao Preâmbulo da Constituição de 1946.

O Preâmbulo da Constituição da França – 1946:

1. Au lendemain de la victoire remportée par les peuples libres sur les régimes qui ont tenté d’asservir et de dégrader la personne humaine, le peuple frençais proclame à nouveau que tout être humain, sans distinction de race, de religion ni de croyance, possède des droits inaliénables et sacrés. Il réaffirme solennellement lês droits et libertés de l’homme et du citoyen consacrés par la Déclaration des droits de 1789 et les principes fondamentaux reconnus par les lois de la République.

2. Il proclame, en outre, comme particulièrement nécessaires à notre temps, les principes politiques, économiques et sociaux ci-après:

3. La loi garantit à la femme, dans tous lês domaines, des droits égaux à ceux de l’homme.

4. Tout homme persécuté em raison de son action em faveur de la liberte a droit d’asile sur lês territoires de la Republique.

5. Chacun a lê devoir de travailler et le droit d’obtenir un emploi. Nul ne peut être lésé, dans son travail ou son emploi, en raison de ses origines, de ses opinions ou de ses croyances.

6. Tout homme peut défendre ses droits et ses intérêts par l’actions syndicale et adhérer au syndicat de son choix.

7. Le droit de grève s’exerce dans le cadre des lois qui le réglementent.

8. Tout travailleur participe, par l’intermédiaire de ses delegues, à la détermination collective des conditions de travail ainsi qu’a la gestion des entreprises.

9. Tout bien, toute entreprise, dont l’exploitation a ou acquiert les caractères d’un service public national ou d’un monopole de fait, doit devenir la propriété de la collectivité.

10. La Nation assure à l’individu et à la famille les conditions nécessaires à leur développement.

11. Elle garantit à tous, notamment à l’enfant, à la mère et aux viex travailleurs, la protection de la santé, la sécurité matérrielle, le repos et les loisirs.Tout être humain qui, en raison de son âge, de son état physique ou mental, de la situation économique, se trouve dans l’incapacité de travailler a le droit d’obtenir de la collectivité des moyens convenables d’existence.

12. La Nation proclame la solidarité et l’égalité de tous les Français devant les charges qui résultent des calamités nationales.

13. La Nation garantit l’égal accès de l’enfant et de l’adulte à l’instruction, à la formation professionnelle et à la cultures. L’organisation de l’enseignement public gratuit et laique à tous les degrés est un devoir de l’Etat.

14. La Republique française, fidèle à ses traditions, se conforme aux règles du droit public international. Elle n’entreprendra aucune guerre dans des vues de conquête et n’emploiera jamais ses forces contre la liberté d’aucun peuple.

15. Sous reserve de réciprocité, la France consent aux limitations de souveraineté nécessaires à l’organisation et à la défense de la paix.

16. La France forme avec les peuples d’outre-mer une Union fondée sur l’égalité des droits et des devoirs, sans distinction de race ni de religion.

17. L’Union française est composée de nations et de peuples qui mettent en commun ou coordonnent leurs ressources et leurs efforts pour développer leurs civilisations respectives, accroitre leur bien-être et assurer leur sécurité.

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O Preâmbulo da Constituição da França – 1958:

Préambule

Le peuple français proclame solennellement son attachement aux Droits de l’homme et aux principes de la souveraineté nationale tels qu’ils ont éte définis par la Déclaration de 1789, confirmée et complétée par le préambule de la Constitution de 1946.

En vertu de ces principes et de celui de la libre détermination des peuples, la République offre aux territoires d’outre-mer qui manifestent la volonté d’y adhérer des institutions nouvelles fondées sur l’idéal commun de liberté, d’égalité et de fraternité et conçues en vue de leur évolutions démocratique.

Article ler

La Republique et les peuples des territoires d’outre-mer qui, par um acte de libre d’termination, adoptent la presente constitution instituent une Communauté.

La Communauté est fondée sur l’égalité et la solidarité des peuples qui la composent.

Seleciona-se, para constar aqui, dentre noventa e seis, três decisões do Conselho Constitucional da França que envolve a expressa menção ao Preâmbulo da Constituição. Faz-se necessário esclarecer que o Conselho Constitucional, criado pela Constituição de 1958, tem uma competência jurisdicional e outra consultiva. Quando decide em nível de controle de constitucionalidade (cujas decisões vêm acompanhadas da sigla "DC"), suas decisões podem conduzir à censura total ou parcial da lei, mas não a sua anulação, já que pronunciadas antes da promulgação. Suas decisões são vinculantes para os poderes públicos e para todas as autoridades administrativas e jurisdicionais.

Décision nº 86-225-DC: Nesta decisão, pode-se notar o controle de constitucionalidade tomando por base a alínea 11 do Preâmbulo da Constituição de 1946, confirmado pela Constituição de 1958 (p. 9), que serviu de fundamento para a declaração da conformidade à Constituição do artigo 4º.

Décision nº 92-308-DC: Neste caso, cuidava-se da aprovação, ou não, do Tratado da União Européia. Aqui, uma vez mais, foram utilizadas normas do Preâmbulo para sustentar a aprovação, conforme se colhe do trecho no qual os conselheiros levam em consideração o disposto na alínea 14 do Preâmbulo da Constituição de 1946, ao qual se refere o Preâmbulo da Constituição de 1958, e que proclama que a República francesa se conforma às regras de direito público internacional (pp. 15 a 17).

Décision nº 98-408-DC: Esta decisão, de 1999, destinou-se à aprovação do Estatuto da Corte Penal Internacional e fundamentou-se, a par de dispositivos da Constituição, também em seu preâmbulo para aprová-lo, mediante revisão da Constituição. Interessante notar que considerar como um princípio de valor constitucional a dignidade da pessoa humana, consagrada no Preâmbulo da Constituição de 1958 na medida em que confirmou o Preâmbulo da Constituição de 1946, que reafirmou os direitos contidos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (. 29). Em outra passagem, usa o Preâmbulo para fundamentar a possibilidade da França obrigar-se internacionalmente para favorecer a paz e a segurança mundial e assegurar o respeito aos princípios gerais de direito público internacional (p. 30).


7. PAOLO BISCARETTI DI RUFFIA – a doutrina do valor jurídico do preâmbulo constitucional

Para BISCARETTI DI RUFFIA não se trata de tarefa fácil a identificação, ou definição do valor jurídico presente nos preâmbulos constitucionais, em face da variedade dos conteúdos. Uma regra geral é de difícil conceituação. Numa tradução livre do autor menciona que, "várias Constituições contemporâneas apresentam-se com m preâmbulo que pode ter caráter de invocação a Deus (Suíça, 1874; Irlanda, 1937; República Sul-Africana, 1961), de promulgação popular solene (Estados Unidos, 1787), de caráter político (Constituição da Alemanha Ocidental, 1949), de solene remissão a princípios e liberdades genericamente formulados (França, 1946 e 1958) ou de outorga da Carta constitucional (Mônaco, 1911; Itália, 1848)". (35)

A idéia esboçada pelo autor reside no campo da interpretação de que algumas Constituições subtraíram, expressa e taxativamente, os princípios do preâmbulo ao sistema do denominado controle de constitucionalidade como, por exemplo, a francesa de 1946 e na Constituição irlandesa de 1937. Por outro lado, vedava-se a aplicação dos princípios do preâmbulo por parte dos juízes, porém, relativamente à atividade do Parlamento, os princípios de política social enunciados no Preâmbulo gozavam do poder de influência, com eficácia constitucional. A observação feita por BISCARETTI DI RUFFIA é a de que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26.08.1789, tem valor positivo no território francês em virtude da remissão que a ela faz o Preâmbulo da Constituição de 1958.

Já no seu curso de direito constitucional, quanto à juridicidade dos preâmbulos, BISCARETTI DI RUFFIA entende que ela deve ser resolvida diferentemente dentro de cada ordenação positiva. O autor então expressa que, "a tese que parece mais aceitável considera que, nos casos em que se manifestem dotados de eficácia jurídica, se deve isto a explícitas exigências das leis ou porque os princípios neles formulados devem considerar-se transformados em princípios gerais da ordenação jurídica do Estado". (36)


8. O Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil e a doutrina pátria

Encontra-se no Preâmbulo da Constituição Federal de 1988: (37)

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

Para CELSO RIBEIRO BASTOS, os preâmbulos têm a função de "facilitar o processo de absorção da Constituição pela comunidade. São palavras pelas quais o constituinte procura fincar a legitimidade do Texto. É um retrato da situação de um momento, o da promulgação da Constituição". (38) Quanto a ser o preâmbulo parte da Constituição, responde o constitucionalista pátrio, sob o ponto de vista normativo e preceptivo, que a resposta somente pode ser negativa, pois, os "dizeres dele constantes não são dotados de força coercitiva". (39)

O magistério de RIBEIRO BASTOS é no sentido de afirmar que, inobstante, não sendo ato juridicamente irrelevante, tem função auxiliar de interpretação do Texto Constitucional, mas não se pode querer fazer prevalecer um preceito normativo do que dele consta, sobre o que compõe o articulado. O Preâmbulo da Constituição de 1988, nas palavras do autos, quer significar o seguinte: "compõe-se de duas partes: a primeira destinada a firmar a legitimidade formal, e a segunda, por sua vez, é como que compensatória da magreza e do esqueletismo da primeira, elencando objetivos a serem perseguidos pelo Estado brasileiro". (40)

A conclusão irrefutável é a de que RIBEIRO BASTOS coloca a redação do Preâmbulo da Constituição, como palavras e expressões redundantes, na medida em que são repetidas nos dispositivos constitucionais. Firma sua doutrina pela não força normativa dos preâmbulos constitucionais. Com a devida vênia, pode-se dizer que se trata de doutrina não aconselhável para uma iniciação ao estudo do direito material, pois, com tal posicionamento não recepciona os direitos individuais e fundamentais clássicos existentes no preâmbulo, nem tão pouco reconhece a materialidade dos modernos direitos sociais de caráter coletivo e difuso, ou supra-individual.

O pensamento de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO reside na premissa da atribuição de uma ausência de força obrigatória do preâmbulo da Constituição Federal de 1988, pois, entende que se trata de um texto destinado a realizar uma indicação dos planos, objetivos e intenções do constituinte. Num estudo constitucional comparativo leciona que, "é inaplicável ao caso brasileiro a doutrina e a jurisprudência francesas que dão força obrigatória ao preâmbulo da Constituição de 1946 e ao da Constituição de 1958. Com efeito, o preâmbulo da Constituição de 1946, em especial, continha normas precisas e não meros princípios. Em conseqüência se podia entender, como se entendeu, que ele traduzisse normas obrigatórias". (41) FERREIRA FILHO esboça a idéia de que o preâmbulo expressa, simplesmente, uma série de afirmações de princípios, que representam e devem ser assim interpretados como um ideal, e não como normas jurídico-constitucionais de aplicação e exigibilidade imediatas.

Na doutrina de JOSÉ CRETELLA JÚNIOR identifica-se um desprezo taxativo pela discussão envolve o preâmbulo constitucional, restringe-se a dissertar sobre a tradicional divisão doutrinária existente quanto a eficácia, o valor, ou a incidência das expressões jurídico-vocabulares lançadas pelos constituintes no preâmbulo. CRETELLA JÚNIOR conforma-se em lecionar que, "dividem-se as colocações em dois grupos distintos, o primeiro, acentuando a importância do Preâmbulo, ressaltando-lhe a relação com dispositivos do texto; o segundo, procurando minimizar a relação entre a peça vestibular e o próprio texto articulado. Na interpretação dos dispositivos constitucionais subseqüentes, os dizeres do Preâmbulo, se for o caso, se esclarecerem ou completarem o texto, devem ser levados em conta, para efeito de interpretação. Como o Preâmbulo é elemento integrante da Constituição, assim que promulgada, não há a menor dúvida de que a ele se deve recorrer, quando surgem problemas de hermenêutica, desde que, nessa peça vestibular ou introdutória, haja princípios que se relacionem de modo direto ou indireto com os dispositivos constitucionais questionados". (42)

Analisando os direitos: brasileiro e francês, o pensador das Arcadas expressa o entendimento de que na França a discussão tem sua relevância. Mas, no Brasil entende ser a discussão de uma inutilidade atroz. O autor disserta que, "na França, a discussão é importante, porque, por exemplo, nas Constituições de 1946 e 1958, os Preâmbulos, longos, se fundamentam nos princípios das Declarações de Direitos, mas, no Brasil, em que os Preâmbulos equivalem às invocações das epopéias clássicas ("E vós, Tágides minhas, dai-me ..."), não tendo relações com o texto, a não ser acidentais, qualquer polêmica será estéril e acadêmica". (43) Trata-se de uma doutrina de visão jurídico-material finita e limitada, não compreendendo o momento histórico do Direito como Ciência, e não apenas como sistema de normas. Não consegue enxergar a necessidade irrenunciável do Direito como instrumento provocador da realização sócio-material para os decênios.

Extremamente difícil é realizar uma afirmação quanto ao posicionamento doutrinário de PONTES DE MIRANDA, apesar do pensador alagoano examinar cada expressão usada no preâmbulo da Constituição de 1946, restringe-se a afirmar que eles têm o papel de dizer alguma coisa acerca de "qual o poder estatal, isto é, o poder de construir e reconstruir o Estado". (44) Advertindo, porém, que, ainda quando os preceitos constitucionais aprofundem os traços gerais lançados no preâmbulo, "isso de modo nenhum autoriza a que se ponham de lado, na interpretação dos textos constitucionais, os dizeres do Preâmbulo. Todo Preâmbulo anuncia; não precisa anunciar tudo, nem, anunciando, restringe". (45) A mesma constatação pode se obter nos comentários à Constituição de 1967. (46)

Na lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA, as normas do Preâmbulo da Constituição – assim como as das disposições transitórias –, são classificadas quanto a sua eficácia, como normas de aplicabilidade da Constituição. Chega, até mesmo, a fazer referência (CARL FRIEDRICH, CARL SCHMITT, VEDEL, GARCIA-PALAYO) às posições a favor da força normativa do preâmbulo constitucional. Para AFONSO DA SILVA, os preâmbulos constitucionais valem como orientação para a interpretação e aplicação das normas constitucionais. Leciona o autor que, "têm, pois, eficácia interpretativa e integrativa; mas, se matem uma declaração de direitos políticos e sociais do homem, valem como regra de princípio programático, pelo menos, sendo que a jurisprudência francesa, como anota LIET-VEAUX, lhes dá valor de lei, uma espécie de lei supletiva". (47)

O entendimento doutrinário esboçado por DALMO DE ABREU DALLARI acerca do preâmbulo constitucional, quando menciona que é objetivo assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, é no sentido de que "é muito importante notar que o Preâmbulo fala em assegurar o exercício dos direitos, o que tem significação mais concreta do que uma simples declaração dos direitos, sem preocupação com seu exercício". (48) Portanto, define na sua doutrina humanista o ilustre professor das Arcadas que, "o Preâmbulo da atual Constituição brasileira é bem adequado a uma Constituição democrática, segundo as modernas concepções. Ele ressalta que a Constituição foi elaborada por processo democrático, mas acrescenta que a Constituição é um instrumento para a consecução de objetivos fundamentais da pessoa humana e de toda a Humanidade. Um dado final que tem grande importância é que na obra de vários constitucionalistas brasileiros contemporâneos, assim como na jurisprudência, já é referido o Preâmbulo como norma constitucional, de eficácia jurídica plena e condicionante da interpretação e da aplicação das normas constitucionais e de todas as normas que integram o sistema jurídico brasileiro". (49)

Já na doutrina de MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES (50) constata-se que estão consagrados no Preâmbulo da Constituição de 1988, diversos valores fundamentais ou superiores da Constituição. Valores fundamentais estes que não podem ser interpretados como palavras e expressões redundantes, ou vazias, ou mesmo como normas constitucionais programáticas que nunca se realizam. Caso assim fossem, poder-se-iam chamar-se taxativamente de normas programáticas para um futuro inatingível. A lição do representante das Arcadas é no sentido de que o preâmbulo tem natureza jurídica e exigibilidade imediata, detentor de força normativa, norma constitucional exeqüível em si mesma.

A síntese que se pode realizar do ensinamento de RIBEIRO LOPES pode ser assim esboçada numa citação contundente quando afirma que, "os valores incorporados pela Constituição a seu contexto têm, é evidente, a natureza de valores políticos. Políticos na sua proveniência e que se objetivando em normas passaram a ser jurídicos e como tal exigíveis, pois trazem as propriedades de validez e eficácia inerentes a estas. A circunstância de se situarem no plano constitucional – o plano mais elevado do ordenamento jurídico –, que é a sua sede logicamente adequada, impõe a conseqüência da exigibilidade imediata. Não há, por isso, possibilidade lógico-jurídica de fazer depender os seus efeitos de normas de integração como se sustenta às vezes, ora na doutrina, ora no campo da jurisprudência dos tribunais". (51)

Por último, RIBEIRO LOPES observa que na Espanha aceita-se com maior facilidade o caráter normativo do preâmbulo constitucional. Lembra o autor acerca de que é apontado "o texto preambular como de forte conteúdo determinador da interpretação da Constituição". (52) Acaba por indicar a obra de RAMON PERALTA, (53) que destaca a orientação de clara natureza axiológica contida no Preâmbulo da Constituição de Espanha.

Sobre o autor
Luciano Nascimento Silva

professor universitário, mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal), bolsista de Graduação e Mestrado da FAPESP e de Doutorado da CAPES, pesquisador em Criminologia e Direito Criminal no Max Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht – Freiburg in Breisgau (Alemanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luciano Nascimento. O poder normativo do preâmbulo da Constituição: (ensaio acerca da natureza jurídica dos preâmbulos constitucionais). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 269, 2 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5033. Acesso em: 5 nov. 2024.

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