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O poder normativo do preâmbulo da Constituição

(ensaio acerca da natureza jurídica dos preâmbulos constitucionais)

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02/04/2004 às 00:00
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Encontra,-se, expressa e taxativamente, no Preâmbulo da Magna Carta valores fundamentais tais como: "direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores...".

Toda geração desenvolve sua própria Teoria do Estado. Os temas e os pontos de vista variam com a mudança das exigências políticas do momento, tanto como do nível da metodologia epistemológica e da divisão do trabalho científico entre as diversas disciplinas. 


(Martin Kriele, "Sobre a renovação do Direito Público", Revista de Direito Público, São Paulo: RT, nº 71, setembro, 1984)

Sumário: 1. Considerações iniciais – 2. Conceito de Constituição, Lei Fundamental – Lex Fundamentalis – por Carl Schimitt – 3. Os preâmbulos constitucionais – 4. A doutrina de J.J. Gomes Canotilho – 5. Os valores superiores na Constituição de Espanha – 6. Os Preâmbulos das Constituições da França de 1946 e 1958, e as Decisões do Conselho Constitucional da França – 7. PAOLO BISCARETTI DI RUFFIA – a doutrina do valor jurídico do preâmbulo constitucional – 8. O Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil e a doutrina pátria – 9. Considerações Conclusivas – 10. Referências bibliográficas.


1. Considerações iniciais

O presente ensaio acerca da natureza jurídica dos preâmbulos constitucionais objetiva uma minúscula contribuição que venha a fortalecer as bases da construção teórico-doutrinária de uma Teoria do Estado que representa as exigências políticas sócio-materiais da pós-modernidade, que vem sendo desenvolvida por uma série de autores pátrios e estrangeiros, voltada para a garantia da dignidade da pessoa humana e para a realização direitos sociais, assim como na identificação de uma inicial construção jurisprudencial de reconhecimento da necessidade irrenunciável da materialização destes direitos e princípios constitucionais. Lembrando a lição de GIOVANNI ORRÚ de que é "papel do juiz garantir a abertura do direito ao espírito do tempo, promovendo a aplicação crítica do direito". (1)

O surgimento da Constituição nas nações ocidentais faz nascer a discussão sobre sua natureza de ser: uma espécie de lei ou um pacto. Coloca-se, portanto, a Constituição como norma a distribuir validade aos demais direitos existentes, ficando convencionado que dela emerge o destino das demais normas. KELLY SUSANE ALFLEN citando EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA vai dizer que, "inicialmente a Constituição, quando surge como um tipo de norma no Ocidente no fim do século XVIII (suas duas grandes manifestações são as norte-americanas até chegar à federal de 1787, ainda vigente, e as que se sucedem entre a Revolução Francesa), não é a norma que define em um instrumento único ou codificado a estrutura política superior de estado, porém, precisamente, a que faz desde uns determinados supostos e com um determinado conteúdo". (2)

Sua compreensão pode ser adquirida de duas maneiras, quais sejam: substancial ou formal. A norma constitucional, do ponto de vista desta última, nas Constituições consideradas rígidas, (3) apresenta-se de maneira a ser entendida como uma norma que admite sua modificação ou sua criação apenas por uma lei constitucional, lei esta que fica obrigada à observação dos procedimentos estabelecidos pela própria Constituição. A primeira, por sua vez, traz em seu bojo um repertório de matérias constitucionais, quer dizer, de entendimento no que se refere à organização jurídico-política do Estado, com competência para estabelecer as premissas ideológicas, éticas, políticas, econômicas, sociais etc., do Estado. Tudo isso sendo materializado num momento considerado histórico. Porém, a Constituição vai receber um tratamento todo especial nos estudos de HANS KELSEN, (4) que afasta do Direito todos aqueles aspectos metafísicos, psicológicos e naturalísticos. Na Teoria Pura do Direito, (5) o pensador austríaco procura construir uma doutrina que nega aparição a todo e qualquer elemento alienígena ao Direito. Representa um traço marcante da modernidade, a purificação do direito numa tentativa de negação do princípio interdisciplinar da ciência. É a veia, ou a expressão mais latente do individualismo da era moderna, que veio fomentar e desenvolver o processo formal e positivista do Direito.

PAULO DOURADO DE GUSMÃO utilizando-se da teoria elaborada por HANS KELSEN leciona que, "a condição lógica de uma teoria pura do Direito, ou seja, de um conhecimento jurídico puro, despido de ideologias, de idéias metafísicas, de noções extrajudiciais, é a ‘norma fundamental’, ou ‘norma básica’, também denominada por ‘primeira constituição’. Essa constituição não é a constituição de um Estado, não podendo, assim, ser identificada com qualquer estatuto histórico, ou constituição hipotética, ou seja, a hipótese à fundação de uma teoria pura do Direito. Não é, pois, um fato histórico, um documento solene, mas uma constituição pressuposta, cuja validade não é derivada de outra norma. É, assim, uma norma originária, na qual encontram validez todas as constituições históricas. Prescreve a ‘primeira constituição’ o respeito ao estatuto nas constituições". (6) Na leitura dos estudos de HANS KELSEN, encontram-se os motivos pelos quais se entende ser "pura" sua teoria, ou seja, está no afastamento de todos esses aspectos que convencionou denominar de "estranhos ao direito". Representa, fundamentalmente, um retrato da época.

A Constituição, seja como norma primária do ordenamento jurídico, ou como norma fundamental, exige com a sua vigência a certeza do direito, pois, tanto se trata de um documento jurídico, quanto político. Nesse sentido, a lição de PAULO DOURADO DE GUSMÃO expressa o entendimento de que, "tradicionalmente, as constituições têm uma parte introdutória: ‘preâmbulo’, estabelecedora das idéias políticas, jurídicas, econômicas e culturais, que deverão orientar o legislador ordinário em sua tarefa legiferante e inspirar o intérprete na apuração do sentido do sistema constitucional. O ‘preâmbulo’ encerra, assim, os pressupostos ideológicos da constituição. O ‘preâmbulo’, ou parte essencialmente política da constituição, pode ser considerado como a premissa fundamental da ordem jurídico-política do Estado. Essa parte consta de normas programáticas, de diretrizes, que deverão inspirar o legislador ordinário. É, assim, um programa a ser realizado pelas novas normas, ou pelas normas vigentes, através da interpretação". (7)


2. Conceito de Constituição, Lei Fundamental – Lex Fundamentalis – por Carl Schimitt

A idéia expressada pelo pensador alemão é no sentido de que a Constituição – em termos gerais, não preciso – quer representar um estatuto fundamental de regulação da convivência civil. A sua doutrina coloca a Constituição como sendo um diploma confeccionado num determinado momento da história, por grupos específicos do conjunto da sociedade, recebendo o caráter de importância singular e única para a manutenção e evolução das regras do contrato social, sendo-lhe atribuído o significado de lei fundamental. Numa diferenciação primorosa entre: Constituição e Lei Constitucional, no sentido do conceito positivo do estatuto.

Assim, CARL SCHIMITT vai colocar a Constituição no rol das leis fundamentais, àquelas disposições gerais elaboradas ao longo do tempo para uma garantia do pensamento da unidade política, uma manutenção do nacional, uma premissa da indivisibilidade das partes como elemento garantidor do todo. O seu pensamento reside em estabelecer para a Constituição um caráter de inviolabilidade, seja de sua reforma, ou de sua ofensa, admitindo rara exceção. Entende, portanto, a Constituição como diploma rígido. Vai dizer o pensador germânico que assim é a Constituição, ou Norma Fundamental:

"Ley fundamental = una norma absolutamente inviolable, que no puede ser, ni reformada, ni quebrantada.

"Ley fundamental = toda norma relativamente invunerable, que sólo puede ser reformada o quebrantada bajo supuestos dificultados.

"Ley fundamental = el último principio unitario de la unidad política y de la ordenación de conjunto. Aquí se expressa el concepto absoluto de Constitución.

"Ley fundamental = cualquier principio particular de la organización estatal (derechos fundamentales, división de poderes; principio monárquico, el llamado principio representativo, etc.).

"Ley fundamental = la norma última para un sistema de imputaciones normativas. Aquí se destaca o carácter normativo, y en ley fundamental seacentúa ante todo el elemento "ley".

"Ley fundamental = toda regulación orgánica de competencia y procedimiento para las actividades estatales políticamente más importantes; y tambíen, en una Federación, la delimitación de los derechos de ésta respecto de los Estados miembros.

"Ley fundamental = toda limitación normada de las facultades o actividades estatales.

"Ley fundamental = Constitución en sentido positivo, de donde la llamada ley fundamental no tiene por contenido esencial una normación legal, sino la decisión política". (8)

A construção teórico-doutrinária de CARL SCHMITT acerca da significação da Constituição como sendo norma fundamental, ou mesmo de toda a significação da palavra, da expressão lei fundamental, enseja a colocação de ambas em primeiro plano. Toda esta formulação do significado da norma fundamental, faz surgir o status da Constituição como sendo o todo em um do ordenamento jurídico nacional que regula a convivência civil e social. Numa admissão, seja todo ou em parte, da formulação teórica germânica, a Constituição é colocada como sendo a toda poderosa. É a ela, em primeiro lugar, a quem devemos obediência.


3. Os preâmbulos constitucionais

A questão quanto a natureza dos preâmbulos constitucionais tem suscitado enorme discussão no mundo acadêmico e na doutrina contemporânea. A doutrina constitucional pátria (9) em sua maior parte tem lecionado pela natureza do preâmbulo como princípio constitucional. O magistério é no sentido de princípio político e não de norma jurídica. Expressa o significado de que o preâmbulo da Constituição não apresenta poder normativo. Porém, antes mesmo de adentrarmos a discussão da natureza jurídica da norma constitucional, ou do assim por dizer enunciado da carta magna, fazem-se necessários alguns apontamentos acerca de dois pontos de caráter fundamental para o entendimento da discussão principal, quais sejam: a questão da validade e vigência, que se apresentam como regra para o conhecimento da norma constitucional.

Antes mesmo de chegarmos a discussão principal, a observação sobre as características da norma jurídica apresenta-se imprescindível. No ensinamento de RAUL MACHADO HORTA, "a fixação das características da norma jurídica é tema introdutório ao conhecimento da norma constitucional". (10) Fazendo uso da doutrina estrangeira RAUL MACHADO HORTA vai dizer que, "a norma jurídica distingue-se por duas propriedades fundamentais: a validez e a vigência. A validez, ensina LEGAZ LACAMBRA, pertence à essência do Direito, e a vigência é qualidade extraída da experiência. A validez é a exigibilidade da norma". (11) Por outro lado, citando HANS KELSEN, que realiza uma inovação nessa questão, leciona que "substituindo a vigência pela eficácia, torna mais nítida a distinção entre as duas categorias". (12) Quanto a validez do direito, a interpretação da idéia de HANS KELSEN pode ser assim entendida, "significa dizer que as normas jurídicas são vinculantes e todos devem comportar-se de acordo com as prescrições da norma, obedecendo e aplicando as normas jurídicas. Eficácia do Direito envolve outro plano da norma jurídica. É o do comportamento efetivo em face da norma jurídica aplicada e do correlato acatamento que ela impõe. A validez é uma qualidade do Direito e a eficácia decorre do comportamento efetivo em relação à norma jurídica". (13) Portanto, para HANS KELSEN, "a coincid6encia entre a vigência e a obedi6encia às normas caracteriza a efetividade do ordenamento jurídico". (14)

No direito pátrio, a questão envolvendo a vigência e eficácia da norma constitucional não tem recebido da doutrina e da sociologia jurídica a atenção necessária, a qual faz jus, de forma a efetivar um entendimento melhor acerca dos preceitos e princípios constitucionais presentes na Carta Magna. O que provoca uma verdadeira "poluição" de interpretações, ou mesmo a ofensa e o ferimento à Constituição. Parece-nos que se apresentam mais efetivamente as reformas da Carta do que o entendimento dela. Passa-se a viver uma era fomentada pelo anseio de reforma, quando o incentivo deveria ser voltado para uma renascença do entendimento da norma constitucional. É como se orquestrasse, ou estivesse havendo uma arquitetura oculta do instituto da postergação de interpretação sócio-material do preâmbulo constitucional, tendo como tela virtual dessa construção oculta o instituto da reforma.

Para uma finalização da questão envolvendo a validez, vigência e eficácia, por mais uma vez, faz-se uso do magistério de RAUL MACHADO HORTA, que lembra os ensinamentos do mestre MIGUEL REALE, que demonstrou com a Teoria Tridimensional do Direito que é impossível separar vigência de eficácia. Para o pensador das Arcadas, "não há problema de vigência que não se refira à eficácia, nem desta que possa abstrair totalmente daquela. A vig6encia é problema complexo e profundo, que não se restringe ao seu aspecto técnico-jurídico. A vigência põe e exige a certeza do Direito, enquanto a eficácia projeta a norma no grupo humano a ela se destina". (15)

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A questão, então, já mencionada, entorno dos preâmbulos constitucionais terem ou não caráter de normas jurídicas, poder normativo, adquire dimensão. Seriam todos os preâmbulos apenas princípios, preceitos indicativos da atuação governamental? Sonhos e esperanças da construção de um Estado de realização sócio-material? Ou alguns, ou mesmo todos, representariam regras jurídicas, ou seja, normas constitucionais de aplicação imediata, normas jurídicas exeqüíveis em si mesmas? O entendimento expressado por PAULINO JACQUES (16) é o de que, em geral, os preâmbulos constitucionais valem como princípios e não como normas jurídicas. A carta constitucional francesa de 1946 (17) traz em seu preâmbulo uma declaração de direitos formal e solene, daí a expressão (nossa) de que aquele preâmbulo tem caráter de norma jurídica. A questão é que a maior parte das Constituições do século XX traz declarações semelhantes, para não dizer idênticas. Expressamos aqui, também, concordância com a lição de LAURO NOGUEIRA citado por PAULINO JACQUES, para quem o entendimento e a interpretação jurídico-política do preâmbulo constitucional devem residir na expressão de norma jurídica e não apenas um princípio norteador das diretivas do Estado. Para o autor, "o preâmbulo é lei, como parte que o é da Constituição". (18)


4. A doutrina de J.J. Gomes Canotilho

Iniciando-se, a saber, o atual sentido de Constituição em função das inúmeras transformações sofridas pelo Estado e a Sociedade no século XX, ocasionadas pelo fim da modernidade e de seu individualismo, o surgimento e efetivação plena da era pós-moderna e contemporânea. Mais efetivamente no sentido de uma positividade-material constitucional, e não apenas de uma positividade-formal, verifica-se pontos distintos nos ensinamentos do constitucionalista português, tais como: o sentido das normas programáticas, aplicabilidade direta: normas-fim e normas-tarefa, densidade e abertura das normas constitucionais. E, principalmente, o princípio da unidade da Constituição.

Para GOMES CANOTILHO, o sentido histórico, político e jurídico da Constituição escrita continua hoje válido, ensina o pensador português que, "a Constituição é a ordem jurídica fundamental de uma comunidade. Com os meios do direito ela estabelece os instrumentos de governo, garante direitos fundamentais, define fins e tarefas. As regras e os princípios jurídicos utilizados para prosseguir estes objetivos são de diversa natureza e densidade. Todavia, no seu conjunto, regras e princípios constitucionais valem como ‘lei’; o direito constitucional é direitos positivo". (19) Corroborando a lição do pensador da escola de COIMBRA, EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA (20) em diversos estudos constitucionais fala acerca da Constituição como norma, enquanto KONRAD HESSE (21) em diversas investigações constitucionais faz afirmação no sentido de força normativa da constituição.

É bem verdade que não tem como se negar a difícil tarefa de uma implementação da força normativa da Constituição, em face de tal complexidade articulada da denominada textura aberta das cartas magnas contemporâneas. No entanto, quando se expressa o entendimento e sustentação do ensinamento no sentido de que o Direito Constitucional é uma ciência positiva e a Constituição tem força de norma jurídica, pode-se simplesmente concluir pela normatividade dos princípios nela constantes. A lição de GOMES CANOTILHO no contexto acima exposto, contempla-nos com os seguintes sentidos: a possibilidade de regular jurídica e efetivamente as relações da vida (P. HECK); e a de dirigir as condutas e dar segurança as expectativas de comportamentos (LUHMANN). (22) Tudo isso quer significar o sentido de tais normas, cabendo, então, identificar a existente ruptura com a doutrina clássica, uma mudança de paradigma efetuada pela a ambição de uma realização sócio-material do Direito, não mais se contentando com o aspecto único de sua formalidade, ou seja, não há mais como negar que as relações humanas alcançaram um nível em que não existe mais espaço para as denominadas normas programáticas, residentes no 6ambito da antiga interpretação.

Daí falar-se em normas-fim, normas-tarefa, normas-programa, que impõem uma atividade e dirigem de forma material a concretização constitucional. GOMES CANOTILHO vai dizer que, "o sentido destas normas não é, porém, o que lhes assinalava tradicionalmente a doutrina, ‘simples programas’, ‘exortações morais’, ‘declarações’, ‘sentenças políticas’, ‘aforismos políticos’, ‘promessas’, ‘apelos ao legislador’, ‘programas futuros’, juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade". (23) O pensador português fazendo uso da doutrina de CRISAFULLI leciona que, "não pode, pois, falar-se de eficácia programática (ou derivada), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória em confronto com qualquer poder estatal discricionário". (24)

Por isso, importante é entender que a materialização das normas programáticas não está ligada à interferência do legislador, mas sim, é a sua positividade (normas-fim, normas-tarefa, normas-programa) que enseja a intervenção dos organismos de instância superior. Tudo isso exterioriza o seguinte significado: uma vinculação permanente do legislador com a sua existência; uma vinculação positiva dos órgãos de criação, em virtude do caráter material permanente em todo e qualquer momento de sua realização; e, por fim, a vedação inconteste (no campo da inconstitucionalidade) de normas que se apresentam em conflito direto.

Reconhecida a eficácia vinculativa das normas programáticas, torna-se automática a interpretação de que não faz sentido a distinção entre norma jurídica atual e norma jurídica programática. O que em outras palavras significa dizer que todas as normas existentes têm seu caráter normativo, independentemente da intervenção legislativa. Não há a mais remota possibilidade de admissão das chamadas declarações de intenção presentes na Constituição, causa-nos repugnância a denominadas promessa vazia no alto do palanque, quanto mais a existência de normas não exeqüíveis em si mesmas, ou de não-aplicação imediata, no documento fundamental do contrato social. É função da doutrina construir um pensamento jurídico sócio-material no sentido de proclamar a independência do ensinamento quanto a dispensável intervenção legislativa para dar operatividade (validez, vigência e eficácia) prática aos preceitos e princípios constitucionais garantidores dos direitos fundamentais. Uma realização material dos direitos sociais.

Na esfera da aplicabilidade direta, GOMES CANOTILHO se refere à rejeição da doutrina tradicional da regulação da liberdade. Pois, hoje, é a própria Constituição a determinar que as normas constitucionais representam uma espécie de direito atual no seu sentido termo, de aplicação imediata e direta. Demonstra-nos o seguinte exemplo: "à semelhança do art. 1º/3 da ‘Grundgesetz’ de Bonn, que dispõe: os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas". (25) Faz referência direta à doutrina de K. KRUGER, dizendo que, na época atual, assistia-se a deslocação da doutrina dos "direitos fundamentais dentro da reserva da lei" para a doutrina da "reserva de lei dentro dos direitos fundamentais". (26)

Percorrendo pela doutrina do pensador português, encontra-se referência à aplicabilidade direta de normas-fim e normas-tarefa. No sentido de identificar a complexidade da aplicação direta de (normas programáticas) tais normas. Mesmo tendo ciência de se tratar de normas que constituem direito atual com a efetiva vinculação. Tudo isso no campo da aplicabilidade das normas de direitos, liberdades e garantias e de normas organizatórias. Além do cunho representativo de princípios e regras definidoras de diretrizes para o legislador e a administração. Ensina GOMES CANOTILHO que, "as ‘normas programáticas’ vinculam também os tribunais, pois os juízes ‘têm acesso à constituição’, com o conseqüente dever de aplicar as normas em refer6encia (por mais geral e indeterminado que seja o seu conteúdo") e de suscitar o incidente de inconstitucionalidade, nos feitos submetidos a julgamento, dos atos normativos contrários as mesmas normas". (27)

Um outro aspecto, refere-se à densidade e abertura das normas constitucionais; ocorre aí uma confusão entre o que seja abertura das normas constitucionais e o que significa abertura da Constituição. Impõe-se fazer uma diferenciação diante dos conceitos, existindo, pois, para ser mais preciso, dois níveis a saber: abertura horizontal (28) e abertura vertical. (29) Apresentando-se como sendo de principal interesse, portanto, apenas o segundo nível, objetivando-se encontrar uma resposta para o que GOMES CANOTILHO denominou de normas constitucionais abertas e as normas constitucionais densas.

O primeiro passo a ser dado é constatar que não se trata de uma tarefa suscetível de ser reconduzida a esquemas fixos e totalizantes. Diz, então, GOMES CANOTILHO citando G. SCHMID, que existe uma tendência a assinalar a abertura das normas constitucionais em assuntos assim entendidos: "1) sobre os quais há um consenso geral; 2) em relação aos quais é necessário criar um espaço de conformação política; 3) em relação aos quais podem ser justificadas medidas corretivas ou adaptadoras. A densidade da norma constitucional impõe-se: 1) quando há necessidade de tomar decisões inequívocas em relação a certas controvérsias; 2) quando se trata de definir e identificar os princípios identificadores da ordem social; 3) quando a concretização constitucional imponha, desde logo, a conveniência de normas constitucionais densas". (30) Por um lado, a abertura de uma norma constitucional significa, sob o ponto de vista do método, que ela comporta uma delegação relativa aos órgãos concretizadores; a densidade, por sua vez, aponta para uma maior proximidade da norma constitucional relativamente aos seus efeitos e condições de aplicação.

Portanto, a interpretação irrefutável é a de que tanto a abertura quanto a densidade são grandezas variáveis, não cabendo mais, como ainda é corriqueiro na doutrina e, sobretudo, na jurisprudência pátrias, a afirmação sobre a existência de normas constitucionais exeqüíveis por si mesmas e normas constitucionais não exeqüíveis por si mesmas, realizando a manutenção de tal diferenciação não mais comportada. Torna-se inadmissível, seja num ou noutro caso, a pregação dos denominados programas condicionais presentes nas normas constitucionais.

Encontra-se, também, na doutrina de GOMES CANOTILHO, o que se denominou chamar de unidade da Constituição. O ensinamento doutrinário é no sentido de que "considerar a constituição como um sistema de ordenação totalmente fechado e harmonizante significaria esquecer, desde logo, que ela é, muitas vezes, o resultado de um ‘compromisso’ entre vários atores sociais, transportadores de idéias, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagônicos ou contraditórios". (31) A lição é no sentido de se entender que o consenso fundamental quanto a princípios e normas positivo-constitucionalmente plasmados não pode apagar , como é óbvio, o pluralismo e o antagonismo de idéias subjacentes ao pacto fundador.

Por fim, chega GOMES CANOTILHO na sua doutrina ao princípio da unidade da Constituição. Considerando a Constituição como um sistema aberto de regras e princípios que atribui e deixa, sem dúvida, um sentido útil ao princípio da unidade da Constituição; o de unidade hierárquico-normativa. Portanto, vai dizer GOMES CANOTILHO que, "o princípio da unidade hierárquico-normativa significa que todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dignidade (não há normas só formais, nem hierarquia de supra-infra-ordenação dentro da lei constitucional). Como se irá ver em sede de interpretação, o princípio da unidade normativa conduz à rejeição de duas teses, ainda hoje muito correntes na doutrina do direito constitucional: 1) a tese das ‘antinomias normativas’; 2) a tese das ‘normas constitucionais inconstitucionais’. O princípio da unidade da constituição é, assim, expressão da própria ‘positividade normativo-constitucionais e um importante elemento de interpretação". (32)

A construção doutrinária constitucional de GOMES CANOTILHO conduz à interpretação de que o princípio da unidade da Constituição, estabelecido com o caráter de decisão, provoca uma leitura por parte de todos os atores e agentes detentores do poder e competência para aplicação e execução das regras e princípios, como uma unidade do sistema jurídico.

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Sobre o autor
Luciano Nascimento Silva

professor universitário, mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal), bolsista de Graduação e Mestrado da FAPESP e de Doutorado da CAPES, pesquisador em Criminologia e Direito Criminal no Max Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht – Freiburg in Breisgau (Alemanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luciano Nascimento. O poder normativo do preâmbulo da Constituição: (ensaio acerca da natureza jurídica dos preâmbulos constitucionais). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 269, 2 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5033. Acesso em: 5 nov. 2024.

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