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Ministério Público protege bandido? Caso Ana Hickmann

Agenda 11/07/2016 às 21:22

A apresentadora Ana Hickmann quse morreu em decorrência de ação de seu fã. O Ministério Público de MG denunciou o cunhado de Ana, por homicídio. Nas redes sociais se discute a ação do MP. O artigo explana sobre criminologia

"O Ministério Público é uma instituição pública autônoma, a quem a Constituição Federal atribuiu a incumbência de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis. Isto é, o Ministério Público é o grande defensor dos interesses do conjunto da sociedade brasileira. Tem a obrigação, portanto, de defender o interesse público, conduzindo-se, sempre, com isenção, apartidarismo e profissionalismo".

É necessário o introito sobre direitos humanos. A vida é o bem mais precioso de qualquer ser vivo. Contemporaneamente, animais humanos e animais não humanos têm proteção dos direitos humanos. A Carta Política de 1988 consagra esses direitos humanos:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...) - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

 § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Atos aprovados na forma deste parágrafo) 

§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (Regulamento)

O Direito Penal é o braço repressor do Estado, de forma que atitudes antissociais sejam punidas, na forma da lei. A criminologia — estudo do crime, da vítima, da pessoa do infrator e do controle social do comportamento delitivo — passou por várias mudanças doutrinárias. A primeira escola de Criminologia foi o positivismo. No positivismo, o criminoso é punido pela sua aparência e conduta isto é, pune-se o sujeito pelo que ele é, e não pelo que fez. Nesse aspecto, o sujeito que pratica crime é "inferior" às demais pessoas. Como exemplo, temos, durante o período colonial brasileiro, o negro, ser "inferior". Numa briga entre escravo e seu dono, este é "superiores" ao negro. Sendo o negro"inferior", o dono tinha a legítima ação de matar, sendo o Estado o protetor da conduta do "superior". No mesmo diapasão: se o marido matasse sua esposa, em caso de traição dela, por ele ser "superior", era legítima a sua ação. Porque a mulher era "inferior" ao homem; se algum criminoso de colarinho branco atropelasse algum mendigo, este, por ser "inferior", não teria qualquer chances de ter seus direitos humanos defendidos pelo Estado. Contemporaneamente, pelo Estado Democrático de Direito, a punição acontece pela ação do sujeito, e não pelo que ele é, como no positivismo. É “direito penal do fato", e não mais o "direito penal do autor" — se bem que, ainda, infelizmente, este direito ainda é aplicado tanto nos tribunais. A sociedade, em si, jamais desconsiderou o "direito penal do autor". Se o "direito penal do autor" ainda vigorasse com plena atuação no meio jurídico, dificilmente o Ministério Público denunciaria Gustavo Correa por homicídio. 

A LEGÍTIMA DEFESA

A legítima defesa, que muito internautas comentam, não foi um instituto jurídico universal. O que já foi explanado anteriormente. Luis Gama — negro, não formado em Direito —, por exemplo, justificou a ação do escravo contra o seu senhor pelo instituto jurídico da legítima defesa. E isso em plena ebulição escravocrata no Brasil.

No ordenamento jurídico penal pátrio, a legítima defesa está normatizada no art. 25:

Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Meios moderados é a proporcionalidade no uso da legítima defesa. Por exemplo, agressor é lutador de artes marciais, o agredido não é lutador e desconhece técnicas de autodefesa. Na tentativa de se defender, o agredido se vale de uma caneta em seu bolso e a usa, de forma que perfura o olho do agressor, que aplicava um "mata leão". O desespero fez com que o agredido usasse dos meios em mãos, para se defender e escapar do final inevitável. Seria desproporcional a ação do agredido que sabendo além das técnicas de artes marciais, usasse uma pistola em seu poder e mirasse no crânio de seu agressor. A legítima defesa deve ser imediata ao acontecimento, isto é, cessado o perigo, o agredido não pode procurar meios para desferir o golpe que vá defender a sua honra, como apanhar alguma arma, ou chamar amigos para dar uma surrar no agressor, pois configura exercício arbitrário das próprias razões.

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A legítima defesa pode ser preventiva, não ensejando a consumação do ato. Por exemplo, marido pega uma barra de ferro em seu veículo para bater em sua mulher. Pedestre, que passa no local e presencia o acontecimento, resolver conter a agressão do marido.  Sendo lutar de arte marciais, o pedestre aplica uma "chave de braço" no marido, que acaba imobilizado na localidade. Se, porém, o pedestre, além de aplicar a "chave de braço", começa a desferir socos no rosto do marido imobilizado, não há mais legítima defesa, pois não há razoabilidade na ação.

O CASO ANA HICKMANN

A apresentadora e modelo foi alvo de um fã. Rodrigo Augusto de Pádua, o fã que atentou contra a vida de Ana, agiu premeditadamente. Ou seja, foi meticuloso, frio, calculista. Se hospedou no mesmo local no qual Ana estava. O fato já foi várias vezes noticiado, por isto não me estenderei nele. Todavia, o fato interessante sobre a denúncia do Ministério Público, contra Gustavo Correa, cunhado de Ana, se deve, nas palavras do MP- MG, de que o cunhado agiu além da legítima defesa, por ter disparado três tiros no crânio de Rodrigo. Ou seja, um tiro seria "aceitável" diante do momento desesperador e das circunstâncias presentes. Os outros disparos seriam desproporcionais, já que Gustavo se encontrava morto após o primeiro. Porém, dizer que o primeiro disparo tenha logo matado Gustavo não pode ser peremptoriamente pensado, pois há casos em que, dependendo do calibre e das circunstâncias, o ferido por projétil balístico consegue sobreviver. É necessário perícia para confirma se o primeiro tiro realmente matou Gustavo. Quanto aos três tiros. A violência no Brasil é alarmante, mesmo que alguns administradores públicos digam, ajoelhados, que é sensacionalismo da imprensa. No inconsciente coletivo, desde a década de 1980, onde a violência urbana começou aumentar, o medo de transitar nas vias públicas abertas à circulação. O Estatuto do Desarmamento não alcançou o sucesso esperado, as armas de fogo não diminuíram, pelo contrário, continuam nas mãos dos traficantes, dos milicianos e assaltantes de agências bancárias. É fato consumado que a violência, por exemplo, no RJ, é contumaz e geradora de vários problemas sociais. Na discussão sobre a possível de improbidade administrativa do ex-governador Sérgio Cabral, por usar helicóptero, junto com seus familiares, a apreciação levou à inocência de Cabral, pois a violência nas vias terrestres justificava o uso do helicóptero. Pontuou-se, assim, a violência no RJ. Aos mortais que usam os serviços públicos de transporte terrestre, ou a qualquer usuários das vias que transitam a pé, o jeito é orar para não ser alvo de bala perdida.

Pois bem, o medo, que está no inconsciente coletivo brasileiro, pode desencadear várias atitudes: rebelar-se; achar normal e entregar bens materiais, e até a própria vida. Rebelar-se, a vontade de agir para ocupar a lacuna deixada pelo Estado quanto à segurança pública. Na primeira oportunidade, matar o bandido. Achar normal e entregar bens materiais, e até a própria vida, é conclusão que não adianta resistir porque "os mais fortes [com armas] sempre vencerão". Porém, entre os dois estremos, sempre há o instinto de sobrevivência. Dizer que alguém terá certo comportamento conclusivo, pois estudos científicos assim afirmam, não é lógico. Se assim fosse, soldados altamente treinados não exitariam em atirar nos inimigos, quando recém-saídos dos quarteis. E mesmo os veteranos, em certo momento de desligamento ao condicionamento mental aprendido durante os treinamentos nos quarteis, ainda assim, exitam certos comandos superiores — por isso existe os Códigos Militares em cada país. A pressão psicológica causa comportamento divergente do que programa mental elaborado pelas Forças Armadas. Por exemplo, as Forças de manutenção da paz das Nações Unidas, que são forças militares multinacionais instituídas pela Organização das Nações Unidas, agem em situações de guerrilhas urbanas. Os soldados são exigidos em suas forças físicas, emocionais e psíquicas além da compreensão dos que não são militares. Arma em punho, olhares a qualquer movimento suspeito. Não é incomum as mortes de civis inocentes, pois a adrenalina é constante. O soldado é um ser humano como qualquer outro, e ama a sua vida. Só não há mortes de civis inocentes em filmes irrealísticos.

Imagine, então, o ser humano que não tem qualquer treinamento militar, e se vê diante de situação que possa tirar a sua própria vida e a vida de pessoas que ama. Somado ao caos da violência urbana, diuturna, exigir "proporcionalidade" e "razoabilidade" na ação, como no caso de Ana, não é plausível, a não ser no campo puramente teórico. Claro que, qualquer acontecimento que tire a vida de qualquer ser humano deve ser apreciado pelo Estado. Senão teremos um verdadeiro retrocesso social, ou seja, qualquer pessoa justificará a sua ação pela "legítima defesa". O caso de Ana não é um caso contumaz de assaltante e vítima, que acontece nas vias públicas, e desencadeia óbitos ou deixam sequelas irreversíveis nas vítimas. Porém, tem sumária importância quanto à mentalidade brasileira de que "bandido bom é bandido morto". O algoz de Ana, até a presente edição deste artigo, não tem quaisquer antecedentes criminais, isto é, não é um criminoso contumaz. No entanto, pela mentalidade a que me referi, "bandido bom é bandido morto", se não analisada pelo ângulo da criminologia — desigualdades sociais, "suaves" condenações aos crimes de colarinho branco e "severas" condenações aos crimes praticados por pessoas que não sejam "colarinhos", ou "criminosos natos" e não natos —, o povo brasileiro continuará na postura mental de que certos indivíduos devem ser mortos ou banidos por serem, caracteristicamente, seres do mal, sem, contudo, verificar as causas que desencadearam ações criminosas, assim consideradas no ordenamento jurídico penal pátrio.

Dede a promulgação da Carta Política, o adágio [aristocrático] de "bandido bom é bandido morto" vem encobrindo a incompetência dos gestores públicos em aperfeiçoar a segurança pública, a começar pela preventiva, que é a aplicação dos direitos sociais, o combate aos crimes praticados por cidadãos que estão usando a máquina administrativa para lesarem milhões de brasileiros, e gerem o caos que todos os brasileiros vivem. Em suma, todos passam a ser vítimas deste sistema de moer pessoas [máquina antropofágica].

REFERÊNCIAS:

CALHAU, Lélio Braga.  R E S U M O D E C R I M I N O L O G I A.  4a Edição, revista, ampliada e atualizada. Editora Impetus. Niterói, RJ. 2009

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal : parte geral, 1 / Cezar  Roberto Bitencourt. – 17. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei n. 12.550, de 2011. – São Paulo: Saraiva, 2012.

KAUTER, Cristina. Criminologia e subjetividade no Brasil / Cristina Rauter. — Rio de Janeiro: Revan, 2003.

Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

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