3 – Breves comentários sobre possíveis inconstitucionalidades contidas nas leis municipais que instituíram a COSIP no âmbito dos municípios brasileiros
Como foi visto, inúmeras são as inconstitucionalidades contidas na E.C. nº 39/02.
Nossos governantes municipais, porém, não exitaram em sancionar, já no apagar das luzes do exercício de 2002, as suas respectivas leis municipais instituidoras do tributo, sob a justificativa de que estariam se adequando ao recém criado art. 149-A da Constituição Federal.
Partindo para o campo da mera abstração, ousamos dizer que muitas dessas leis sofrem de inafastáveis vícios de inconstitucionalidade formal e material, haja vista afrontarem diversos princípios e garantias fundamentais preconizados em nossa Carta Magna. Vejamos:
a)Inconstitucionalidade formal reflexa
Todas as leis municipais que instituíram a COSIP, têm por base o art. 149-A da Constituição da República, que, como vimos, é formalmente inconstitucional. Logo, em detrimento do que dispõe a teoria dos frutos da árvore envenenada, há que se considerar padecedor do mesmo vício, todas as normas infraconstitucionais baseadas em dispositivo enxertado de forma viciosa no texto da Carta Magna.
b) afronta velada ao princípio da anterioridade tributária
Vejamos o que preceitua o art. 150, III, b, da Constituição da República:
"Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
III – cobrar tributos:
(...)
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;" (grifos nossos)
Efetuando-se uma interpretação literal do referido dispositivo constitucional, poderíamos chegar à conclusão de que um determinado tributo, para ser cobrado pela municipalidade, teria somente que ser instituído antes do término do exercício anterior, através de lei. Essa, sem sombra de dúvida, é a interpretação dada pelos municípios brasileiros, a fim de defenderem a constitucionalidade de suas leis municipais, sancionadas nos últimos dias do ano de 2002.
Todavia, não podemos concordar com tal entendimento. Segundo a melhor doutrina, a interpretação literal do art. 150, III, b não é adequada para trazer à tona as verdadeiras razões que motivaram a criação do mencionado princípio constitucional de proteção ao contribuinte, pelo Poder Constituinte Originário.
Conforme leciona EDUARDO MANEIRA [18], o princípio da anterioridade tributária tem como um de seus corolários, outro princípio, denominado "princípio da não – surpresa", que visa a proteção do contribuinte contra eventuais surpresas, a serem eventualmente perpetradas por qualquer um dos entes federativos.
São mais do que pertinentes os comentários de LUCIANO AMARO [19] sobre o tema. Vejamos:
"Esmaeceu-se, no princípio da anterioridade, o fundamento do velho princípio da anualidade. As preocupações não mais se concentram no emparelhamento de despesas e receitas no orçamento; o que se enfatiza é a proteção do contribuinte contra a surpresa de alterações tributárias ao longo do exercício, o que afetaria o planejamento de suas atividades. À vista do princípio da anterioridade, sabe-se, ao início de cada exercício, quais as regras que irão vigorar ao longo do período". (grifos nossos)
É incontestável o fato de que milhões de contribuintes brasileiros foram tomados de surpresa, com a instituição de um novo tributo nos últimos dias do exercício financeiro de 2002, tendo a exigência do referido tributo, sido prevista para o primeiro dia do exercício seguinte, ou seja, 01 de janeiro de 2003!
Com base nesse entendimento, podemos dizer que todas as leis municipais editadas entre 19/12/2002 (data da aprovação da E.C. 39/02) e 31/12/2002, são inconstitucionais, por afrontarem, de forma velada, o princípio da anterioridade tributária.
c) afronta ao princípio da igualdade e isonomia tributária
Três possíveis ofensas podem ser identificadas, em ralação às leis instituidoras da COSIP, em face ao princípio constitucional da igualdade e isonomia tributária:
Primeira Ofensa:
No momento em que uma norma tributária municipal restringe o sujeito passivo da obrigação aos consumidores de energia elétrica ela viola pela primeira vez o princípio da isonomia tributária, uma vez que cria um discrímen injustificado entre os beneficiários do serviço de iluminação pública, que usufruem de forma igualitária de um serviço público universal, independentemente da condição de serem ou não consumidores de energia elétrica.
Para que a norma respeitasse a isonomia tributária, deveriam ser incluídos dentre os sujeitos passivos do tributo, todos aqueles que se beneficiam do serviço de iluminação pública, independentemente da relação de consumofirmada entre o contribuinte da "COSIP" e a concessionária fornecedora de energia elétrica, tais como proprietários de imóveis não ligados à rede de energia pública, ou munícipes que utilizem fontes alternativas de energia elétrica, como a energia solar, a energia hidráulica, de geradores elétricos movidos à gasolina ou diesel, dentre outros.
Segunda ofensa:
Leis municipais que estipulam graduações para a cobrança da COSIP de seus contribuintes através de critérios objetivos, acabam por afrontar, novamente, o princípio constitucional da isonomia tributária.
As graduações são usualmente feitas com base no consumo mensal de energia elétrica do contribuinte, e/ou ainda, com base na classificação de seu relógio medidor junto à empresa concessionária (normalmente, nas modalidades residencial, comercial ou industrial).
Tratam-se de critérios puramente objetivos de distinção, que, por terem essa característica, não dão condições de a Fazenda Pública Municipal auferir a real capacidade financeira dos contribuintes, o que afasta, inclusive, qualquer alegação de caráter social ou de igualdade material, em normas legais dessa espécie.
Terceira ofensa:
Não obstante a falta de conformidade da "COSIP" com o regime jurídico constitucional, observa-se, que em muitas das leis municipais instituidoras da COSIP, a base de incidência do "tributo" é o consumo de energia elétrica. Logo, os sujeitos passivos da obrigação tributária passam a ser, tão somente, os consumidores de energia elétrica residentes no município.
Todas aquelas pessoas que visitam o município, seja a trabalho ou a passeio, apesar de usufruírem sistematicamente do serviço de iluminação pública, não são tributados por tal utilização, o que demonstra a desigualdade de tratamento, na cobrança da COSIP. Dessa forma, surge a inaceitável conclusão de que, em vários municípios brasileiros, existe hoje uma parcela da população custeando o serviço de iluminação pública em favor de outra, que acaba não sendo atingida pela cobrança do bizarro tributo.
4 – Conclusões
Como foi visto, o art. 149 – A da Constituição da República é formalmente e materialmente inconstitucional.
O controle difuso de constitucionalidade, também chamado pela doutrina de "via de exceção", é remédio efetivo e célere contra eventuais agressões perpetradas ao princípio da supremacia da Constituição. Apesar de ser mais restrito (por gerar efeitos apenas inter pars), tem ele a vantagem de estar acessível a todos os cidadãos, não havendo qualquer legitimação expressa no texto constitucional.
Além disso, conforme proclama de forma unânime a doutrina e jurisprudência, o controle difuso ou concreto pode ser tranqüilamente exercido pelos Juízos de 1º Grau de Jurisdição, uma vez que a parte interessada não visa obter a declaração abstrata de inconstitucionalidade de determinado ato normativo, mas apenas o reconhecimento incidental de tal vício, visando, desta forma, a proteção de um direito subjetivo seu, oriundo de garantias constitucionais pré – existentes.
Não há como, neste momento, deixar de fazer referência às lições dos Profs. SYLVIO MOTTA e WILLIAM DOUGLAS [20], que de forma brilhante sintetizam a questão:
"Diferentemente do que acontece no controle abstrato que não está vinculado a uma situação subjetiva ou a qualquer outro evento do cotidiano, no controle concreto o que está em jogo é o sentimento de justiça inato no coração da parte litigante, que crê estar tendo um direito subjetivo vilipendiado pela aplicação de um ato normativo que reputa eivado de inconstitucionalidade material e/ou formal".
Assim, enquanto as autoridades legitimadas pelo Art. 103, caput, da Constituição da República não tomam a iniciativa de propor Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, contra o art. 149 – A da Constituição da República, cabe aos cidadãos, a instigação do Poder Judiciário, por via difusa, a fim de que, através de uma sentença com efeitos inter partes, possam ver resguardados seus direitos subjetivos claramente afrontados, em âmbito federal e municipal.
Espera-se, por fim, uma maior consciência dos parlamentares brasileiros, a fim de que condutas como as reveladas nesse artigo não sejam repetidas, manchando assim, o nobre caminho que nosso País vem percorrendo, como Estado Democrático de Direito.
Notas
1 Segundo Fernando Machado da Siva Lima, desde 1986, o Supremo Tribunal Federal tem julgado inconstitucional a cobrança da Taxa de Iluminação Pública (TIP), com fundamento na afronta ao art. 145, II da Constituição Federal.
2 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo., 9ª Ed., Lumen Juris, 2002, p. 257.
3 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 9ª Ed., Atlas, 2001, p. 553.
4 Expressão adotada por FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Conflito entre Poderes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 129.
5 É o que, por exemplo, vem sendo constatado, nos últimos meses, no Município de Muriaé/MG.
6 GOMES, Ciro. Um desafio chamado Brasil, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro: 2002, p. 161.
7AGUIAR, Tatiana Cristina Leite de. COSIP- Reflexões sobre a Emenda Constitucional nº 39/02 e a Lei Complementar nº 047/03-RN. Tributário.NET, São Paulo, inserido em: 6/6/2003. Disponível em: < http://www.tributario.net/ler_texto.asp?id=25094 >. Acesso em: 10/7/2003.
8 Extraído de artigo publicado em 26/01/2003, em seu site, cujo endereço é http://www.hugomachado.adv.br/.
9 Transcrito do artigo da Dra. Tatiana Aguiar, a qual já fizemos exaustiva referência.
10Curso de Direito Constitucional Tributário, 8ª ed. São Paulo, rev. e ampliada, p. 264.
11DOMINGOS, João Henrique Gonçalves. Mais um Tributo – Cobrança de Contribuição de Iluminação Pública é Ilegal.. Usina de Letras, São Paulo, inserido em: 6/2/2003. Disponível em: <http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=1611&cat=Discursos >. Acesso em: 10/7/2003.
12 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, 7ª Ed. Atualizada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 76.
13 Vide farta jurisprudência, em anexo, proveniente da 2ª Vara Cível desta Comarca, do TJ – MG, STJ e STF.
14 Ob. cit. na internet.
15 Idem
16 TJ – MG: 2ª Câmara Cível, Proc. n. 000302908-9/00, Rel. Des. Nilson Reis, j. em 20/05/2003
17 TJ – RJ: 11ª Câmara Cível – Agravo de Instrumento n.º 2003.002.08508, Rel. Des. Cláudio de Mello Tavares, j. em 24/09/2003, acórdão registrado em 03/12/2003.
18 MANEIRA, Eduardo. Direito Tributário. Princípio da Não – Surpresa, p. 24.
19 Ob. cit. p. 122.
20 MOTTA FILHO, Sylvio Clemente da. Controle de Constitucionalidade: teoria, jurisprudência e questões, 3ª Ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2000, p. 86.