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Quem manda no Brasil?

Agenda 07/08/2016 às 12:32

Empresários, bancos, políticos e altos funcionários delinquentes são os verdadeiros detentores do poder. Mas a regra tem exceções, claro.

1) Depois da Lava Jato e operações congêneres, nem o mais cético dos brasileiros pode ter dúvida: nesses quase 200 anos de independência, sempre fomos comandados (tirando as exceções honrosas) por um bando de empresários, bancos, altos funcionários e políticos ladrões, delinquentes e aproveitadores do poder. Isso se chama kleptocracia (= sistema de governabilidade dos ladrões e usurpadores). Com “k”, kleptocracia é neologismo. Até quando nós, brasileiros, vamos admitir viver num regime kleptocrata quintomundista? Há algo de muito podre no reino da Dinamarca. O risco nesses momentos de crise aguda e de descrença generalizada com os donos do poder é a prosperidade da antipolítica, ou seja, dos populismos radicais que estão rondando o mundo todo (e que podem trazer muita insegurança para todos nós).

2) A Justiça está cuidando das roubalheiras kleptocratas (das elites), mas seria importante um não retumbante da sociedade civil, que vem dando esperanças de que queremos um novo país, ético (a corrupção é o problema número 1 do Brasil, para 32% da população; 85% apoiam a cassação de Cunha – DataFolha, julho/16). Afinal, não ajuda em nada para a imagem do país (em termos econômicos, morais, políticos, jurídicos etc.) continuarmos como uma kleptocracia endêmica. Se ela foi inventada pelo humano, pelo humano pode (e deve) ser “desinventada”. Vamos mandar para a cadeia ou para fora do jogo o 0,1% das elites dominantes kleptocratas. Essa geração e as seguintes têm que mostrar que o Brasil é muito mais forte que suas elites podres. E que somos capazes de produzir novas lideranças (com cromossomos éticos).

3) “As revoluções triunfantes são uma patada em uma porta podre”, dizia o economista John Kenneth Galbraith (citado por N. Shaxson,  Las islas del tesoro, p. 13). Depois de décadas de falha no controle, a patada na porta podre da kleptocracia foi dada pela Lava Jato (que é uma microrrevolução exitosa contra as barbaridades delitivas das elites empresariais, financeiras, administrativas e políticas). Pode-se criticá-la, mas não se pode negar que ela teve uma virtude insuperável: a de mostrar o lado escandalosamente delinquente dos setores, grupos, frações e classes que mandam no país. Essa porta podre foi arrebentada. Está escancarada. Todo grande financiamento eleitoral provinha da corrupção público-privada. Tudo isso, claro, foi escondido nas campanhas marqueteiras irreais e fantasmagóricas, que são feitas para manipular a opinião pública.

4) A partir da Lava Jato (como continuidade do mensalão) foram reveladas detalhadamente as relações promíscuas e putrefatas entre as elites (econômicas e políticas) que nos governam, que nos dominam sob o formato de uma grande organização criminosa (fruto de uma Parceria Público-Privada entre Poderosos para a Pilhagem do Patrimônio e do Poder Públicos – crime organizado P-8). Todos os sinais vermelhos foram ultrapassados.

5) Os envolvidos, claro, devem ser responsabilizados penal e civilmente de acordo com o Estado de Direito. Mais: as regras do jogo econômico e político devem ser totalmente reprogramadas (ou viveremos sob recessão eterna, que está nos levando à “haitização” dos espaços e serviços públicos do país: colapso dos serviços, educação indecente, imobilidade urbana, zika, insegurança, violência – boa parcela decorrente da própria kleptocratia -, pobreza, vírus endêmicos etc.).

6) O estarrecedor não é saber que a governabilidade no Brasil é regida pelos costumes e tradições saqueadores dos donos do poder (kleptocrata). Disso muitos já sabiam ou, no mínimo, suspeitavam. O inusitado é como esse sistema de poder sistemicamente corrupto incrustado no âmago do Estado brasileiro não foi combatido antes com toda veemência pela sociedade civil e pela Justiça, apesar de já estar completando o segundo século de existência e depois de ter sido precedido pela kleptocracia portuguesa, que durou três séculos.

7) Como os intelectuais, os intérpretes do Brasil, os sociólogos e os criminólogos, de um modo geral e de forma contundente, não se insurgiram contra a realidade da kleptocracia (que vai muito além da corrupção, porque ela é um sistema de poder)? Como que ela não aparece nos relatos históricos, ainda que sempre tenha se sobreposto a todos os sistemas de governo – Império, República, Ditadura e Democracia -, chamando-a pelo nome? Se o combate a esse sistema de governabilidade começou em 2012 com o julgamento do mensalão pela Corte Suprema, qual foi a mágica manipuladora que escondeu da população durante 190 anos – 1822-2012 – a criminalidade organizada praticada pela kleptocracia?

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8) Com a palavra os especialistas, que podem avançar mais explicações. Uma delas, evidentemente, reside no abandono pela kleptocracia do sistema educacional público, notoriamente precário. A cidadania, claro, se antagoniza com a kleptocracia. Quanto mais ignorância melhor para a roubalheira. Daí a priorização informacional da mídia (TV, jornais e rádios). Inserindo-se nesse rol também o mau uso das redes sociais. Todos sabemos que esses meios de comunicação, quando mal usados, criam cidadãos desorientados.

9) Giovanni Sartori (um dos cientistas políticos mais críticos e mais sábios do século XX) afirma: “Não tanto por seus conteúdos. É que o Homo videns [dos séculos XX e XXI] é incapaz de fazer abstrações” (em La democracia en nueve lecciones, edição de M. Bovero e V. Pazé, p. 133). Ele somente sabe o que simplória e superficialmente vê nos meios comunicacionais citados. Um terço da população brasileira não sabe falar nada e até mesmo nada sabe sobre a corrupção apurada na Lava Jato (pesquisa do Instituto Locomotiva, jun/16, Valor Econômico).

10) Os conceitos de Estado, justiça, liberdade, direitos [eu agregaria: kleptocracia] “são abstratos: como faço para representá-los em imagens? Se perdemos a capacidade de abstrações, perdemos a capacidade de compreender a cidade liberal-democrática [no caso do Brasil: a kleptocracia] em que vivemos. No final do século XIX os trabalhadores liam jornais e se reuniam para discutir política. Hoje só discutem sobre futebol. Por quê? Porque o futebol é visível e suas regras são fáceis de entender, enquanto a política [e, sobretudo, a kleptocracia onde ela está inserida] requer um ‘pensamento por conceitos’ e para isso não estamos adestrados, porque pensar com conceitos nos aborrece” (G. Sartori, citado).

11) De qualquer modo, enquanto o conceito de kleptocracia vai sendo amadurecido, o certo é que os delinquentes, ladrões e aproveitadores, integrantes das elites dominantes (econômicas e políticas), devem ser tratados como tais e devidamente julgados pela Justiça, nos termos das leis brasileiras, enfatizando-se os aspectos do ressarcimento e indenizatório.

12) O empobrecimento – ou sufocação econômica – dessa classe de delinquentes desqualificados (nos limites das regras vigentes) é fundamental, pois do contrário perdura a sensação de que o crime ou o enriquecimento favorecido compensa. Na Lava Jato, até agora, eles já desembolsaram US$ 124 milhões e R$ 323 milhões, além de bens, como imóveis de alto padrão, terrenos, carros importados, lanchas e participações societárias. Ainda é muito pouco, mas já é um avanço para a cultura judicial brasileira.

13) Mais: a Justiça (tanto nas ações de improbidade como criminais) deve aprimorar seus mecanismos para garantir a certeza do castigo justo, com celeridade. É abominável a lentidão do STF, por exemplo, que até hoje recebeu apenas três denúncias no caso Lava Jato e não produziu provas em nenhuma delas. A Justiça não pode ser kleptoconivente (ainda que involuntariamente) com o crime organizado das elites empresariais, financeiras, administrativas e políticas. A decisão política hoje do STF mais importante é reforçar sua estrutura para que a ética volte a ocupar lugar de destaque no país.

Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Quem manda no Brasil?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4785, 7 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50768. Acesso em: 22 nov. 2024.

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