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Feminicídio: conteúdo e natureza da qualificadora

Agenda 29/07/2016 às 11:23

O conceito e a natureza jurídica da qualificadora denominada feminicídio ainda não estão estabelecidos na doutrina e na jurisprudência nacionais, razão pela qual há controvérsias como a relativa à qualificadora, se é de natureza objetiva ou subjetiva.

Introdução

O crime de feminicídio foi introduzido em nosso ordenamento jurídico pela Lei 13.104, de 9 de março de 2015, e visa proteger, de modo especial, o bem jurídico vida das mulheres possíveis vítimas de homicídio “por razões da condição do sexo feminino”.

A primeira definição de razões da condição do sexo feminino é dada pelo §2.º-A, do art. 121, do Código Penal, havendo essas razões quando o crime envolver: “I- violência doméstica e familiar; II- menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.

Em que pese, em nosso entendimento, o fato do homicídio cometido contra mulheres nessa situação de violência doméstica e familiar ou por menosprezo ou discriminação à condição de mulher já estivesse igualmente protegido antes da alteração, uma vez se caracterizar homicídio por motivo torpe, ex vi do inciso I, §2.º, do art. 121 do Código Penal, a nova qualificadora realça o âmbito de especial proteção da norma.

Quanto à natureza jurídica da nova qualificadora: é qualificadora de caráter objetivo ou subjetivo? Manifestamo-nos por ser sempre de caráter subjetivo, embora reconheçamos a controvérsia quanto ao inciso I do §2.º-A, do art. 121, do Código Penal.


Conteúdo e Natureza da Qualificadora

A leitura isolada do inciso VI, do §2º, do art. 121 do Código Penal conduz-nos à ideia inicial dessa qualificadora ser de natureza subjetiva: o homicídio praticado por razões da condição de sexo feminino.

Quem praticasse esse crime contra uma mulher por razões da condição do sexo feminino praticaria homicídio na sua forma qualificada por um motivo, a razão da conduta é que qualificaria o crime, logo, teria natureza subjetiva.

Contudo, além do inciso VI, a Lei 13.104 também acrescentou o §2.º-A do art. 121: “considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I- violência doméstica e familiar; II- menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. O qual se trata de norma penal interpretativa.

Assim, o crime de feminicídio não é somente o homicídio cometido “contra a mulher por razões da condição do sexo feminino”, a que a leitura isolada do inciso VI nos conduziria. A leitura integrada da norma seria algo como: matar mulher por razões de violência doméstica e familiar ou por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Sendo, à primeira vista, a qualificadora do feminicídio por razões de violência doméstica e familiar aparentemente de natureza objetiva, os atos prévios de violência doméstica e familiar que qualificariam o crime, não o motivo.

Embora, haja vista que em se buscando, encontrar-se-ia esse motivo de menosprezo ou discriminação à condição de mulher na maioria dos casos de violência doméstica e familiar, não seria necessário com esse inciso I, do §2.º-A, do art. 121, no qual já estaria presumido pela norma ou mesmo dispensado na situação específica de violência doméstica ou familiar. Imagine-se um caso de violência doméstica e familiar praticado contra a mulher em que o autor não tenha menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Por exemplo, seja o autor uma pessoa violenta não só contra mulheres da família como também contra filhos homens, pai ou irmãos: não se trataria de discriminação contra a condição de sexo feminino; contudo, sendo essa uma condição objetiva, também nesse caso haveria a qualificadora.

Felipe Pimentel Dias, em excelente artigo publicado no portal Jus Navigandi[1], considera que o feminicídio tem sempre natureza subjetiva. Para essa conclusão, ele amplia a interpretação da alteração no CP para além das novidades trazidas pela Lei 13.104; a interpretação, na visão do citado autor, deve ser feita levando-se em conta o art. 5º. da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, o qual prevê que:

“Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.”

No mesmo sentido escreve Rogério Sanches Cunha[2], o qual denota as impropriedades do legislador ao não fazer remissão à Lei 11.340/06 ou estabelecer com mais assertividade as situações abarcadas pela qualificadora. Sendo que, para esse autor, o §2.º-A “além de inútil, causa confusão”.

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Observe que, para a Lei 11.340/06, a violência doméstica e familiar contra a mulher tem sempre natureza subjetiva: “[...] configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero [...]”. Por outro lado, a inclusão de dois incisos na definição da qualificadora do feminicídio do crime do art. 121 do Código Penal, para definir o que seria homicídio praticado quando “há razões da condição de sexo feminino”, gera essa sensação do primeiro inciso ser de natureza objetiva.

Essa impressão é desfeita ao se observar a definição de violência doméstica e familiar analisada pela ótica da Lei 11.340/06, sendo também de natureza subjetiva. Assim, aparentemente, o homicídio praticado contra a mulher por razões do sexo feminino em menosprezo ou discriminação à condição de mulher é a ampliação da abrangência da qualificadora para fora do âmbito doméstico e/ou familiar, não a contraposição com uma qualificadora de caráter objetivo do inciso I.


Conclusão

Assim, a nosso ver, a qualificadora do feminicídio, homicídio qualificado por ser cometido “contra a mulher por razões da condição do sexo feminino”, deve ser considerada uma condição subjetiva, portanto incomunicável a eventuais partícipes ou coautores, quando ocorrer na situação do inciso II, do §2º-A, do art. 121 do Código Penal: “quando o crime envolve: II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Devendo responder por homicídio simples o coautor ou partícipe que não participe do homicídio impelido por esse motivo.

Da mesma forma, a qualificadora do feminicídio, quando ocorrer em virtude do inciso I, do §2.º-A, do art. 121, do Código Penal: “quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar”; é condição também subjetiva, haja vista a definição legal de violência doméstica e familiar contra a mulher prever que o ato criminoso seja baseado no gênero. Devendo a qualificadora ser aplicada àquele que concorrer para o crime envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do art. 5º da Lei 11.340/2006.

As definições de homicídio praticado contra mulher por razões da condição do sexo feminino e de crime envolvendo violência doméstica e familiar são abarcadas pelo Código Penal e pela Lei 11.340/2006. Sendo o caso de interpretação autêntica dos elementos normativos do tipo.


Notas

1 DIAS, Felipe Daniel. Comentários acerca do feminicídio. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/43676/ccomentarios-acerca-do-feminicidio>. Acessado em: 10 jul.2016

2 SANCHES, Rogerio. Lei do Feminicídio: breves comentários. Disponível em: <http://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/172946388/lei-do-feminicidio-breves-comentarios>. Acessado em: 10 jul.2016.


Referências Bibliográficas

BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. Volume 2. Editora Saraiva.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Volume II. 13. ed. Niterói: Impetus, 2016.

MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Volume 2. 9.ed. São Paulo: Método, 2016.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 12.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 2. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

DIAS, Felipe Daniel. Comentários acerca do feminicídio. Disponível em https://jus.com.br/artigos/43676/ccomentarios-acerca-do-feminicidio.

GOMES, Luiz Flavio; BIANCHINI, Alice. Feminicídio: entenda as questões controvertidas da Lei 13.104/2015. Disponível em http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/173139525/ feminicidio-entenda-as-questoes-controvertidas-da-lei-13104-2015

PIRES, Amom Albernaz. A natureza objetiva da qualificadora do feminicídio e sua quesitação no Tribunal do Júri. Disponível em https://jus.com.br/artigos/37108/a-natureza-objetiva-da-qualificadora-do-feminicidio-e-sua-quesitacao-no-tribunal-do-juri.

SANCHES, Rogerio. Lei do Feminicídio: breves comentários. Disponível em http://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/172946388/lei-do-feminicidio-breves-comentarios.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Edmar J. Feminicídio: conteúdo e natureza da qualificadora. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4776, 29 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50922. Acesso em: 18 nov. 2024.

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