Qual era o destino das várias caixas de livros empilhadas na frente da livraria que se vê neste quadro de 1781, do pintor Leonard Defrance, de Liège (Bélgica)? Vejam com atenção esta belíssima pintura. Ela é agudamente crítica (e diz muita coisa para todos nós em pleno século XXI).
Toda livraria (tal como a que se vê retratada neste quadro: “À l’égide de Minerve” – Sob a égide de Minerva) deveria ser reverenciada como um templo sagrado, porque livraria significa informação, cultura, educação e conhecimento, que são as luzes que brilham sobre a escuridão da ignorância.
O quadro exalta o édito da tolerância religiosa que o Imperador José II (1741-1790) adotou para o império austro-húngaro (ver L. M. B. Pereira das Neves, Corcundas e constitucionais, p. 414).
O que se vê na parede frontal da livraria são anúncios das várias obras mais famosas do Iluminismo (dos séculos XVII e XVIII), que pregava a secularização (separação entre Igreja e Estado). Religiosos de múltiplas confissões podem ser vistos em amistosas conversações. Afinal, é a tolerância religiosa que se louva (e que falta ainda hoje).
As caixas de livros empilhadas aguardam expedição. Destino: Espanha e Portugal, os dois símbolos máximos (no final do século XVIII) da Inquisição e da intolerância religiosa, que constituíam a essência dos Antigos Regimes absolutistas.
Pouca influência teve o Iluminismo (filosofia da razão) na cultura ibérica. De apagão cultural mesmo se pode falar. A carência de uma alfabetização universal (de qualidade) continua sendo assunto pendente. O Brasil foi um dos últimos países a ter universidade em toda América Latina. Durante vários séculos não importavam livros. A proibição da imprensa foi absoluta (até 1808). O pluralismo de ideias é fundamental para se compreender o mundo complexo em que vivemos.
De acordo com o Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional 2011-2012 – Instituto Paulo Montenegro e Ação Educativa), apenas um em cada 4 brasileiros domina plenamente as habilidades de leitura, escrita e matemática. O analfabetismo absoluto atinge mais de 8% da população. Mesmo entre aqueles considerados alfabetizados impera a ignorância.
Pesquisa recente, intitulada Retratos da Leitura no Brasil, apontou que, na média, lemos 4,9 livros por ano (um número pequeno e ainda assim enganoso, já que, deste total, apenas 2,4 livros são terminados; o restante é lido apenas em parte). Além disso, apenas 7% da população lê jornais diariamente, já levando em consideração o acesso à informação digital (Luiz Ruffato, El País).
Outra pesquisa, da NOP World Culture Score Index (mencionada pelo mesmo articulista), “mostra que os brasileiros dedicam cinco horas e 12 minutos semanais à leitura contra 18 horas e 15 minutos à televisão, 17 horas ao rádio e 10 horas e 30 minutos à internet (no caso, com navegação sem fins profissionais).”.
Antes dos livros, os brasileiros preferem reunir-se com amigos ou família (45%), assistir vídeos ou filmes em casa (44%), usar WhatsApp (43%), escrever (40%) e usar Facebook, Twitter ou Instagram (35%) (ver Ruffatto, citado). A falência do sistema educacional é inequívoca.
Por que o brasileiro lê muito pouco? Não gosta (28%), não tem paciência (13%), tem dificuldade (9%) e não sabe ler (20%). A Bíblia aparece muito à frente entre as preferências dos entrevistados, em todas as classes sociais, faixas etárias e de escolaridade. Na lista dos mais lidos, a supremacia absoluta é de nomes ligados à divulgação religiosa.
Os nomes mais lembrados, consequentemente, são João Ferreira de Almeida (tradutor da Bíblia utilizada pelos evangélicos), Zíbia Gasparetto, Allan Kardec e Chico Xavier (espíritas), padres Marcelo Rossi e Fábio de Melo (católicos ligados à corrente carismática), Edir Macedo e sua filha Cristiane Cardoso (Igreja Universal) e Ellen G. White (Igreja Adventista).
Nossa cultura é da auditividade (adquirida nas casas, nos bares, nos clubes, nos locais de trabalho etc.) e, agora, também da "internetividade" (redes sociais). O que falta? Muita emoção e pouca razão se vê no exercício da democracia. Em geral, passamos longe do ousar pensar de Kant.
Robert Browning (1812-1889), poeta inglês, escreveu: “Ignorância não é inocência, mas pecado”. Muito mais que isso: ignorância é instrumento de poder nos países cleptocratas como o Brasil. Para as elites extrativistas (plutocráticas ou cleptocráticas) a ignorância do povo vale ouro. Sem muita pressão democrática as elites nunca vão concordar com a alternatividade do ensino de qualidade para todos.