V.A COSIP não deve incidir sobre Consumidores rurais.
Outro importante ponto a ser tocado neste trabalho se refere à cobrança da COSIP aos consumidores rurais, o que seria mais um fator a incrementar o êxodo rural. Nesse ponto, é mister salientar que em vários municípios os consumidores rurais estão sendo tributados pela COSIP, muitos dos quais sem dispor de iluminação pública, o que por si só não seria justificativa aos consumidores dessa categoria serem tributados com a COSIP.
Iniciamos o debate doutrinário sobre este aspecto particular, recorrendo-nos, ainda, aos ensinamentos do mestre HELY LOPES MEIRELLES17, o qual em obra já mencionada esclarece:
"Não-incidência é a falta de ocorrência do fato gerador do tributo, por estar o sujeito passivo fora do alcance da lei tributária. (...); na não-incidência considera-se o sujeito fora do campo da tributação, por não abrangido pela legislação fiscal de determinado tributo. (...) o não-alcançado pela incidência fica livre de qualquer exigência fiscal, por não estar sujeito a qualquer obrigação tributária".
Mas não é só, o douto administativista17, na mesma obra, e à luz do Estatuto da Cidade, faz comentário de alta relevância, o qual passamos a transcrever:
"Além disso, o Estatuto da Cidade, no art. 47, estabelece que os tributos incidentes sobre imóveis urbanos (assim como as tarifas relativas a serviços públicos urbanos) serão diferenciados em função do interesse social.
O essencial é que a atividade fiscal do Município não ultrapasse sua zona urbana, desbordando para a rural, onde a competência impositiva é da União (CF, art. 153, VI)". (No original, sem grifos)
Outro problema fundamental está na classificação do consumidor como rural. Muitas legislações municipais estão incorrendo no erro de criar critérios (e até de ampliá-los) para tal classificação, quando, em verdade, o órgão responsável por tal classificação é a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, o qual, aliás, já o fez em sua Resolução n.º 456, de 29 de novembro de 2000, e alterações.
Assim sendo, tal classificação está inserida no inciso IV do artigo 20 da Resolução n.º 456/2000, cujo texto transcrevemos abaixo:
"IV – Rural
Fornecimento para unidade consumidora localizada em área rural, em que seja desenvolvida atividade rural, sujeita à comprovação perante a concessionária, devendo ser consideradas as seguintes subclasses".
Como consta no item transcrito, a classe de consumidores rurais (Subgrupo B2) abrange, ainda, mais subclasse, as quais são: (a) Agropecuária; (b) Cooperativa de Eletrificação Rural; (c) Indústria Rural; (d) Coletividade Rural; (e) Serviço Público de Irrigação Rural; e, (f) Escola Agrotécnica.
Isto posto, e sabendo da concisão de alguns textos legislativos municipais, é de se esperar que várias irregularidades estejam sendo cometidas, no tocante à cobrança da COSIP em diversos municípios brasileiros.
Podemos notar da leitura de vários textos legislativos municipais que instituem a cobrança da COSIP que não há distinção entre contribuinte rural e contribuinte urbano, ferindo, neste restrito aspecto, o Estatuto da Cidade, como visto acima, todavia, com o agravante de originar mais uma causa para o subdesenvolvimento do campo e para o êxodo rural.
VI.A Emenda Constitucional n.º 39/2002 e a Lei Complementar Municipal de Natal/RN n.º 047/2002 violam princípios constitucionais.
Neste ponto, é relevante destacarmos a violação que a EC n.º 39/2002 causa aos princípios constitucionais da vedação (artigo 167, IV, CF/88); da isonomia tributária, pois cobra apenas àqueles que são contratantes de serviço de energia elétrica, isto é, uma parte dos beneficiários, e discrimina consumidores não-residenciais, que pagam mais que os residenciais sem usar mais ou menos iluminação pública; da discriminação das rendas tributárias (instituindo imposto municipal novo fora do rol do artigo 156, CF/88, ainda que ao título de contribuição); e, do justo gasto do tributo afetado (arts. 3.º, I, 5.º, § 2.º).
Insofismavelmente caracterizada como Imposto, a COSIP não deve prosperar por ter violado o princípio insculpido no artigo 167, IV, da CF/88. Pois, pelo dispositivo citado, é vedada a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, o que está acontecendo em alguns Municípios, como no de Natal/RN.
Da mesma forma, a Lei Complementar n.º 047/2002, do Município de Natal/RN, afronta, sobremaneira, o princípio da isonomia tributária, pois a referida LC Municipal (como outras tantas em outros Municípios) impõe tratamento desigual aos contribuintes que se encontram em situação equivalente, quando estipula que o consumidor não-residencial deve contribuir à razão do dobro do valor e não distingui os consumidores urbanos dos rurais. A COSIP fere, dessa forma, o artigo 150, inciso II, da Constituição Federal de 1988.
Considerando a COSIP como sendo um "imposto" não previsto constitucionalmente, é relevante discutir-se a violação ao princípio da discriminação das rendas tributárias, haja vista que o Município de Natal/RN instituiu verdadeiro imposto fora do rol taxativo do artigo 156 da CF/88.
Ademais, a EC n.º 39/2002 e a LC Municipal de Natal/RN n.º 047/2002 ferem, também, o princípio do justo gasto do tributo afetado, o qual é condição para a instituição de qualquer tributo e destinação de sua receita, além de pressuposto da imprescindível Justiça Tributária. Nesse passo, temos o ensinamento de ROBERTO WAGNER LIMA NOGUEIRA19:
"Pensar a Justiça Tributária no campo das contribuições sociais, é desenvolver e vivenciar a realidade de uma justiça tributária transformadora, isto é, observar no campo da realidade social, a aplicação do Princípio Constitucional do Justo Gasto do Tributo Afetado. Portanto, todas as normas veiculadoras de contribuições sociais estão subordinadas a este princípio constitucional sob pena de eiva de nulidade".
Especificamente, ao tratar da Lei Complementar n.º 047/2002, do Município de Natal/RN, traz-se a discussão a respeito de sua hipótese de incidência e de sua base de cálculo, as quais são manifestamente incongruentes.
Assim demonstraremos. A teor do artigo 2.º da citada Lei Complementar n.º 047/2002, a COSIP "incide sobre a propriedade, o domínio útil ou a posse a qualquer título, de unidade autônoma imobiliária" (hipótese de incidência do IPTU), entretanto limita-se, em qualquer hipótese, pelo disposto no parágrafo único de seu artigo 6.º, a 15% (quinze por cento) do valor do importe do consumo de energia elétrica para os imóveis edificados (hipótese de incidência do ICMS), ou do valor do IPTU para imóveis não-edificados. Dessa maneira, a COSIP, da forma como pretendida pelos legisladores do Município de Natal/RN, afigura-se ainda mais ilegal.
Entretanto, mesmo que a hipótese de incidência e a base de cálculo fossem conexas, o atacado tributo não poderia prosperar, em vista da matéria já ventilada neste trabalho.
VII.Conclusão.
Como dito no início do presente trabalho, a iluminação pública é um serviço geral, ou uti universi, o que lhe dá características jurídicas próprias as quais deveriam ter sido levadas em conta pelo legislador federal ao editar a EC n.º 39/2002. Pois, à luz de todos os argumentos ventilados neste trabalho, outra conclusão não há, senão a de que a EC n.º 39/2002, e por conseqüência o artigo 149-A da CF/88, são inconstitucionais, vez que a autorização de criação da COSIP, verdadeiro imposto, extrapola o poder legislativo constituinte derivado, conflitando com a ordem constitucional estabelecida pelo legislador constituinte originário.
Outrossim, como já exposto, a COSIP viola os princípios constitucionais da vedação, da isonomia tributária, da discriminação das rendas tributárias e do justo gasto do tributo afetado. Fatos estes que reforçam a tese de inconstitucionalidade da referida Emenda Constitucional.
Por seu turno, boa parte das Leis Complementares municipais que instituíram a COSIP, como a de Natal/RN afora os vícios expostos acima, também padece do vício da ilegalidade, eis que vai de encontro à Lei n.º 4.320/64 ao não criar fundo especial para receber a renda proveniente da COSIP; estabelece formas incongruentes de hipótese de incidência e de base de cálculo; além de, em muitos municípios, não haver adequada discriminação entre os consumidores urbanos e rurais.
Concluindo, se acaso o Poder Judiciário brasileiro abrir o precedente de constitucionalidade de que a União extrapole o seu poder constituinte derivado; de que os Municípios possam instituir imposto disfarçado de contribuição geral, em desconformidade com vários princípios constitucionais, tributários e financeiros, para custear serviços uti universi, não será leviano prever que, em seguida, virão contribuições para o custeio da segurança pública, das forças armadas, da educação e ensino, da Administração Pública, dentre outros serviços da mesma categoria. O que nos leva a afirmar que os impostos, esses, sim, fontes de receita para custear serviços gerais, tornar-se-iam desnecessários, porém, certamente, cobrados.
Notas
1 MEIRELLES. Ob. Cit. Pág. 321.
2 Idem, ibidem.
3 Supremo Tribunal Federal, Pleno, RExt n.º 233.332-6 Rio de Janeiro, Rel. Min. Ilmar Galvão, D.J. 14.05.1999.
4 MEIRELLES. Ob. Cit. Págs. 158/159 e 236.
5 HARADA. Ob. Cit.
6 HARADA. Idem, ibidem.
7 SALLES, Deborah, in MACHADO, Hugo de Brito [coord.]. Ob Cit. Pág. 166.
8 DIAS, Eduardo Rocha, in MACHADO, Hugo de Brito [coord.]. Ob Cit. Págs. 231 e 232.
9 PINTO, Adriano, MACHADO, Hugo de Brito [coord.]. Ob Cit. Pág. 39.
10 Idem. Pág. 73.
11 MORAES. Ob. Cit. Pág. 543.
12 MEIRELLES. Ob. Cit. Pág. 416.
13 SALLES, Deborah, in MACHADO, Hugo de Brito [coord.]. Ob Cit. Págs. 162 e 163.
14 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito, MACHADO, RAQUEL Cavalcanti Ramos, in MACHADO, Hugo de Brito [coord.]. Ob Cit. Págs. 266 e 277.
15 SOUZA, Fátima Fernandes Rodrigues de, in MACHADO, Hugo de Brito [coord.]. Ob Cit. Págs. 256 e 257.
16 Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal na ADIN n.º 937-7/DF.
17 MEIRELLES. Ob Cit. Pág. 181.
18 Idem. Pág. 196.
19 NOGUEIRA.. Ob Cit.
Bibliografia Consultada.
HARADA, Kiyoshi. Contribuição para Custeio da Iluminação Pública. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 65, mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4076. Acesso em: 26.05.2003.
MACHADO, Hugo de Brito [coord.]. As Contribuições no Sistema Tributário Brasileiro. São Paulo : Dialética / Fortaleza : ICET. 2003.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 12. ed., São Paulo : Malheiros. 2001.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11. ed., São Paulo : Atlas. 2002. Pág. 543.
NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Justiça Tributária e a Emenda Constitucional nº 39/2002. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 63, mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4076. Acesso em: 26.05.2003.