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Princípio da igualdade e o sistema de cotas para negros no ensino superior

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Agenda 14/05/2004 às 00:00

3. A POSIÇÃO DOS AFRODESCENDENTES NA NOSSA SOCIEDADE

3.1. A situação dos negros vista por alguns indicadores sócio–econômicos

A exclusão dos afrodescendentes parece evidente em nosso país, o que, estatisticamente tem sido demonstrado pelos institutos de pesquisa de boa idoneidade, como IBGE, Ipea e Instituto Ethos. Conforme resultado obtido por esta última entidade, em pesquisa denominada de Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas, em parceria com a Escola de Administração e Economia de São Paulo da FGV, Ipea, OIT e Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas Para a Mulher (UNIFEM), "apenas 1% das empresas diz manter programas para melhorar a capacitação profissional de negros, que constituem 43,3% da população economicamente ativa". Merece destaque o dado indicativo de que a população de negros e pardos no Brasil é de 45%. Nos Estados Unidos da América – outro país que adota políticas de inclusão de negros – o porcentual destes é de apenas 13%. Esse grande percentual faz com que nosso país tenha a maior população de negros e pardos fora da África - são quase 80 milhões de pessoas. Entre nós sempre se disse que vivemos uma democracia racial justificada pela receptiva, rica e pacífica miscigenação entre as raças aqui viventes. Entretanto, os dados estatísticos revelam uma democracia racial disfarçada, onde a realidade crua vem à tona, expondo um triste painel sócio-econômico. A miséria dos morros, a diferença no acesso à instrução, ao trabalho e à renda, entre outros, desfazem a fantasia da acalentada democracia. Estudo do IBGE mostra que existe uma disparidade enorme entre os números conferidos aos brancos e aos negros. A distribuição de riquezas e a conseqüente justiça social – objetivo maior de toda nação moderna – têm permanecido longe dos acometimentos dos governantes e dos economistas. A desigualdade gritante entre brancos, negros e pardos pode ser auferida com dois dados principais: índice de analfabetismo (21% para negros, 19,6% para pardos e 8,3% para os brancos) e índice de renda em salários mínimos (2,43 salários para negros, 2,54 para pardos e 5,25 para brancos). Ainda segundo dados do IBGE, recentemente divulgados, do 1% dos mais abastados do país, 88% são brancos; contrariamente, dos 10% mais pobres, 70% são negros ou pardos.

Efetivamente, a situação é de exclusão social. A discriminação racial é uma realidade presente e ostensiva. E entre as fontes das desigualdades, pode ser citado, principalmente, o modelo econômico e social adotado pelo Brasil colônia e o posterior abandono dos negros, após a abolição.


4. A IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...), proclama o art. 5º, da nossa Constituição Federal de 1988. Já no preâmbulo, a igualdade é mencionada como um dos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Podemos dizer que, tanto quanto a liberdade, a igualdade é um princípio, um direito e uma garantia que pretende se firmar como cosmopolita.

Comentando sobre a interpretação do princípio da igualdade, o insigne Professor Paulo Bonavides demonstra a dificuldade em conceituá-lo hodiernamente: "os domínios da interpretação constitucional testemunha controvérsias inumeráveis com relação ao conceito de igualdade, sobretudo em razão do prestígio que a igualdade fática ou material entrou a desfrutar naqueles sistemas onde a força do social imprime ao Direito os seus rumos".

Assim, não podemos deixar de perceber que a igualdade estampada na nossa Constituição deve ser compreendida, levando-se em conta sua dupla dimensão, ou seja, seus dois característicos principais, incorporados na mesma rubrica: igualdade formal e igualdade material. Para o ilustre e consagrado José Afonso da Silva,

nossas constituições, desde o Império, inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciando que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação trata a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos. A compreensão do dispositivo vigente, nos termos do art. 5º, caput, não deve ser assim tão estreita. O intérprete há que aferi-lo com outras normas constitucionais, conforme apontamos supra e, especialmente, com as exigências da justiça social, objetivo da ordem econômica e da ordem social.

Complementando formidavelmente o raciocínio, Paulo Bonavides assevera que

o Estado social é enfim Estado produtor de igualdade fática. Trata-se de um conceito que deve iluminar sempre toda a hermenêutica constitucional, em se tratando de estabelecer equivalências de direitos. Obriga o Estado, se for o caso, a prestações positivas; a prover meios, se necessários, para concretizar comandos normativos de isonomia. Noutro lugar já escrevemos que a isonomia fática é o grau mais alto e talvez mais justo e refinado a que pode subir o principio da igualdade numa estrutura de direito positivo.

Retornando a Aristóteles, lembrado sempre pela doutrina tradicional, optamos pela simplicidade das soluções possíveis, uma vez que a questão da igualdade possui amplas possibilidades de compreensão, sob os mais variados ramos do conhecimento humano, entre os quais o político, o jurídico, o filosófico, o sociológico e o religioso. Aristóteles assenta as bases de sustentação, proveitosas para o propósito do nosso trabalho, ao anunciar que o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam. Seguramente, a asserção é coerente com a atuação das leis porquanto, em regra, nada mais fazem senão discriminar.

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Mas, certamente, a palavra igualdade não é de conteúdo vazio, facilmente manipulável para satisfazer a propósitos rasamente justificáveis. O que se tem verificado na argumentação da doutrina é que esse princípio se ajusta ao tratamento desigual, desde que o realize justificadamente, isto é, não se vulnerabilizando a simples objeções.

Indague-se, então: em que casos o discrímen é perfeitamente aceito, justificável e possível?

O deslinde da questão, efetivamente, pode estar nas palavras do arguto Professor Celso Antonio Bandeira de Mello, na sua obra Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. Para este, três são os critérios para a identificação do desrespeito à isonomia:

a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.

Esclarecendo melhor, o autor diz que é preciso investigar se o critério discriminatório adotado possui fundamento lógico ou justificativa racional para atribuir o específico tratamento jurídico em razão da desigualdade. "Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles. Se não houver conexão lógica entre o fator diferencial e a disparidade do tratamento jurídico adotado, o discrímen certamente é hostil ao princípio da igualdade."


5. AS AÇÕES AFIRMATIVAS COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO SOCIAL

5.1. O sistema de cotas para acesso dos negros às universidades públicas

O aspecto da igualdade por nós aqui tratado será aquele em que o elemento racial é o distintivo para a aferição da hostilidade ao comando constitucional, pois é aspecto central para o desenvolvimento do nosso trabalho. Trata-se de um tema que envolve uma problemática constitucional muito interessante, não só em face do artigo 5º da nossa Constituição, que valoriza a isonomia, como também diante do artigo 206, I, que registra a igualdade de condições para acesso e permanência nas escolas, e o artigo 208, V, que condiciona o acesso aos níveis mais elevados de ensino, segundo a capacidade de cada um. Terá como objeto de análise as medidas legislativas que instituíram as cotas raciais, mais precisamente a lei nº 4.151, de 04 de setembro de 2003, sancionada pela governadora do Estado do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho. Referida lei faz parte de um conjunto de medidas que atualmente vêm sendo adotadas no país, denominadas de ações afirmativas, cujo objetivo principal é a promoção dos afrodescendentes, isto é, sua integração social com vistas para a concretização do princípio da igualdade material e da neutralização dos efeitos da discriminação racial. Essas ações ganharam destaque em nosso ambiente político-jurídico após a III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, realizada em agosto de 2001, em Durban, África do Sul.

Vejamos dois dos principais artigos da lei nº 4.151:

Art. 1º - Com vistas à redução de desigualdades étnicas, sociais e econômicas, deverão as universidades públicas estaduais estabelecer cotas para ingresso nos seus cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes:

I – oriundos da rede pública de ensino;

II – negros;

III – pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, e integrantes de minorias étnicas.

Art. 5º - Atendidos os princípios e regras instituídos nos incisos I a IV do artigo 2º e seu parágrafo único, nos primeiros 5 (cinco) anos de vigência desta Lei deverão as universidades públicas estaduais estabelecer vagas reservadas aos estudantes carentes no percentual mínimo total de 45% (quarenta e cinco por cento), distribuído da seguinte forma:

I – 20% (vinte por cento) para estudantes oriundos da rede pública de ensino;

II – 20% (vinte por cento) para negros; e

III – 5% (cinco por cento) para pessoas com deficiências, nos termos da legislação em vigor e integrantes de minorias étnicas.

Parágrafo Único – Após o prazo estabelecido no caput do presente artigo qualquer mudança no percentual acima deverá ser submetida à apreciação do Poder Legislativo.

Para muitos, tais disposições vêm para "oficializar a discriminação racial no País, ferir o bom senso e aviltar a própria imagem dos pertencentes a uma raça que tanto tem contribuído para a riqueza cultural do Brasil". Em Notas e Informações do jornal O Estado de São Paulo, publicou-se a seguinte opinião:

Na verdade, somente uma visão, de fato, racista, que não considere que os negros ou pardos – os chamados afrodescendentes – possam ter o mesmo potencial intelectivo de qualquer pessoa (seja branca, asiática ou indígena, para as quais, aliás, não se cogitou de favorecimento por meio de cotas), explicaria essa ideologia "cotista", que desmente fatos comprovados da realidade, vale dizer: que negos e pardos têm condições de vencer, plenamente, em todos os campos da atividade humana, graças a seus próprios méritos e esforços, sem que para isso necessitem de "vantagens" compensatórias. Por outro lado, sem que se negue a existência de preconceitos raciais no seio de nossa sociedade – que devem ser combatidos com os rigores que as leis brasileiras vigentes determinam, nesse campo -, não se pode negar que no Brasil há formidável miscigenação racial, talvez em grau único no Planeta, o que constitui uma de nossas maiores riquezas antropológicas e culturais.

Lamentamos, mas entendemos que a opinião lançada no referido jornal não nivela adequadamente seus argumentos com a abrangência da questão emergente. Mesmo quando o articulista se trata de um advogado, que registrou suas idéias no supracitado jornal, em 22/02/2003: "Na verdade, o que tem o belo título de "política compensatória" não passa de uma ultrajante lambuja, ofertada pelos que desprezam a probabilidade – largamente demonstrada, em todos os campos de atividade – de os negros vencerem graças aos próprios méritos e aos próprios esforços, sem a condescendência, que é filha da arrogância (branca), em que pesem os preconceitos que, junto a outras minorias, os negros têm enfrentado".

A contundência desse tipo de defesa se presta mais ao firme propósito de "defender por defender", dogmaticamente, uma direção de pensamento. Não avista nada além dos paradigmas já solidificados, embora de eficácia precária até então. Falar em critério do mérito, esforço pessoal, orgulho moral e igualdade de capacidade entre brancos e negros, resulta apenas em argumentos que nada convencem. Politicamente, são argumentos rasos. Juridicamente, desfocados. Politicamente, porque não pesa os prós e os contras – conveniência e oportunidade - base das decisões de políticas públicas. Juridicamente, porque não alça a discussão no nível da Constituição Federal, onde ao menos existe a possibilidade de se encontrar soluções plausíveis advindas dos jogos de princípios.

Contemporaneamente, é marcante a refutação aos argumentos que pregam a existência de raças superiores. Há, inclusive, corrente que não adere ao discurso que reitera a existência de raças. Para estes, só existe uma raça: a raça humana, uma única espécie. Assim, os argumentos contrários às cotas justificam a ilegitimidade da "discriminação positiva" porque esta reforça e declara a ideologia odiosa de tempos passados: a de que os brancos são mais capacitados, sendo a eles reservado o posto de dominador e orientador das raças inferiores. Tal desatino seria o argumento-chave para ver nas medidas de inclusão dos afrodescendentes o gérmen da desigualdade não-consentida pela nossa Constituição.

De opinião mais sensata e realista, entretanto, Paulo Renato Souza, Ministro da Educação no governo Fernado Henrique Cardoso, afirma que "medidas paliativas têm, por certo, um papel importante, embora circunscrito, para aliviar situações crônicas. Para aplicá-las, contudo, é preciso estar seguro de que seus efeitos negativos não venham a ser maiores do que o alívio que podem eventualmente proporcionar, nem venham a substituir as soluções definitivas". O raciocínio merece respeito, pois percebe o malogro da atividade pública no campo do ensino e antevê possíveis dificuldades futuras. Com efeito, a política de cotas deverá ser aplicada com prudência e, paralelamente, em nossa opinião, duas outras ações devem ser postas em execução: em primeiro lugar, far-se-á necessário um reforço na instrução dos alunos cotistas para compensar a má qualidade do ensino público médio; em segundo lugar, dever-se-á atacar o problema onde ele efetivamente tem sua origem, isto é, na má qualidade da educação pública.

Sobre o autor
Décio João Gallego Gimenes

Servidor Público Federal – TRT 15ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIMENES, Décio João Gallego. Princípio da igualdade e o sistema de cotas para negros no ensino superior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 317, 14 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5158. Acesso em: 14 nov. 2024.

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