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Princípio da igualdade e o sistema de cotas para negros no ensino superior

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14/05/2004 às 00:00
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Capítulo 6

AÇÕES AFIRMATIVAS E O IMPASSE CONSTITUCIONAL

6.1 - Sistema de cotas para negros e a regra constitucional da não – discriminação

A problemática constitucional que implicou, inicialmente, a emissão de três leis promulgadas pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, instituindo o sistema de cotas nas universidades estaduais (50% para estudantes vindos da rede pública de ensino; 40% para estudantes negros e pardos; e 10% para estudantes portadores de deficiência física), como já era previsto, chegou ao Supremo Tribunal Federal sob a forma de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), argüida pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), distribuída em 19/03/2003. O parecer, enviado pelo Procurador Geral da República, Geraldo Brindeiro, pugnou pela declaração de inconstitucionalidade em razão do que dispõe o artigo 22, XXIV, da Constituição Federal, visto que é da competência privativa da União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional. Embora consistente, o argumento do Procurador Geral não será aqui analisado por não tratar diretamente a questão, e sim, limitar-se aos aspectos de competência legislativa. A ADI, contudo, foi extinta com fundamento no art. 267, IV, do C.P.C., em razão da revogação das três leis estaduais (3.524/2000, 3.708/2001 e 4.061/2003) pelo art. 7º da lei estadual 4.151, de 05 de setembro de 2003, que unificou as três cotas em uma única lei. Com a nova lei, as universidades públicas estaduais do Rio deverão instituir cotas para ingresso nos seus cursos aos estudantes carentes, oriundos da rede pública de ensino, aos negros, e às pessoas com deficiência, prescrevendo percentuais menores para as três espécies de cotas, da seguinte forma:

I - 20% (vinte por cento) para estudantes oriundos da rede pública de ensino;

II - 20% (vinte por cento) para negros; e

III - 5% (cinco por cento) para pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor e integrantes de minorias étnicas.

As motivações que têm suscitado acalorados debates nos diversos setores da nossa sociedade, contudo, permanecem, embora reduzidas as cotas. Especialmente a nós, como objeto deste trabalho, interessa-nos a questão de reservas de vagas aos candidatos negros.

Efetivamente, uma das conseqüências da implantação dessas ações afirmativas (ou da discriminação positiva) foi a constatação da fragilidade do princípio da igualdade, pelo menos nos moldes em que estávamos acostumados a entendê-lo.

O princípio da igualdade, inserido na nossa Constituição, visa, consistentemente, a obstar fator de discrímen aleatoriamente escolhido e sem pertinência lógica. Nas palavras do professor Celso, "(...) o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas". O preceito moral de que as pessoas devem ser tratadas como iguais não oferece uma boa razão para justificar a hostilidade ao ditame constitucional no caso da lei que estipulou o sistema de cotas para ingresso de negros nas universidades públicas estaduais do Rio de Janeiro. Ao implementar a igualdade material, através das chamadas ações afirmativas, estão se cumprindo exigências de outros mandamentos, também inseridos na Carta Magna, cuja efetividade deve ser mais intensa. Entre estes, as que se constituem nos objetivos nobres de um Estado Democrático são a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Todos sabemos – e as estatísticas confirmam – que a fruição dos atributos da cidadania e da dignidade é bem menos vigorosa para o grupo dos afrodescendentes, embora estes representem 45% da população do país. Além do mais, encontramos, no artigo 3º do Estatuto Maior, outros objetivos fundamentais para os quais a República Federativa do Brasil deve se voltar: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

O liberalismo político, que é o modelo adotado pelo nosso país, valoriza o trabalho humano e a livre iniciativa (artigo 170 da Constituição Federal). Suas principais ações políticas devem se direcionar para a redução das desigualdades, a eficiência da Economia e a liberdade política e civil. Sabemos, ainda, que num Estado liberal o mérito precisa ser reverenciado. Indagamos, então, como harmonizar "direitos iguais" com "cidadãos desiguais"? Como louvar o mérito individual diante da reserva de vagas para negros nas universidades? Certamente, o sistema de cotas para ingresso nas universidades trará à tona a seguinte constatação: um negro será incluído e um branco será excluído. Nesse caso, a cor da pele é vantajosa para um e desvantajosa para outro. Isto seria constitucional?

O professor Ronald Dworkin, em sua obra intitulada Uma Questão de Princípio, analisa o caso de Bakke, estudante branco que, mesmo obtendo notas relativamente altas em seu teste, fora rejeitado na escola de medicina da Universidade da Califórnia em Davis, que adota um programa de ação afirmativa para admissão de estudantes negros e de outras minorias. Para Dworkin,

"não há, naturalmente, nenhuma sugestão nesse programa de que Bakke divide alguma culpa individual ou coletiva pela injustiça racial nos Estados Unidos, ou que ele tem menos direito a ser tratado com consideração ou respeito que qualquer estudante negro aceito no programa. para negros. Ele ficou desapontado e merece a devida solidariedade por essa frustração [...]. Não é culpa de Bakke que a justiça racial agora seja uma necessidade especial – mas ele não tem o direito de impedir que sejam usadas as medidas mais eficazes para assegurar essa justiça".

A meritocracia, tão alardeada por aqueles que a invocam para depreciar o sistema de cotas para estudantes negros, exerce função determinante na realização pessoal. Mas entendemos, entretanto, que o merecimento individual não deve ser o único caminho para o progresso pessoal e a conseqüente ascensão na vida. Construir uma sociedade livre, justa e solidária também se constitui em um dos objetivos fundamentais da nossa República. A solidariedade aqui mencionada é um dos instrumentos sem o qual é impossível a consecução da eqüidade. A correção das injustiças sociais passa, obrigatoriamente, pela solidariedade das pessoas. E esta deve ser levada em conta na avaliação das ações afirmativas para promoção dos afrodescendentes. De fato, nós temos responsabilidade sobre aquilo que fazemos e, objetivamente, podemos ser culpados por parte do nosso fracasso. Todavia, não chegamos a ponto de sacralizar o dito popular Deus ajuda a quem cedo madruga. O nobre valor do mérito está fraudado pelas distorções sabidamente existentes entre os concorrentes do concurso vestibular. Sabemos, e não devemos esconder, que os marginalizados e oprimidos pelas condições sócio-econômicas não disputam o concurso nas mesmas condições fáticas que aqueles que foram agraciados, desde o nascimento, com o privilégio de galgar suas existências num ambiente ameno e fecundo para lhes propiciar o pleno gozo das prerrogativas da cidadania e dos bens materiais disponíveis. A justiça, nesse caso, está em colocar este ideal de vida numa perspectiva atingível. A estratificação social verificável em nosso país em nada contribui para a conquista dos louros concedidos a nações triunfantes na tarefa de realizar o bem estar generalizado – objetivo maior do Estado Democrático de Direito.

Que não se pense que, ao defender de maneira apaixonada esses sublimes ideais estamos apenas expondo justificativas ingênuas e retóricas. Ao contrário, estamos convencidos de que as universidades são os centros de geração dos meios necessários para o pleno desenvolvimento das pessoas, tanto direta quanto indiretamente. Diretamente, porque quanto maior o nível de formação escolar, melhor a qualidade de vida de seu detentor. Indiretamente, porque o saber produzido nas universidades é melhor aproveitado quanto mais pessoas dele puderem se beneficiar para, em seguida, transmitirem a outras pessoas, estimulando-as a se engajarem na mesma busca e assim sucessivamente. Afinal, povo instruído é povo desenvolvido. E promover o desenvolvimento sócio-econômico de um povo é dever precípuo do Estado Social.

Para confirmar a virtude das ações afirmativas, basta olhar para a experiência norte americana, onde as iniciativas de resgate social – notadamente a implantação de cotas para o ingresso nas universidades – têm produzido uma classe média de negros. Lá, a experiência com a ação afirmativa já dura há quase 40 anos. Embora em porcentual menor que no Brasil (os negros representam 13% dos americanos), o impacto produzido no consumo de bens e o conseqüente crescimento da economia nacional já são suficientes para nos convencermos da conveniência e oportunidade da medida. Não é difícil reconhecer que estes resultados, acrescidos ainda pelo fato de que a diversidade racial nas escolas contribui positivamente para o ambiente educacional, foram determinantes para que a Corte Suprema Americana emitisse, no dia 23 de junho passado, decisão a favor da chamada affirmative action. Por cinco votos a quatro, a Suprema Corte dos Estados Unidos confirmou a política de admissão que favorece os negros, adotada pela Universidade de Michigan.

A juridicidade da ação afirmativa ora em discussão pode ser ainda legitimada por explícitos dispositivos legais, inseridos no nosso ordenamento jurídico. Primeiramente, atentemos para o que dispõe o parágrafo 2º, do artigo 5º, da nossa Carta vigente: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (grifo nosso).

Comentando a esse respeito, em seu livro intitulado Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, a Professora Flávia Piovesan nos convence com o seguinte raciocínio: "ora, ao prescrever que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais, a contrario sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte". Mais adiante, a autora conclui seu ponto de vista informando que "ainda que estes direitos não sejam enunciados sob a forma de normas constitucionais, mas sob a forma de tratados internacionais, a Constituição lhes confere o valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e complementam o catálogo de direitos fundamentais previsto pelo texto constitucional". Entende a autora, e com ela somos acordes, que há recepção pela Constituição de 1988 dos direitos declarados em tratados internacionais em que o Brasil seja signatário.

Com fulcro, então, no que dispõe o parágrafo 2º, do artigo 5º, da nossa Constituição Federal, a juridicidade das ações afirmativas é manifesta à vista do que dispõe a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968, promulgada pelo Decreto n.º 65.810, de 8.12.1969, especialmente diante do teor do artigo primeiro, parágrafos 1 e 4:

Artigo 1º

§1. Para fins da presente Convenção, a expressão "discriminação racial" significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública.

§4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos. (grifo nosso)

Reconhece-se, assim, a proibição da discriminação. Mas, simultaneamente, também prestigia a ação afirmativa como instrumento de promoção da igualdade material.

Digno ainda de registro é o ensinamento da Professora Flávia, ao sugerir a classificação dos direitos previstos na Constituição em três grupos distintos: a) o dos direitos expressos na Constituição (por exemplo, os direitos elencados pelo texto nos incisos I a LXXVII do art. 5º); b) o dos direitos expressos em tratados internacionais de que o Brasil seja parte; e, finalmente, c) o dos direitos implícitos (direitos que estão subentendidos nas regras de garantias, bem como os direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição).

Como acréscimo, é conveniente lembrar que nossa República tem como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, art. 2º, I, o que é atingível com a redução das desigualdades sociais e regionais, art. 2º, III. A maior emanação jurídica para legitimar o sistema de cotas para ingresso dos negros nas Universidades certamente provém daí.

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CONCLUSÃO

Estamos convencidos de que ainda hoje, em nossa sociedade, os negros ocupam posição inferior em comparação com os não-negros. Esta constatação é contrária ao propósito do conjunto da Nossa Constituição, especialmente quando se tem em mira o ideal de Democracia. Desse axioma decorre a legitimidade para justificar as ações afirmativas para a inclusão dos afrodescendentes que, consistentemente, encontram juridicidade no princípio constitucional da igualdade.

Optamos por considerar que o fator do discrímen motivador das medidas legislativas que visam à inserção do negro nas universidades não é simplesmente aquele relacionado à quantidade de melanina na pele – pois, neste caso, patente a lesão ao princípio da isonomia –, mas sim o fator subjacente àquele e de maior significação justificatória: a desigualdade econômica. A cor da pele apenas se apresenta como o elemento de melhor identificação dessa lamentável condição. Subjacente à cor da pele, está a disparidade sócio-econômica originária de processos históricos que remontam ao período do Brasil colônia – onde ocorria a mais abjeta forma de exploração do homem pelo homem, representada pela escravidão –, e ainda continua na atual segregação velada que propicia a manutenção de privilégios.

De forma explícita, nossa Constituição reconhece somente a igualdade no aspecto formal, isto é, igualdade perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, conforme sacramentado no artigo 5º, caput. Mas, não estaria a estagnação legal acomodando situações e privilégios justificados apenas pelo estrito cumprimento da norma positivada? Deve a lei apenas cumprir o papel de regular o que já existe ou deve também ter função mais nobre e transformadora, sobretudo na busca da eqüidade, que é a essência da Justiça?

São questões não tão simples de responder, pois estão impregnadas de forte teor de abstração. Uma questão séria, certamente, é a que diz respeito à definição da própria Justiça. Nesse caso, porém, podemos nos orientar, afirmando que a Justiça é aquela que almeja a maior efetividade da liberdade, da distribuição de riquezas e da felicidade entre os homens. Pairando sobre esses valores, a transcendência da paz. A nós, parece-nos que nossa missão terrena deve trilhar norteada por esse núcleo de valores.

Dignas de menção, neste momento, as palavras de Ronald Dworkin, professor de filosofia jurídica na Universidade de Oxford e professor de Direito na Universidade de Nova York, ao comentar a discriminação compensatória: "pode ser que os programas de admissão preferencial não criem, de fato, uma sociedade mais igualitária, pois é possível que não tenham os efeitos imaginados por seus advogados. [...] Não devemos, porém, corromper esse debate imaginando que tais programas são injustos mesmo quando funcionam. Precisamos ter o cuidado de não usar a Cláusula de Igual Proteção para fraudar a igualdade".

A Constituição de 1988 não só firmou a igualdade formal – exigência do Estado Democrático de Direito – mas também admitiu a igualdade material ao ditar que o Brasil tem como uma de suas metas fundamentais a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III). Estabeleceu, ainda, objetivos básicos para a consecução da justiça social, em que a instrução dos cidadãos é um de seus instrumentos, tais como a garantia do direito à educação (art. 205), igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (art. 206, I). Quanto ao princípio da meritocracia, firmado no artigo 208, V, certamente entendemos que deve prevalecer, pois exerce função edificante ao estimular o desenvolvimento das ciências.

A lei pode, sim, promover o bem estar e o crescimento de um povo, mas melhor seria se não fosse posta em ação somente quando a questão requer um tratamento de emergência. É oportuno lembrar que, nos Estados Unidos, as primeiras iniciativas no campo das ações afirmativas para inclusão dos negros ocorreram há 40 anos. Além disso, a solução do problema agudo deve vir acompanhada de outras medidas com vocação para a permanência do efeito desejado. Bem-vindas também seriam as medidas profiláticas que poderiam ser postas em execução pelos detentores do comando no país. Devemos ficar alerta, portanto, para que atos de política pública dessa natureza só sejam acolhidos quando não forem incrustados em seu conteúdo os remendos de anteriores ações políticas irresponsáveis, pois, dessa forma, gerações futuras poderiam ser apenadas sob a sentença de culpa histórica.

Eis o risco de tratar os problemas difíceis com soluções fáceis. O Projeto de Lei do Senador José Sarney propõe amenizar este gap estipulando que a reserva de vinte por cento de vagas para negros nas universidades deverá permanecer, de início, por cinqüenta anos, com a reavaliação de sua necessidade a cada dez anos.

De todo o exposto, entendemos legítimas as ações afirmativas para inserção dos afrodescendentes no ensino superior. Não obstante os percalços de lidar com valores fecundos, porém abstratos, nossa Carta de 1988 se constituiu, positivamente, no melhor projeto de nação. Falta-lhe, apenas, maior efetividade. Agora, os primeiros passos estão sendo dados.

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Sobre o autor
Décio João Gallego Gimenes

Servidor Público Federal – TRT 15ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIMENES, Décio João Gallego. Princípio da igualdade e o sistema de cotas para negros no ensino superior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 311, 14 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5158. Acesso em: 10 mai. 2024.

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