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A culpabilidade como juízo de imputação

Agenda 23/06/2004 às 00:00

INTRODUÇÃO

             O Estudo da imputação subjetiva passa pela necessidade do estudo da culpabilidade e em quais circunstâncias aparecera na aplicação do Direito Penal alemão, através da jurisprudência daquele país e com espetaculares decisões da Corte Constitucional germânica.

             Enquanto a imputação objetiva nascera no finalismo e agora é adotada pelo funcionalismo penal, encontrando-se para a grande maioria dos autores no tipo penal(funcionalistas) e para outros na antijuridicidade(finalistas) e para alguns apenas circunda o tipo e ainda para alguns, veio para solucionar o problema do nexo de causalidade, não há dúvidas de que a imputação subjetiva encontra-se na culpabilidade, vista como um juízo de imputação e não como mero pressuposto para aplicação da pena.

             Nossos autores tradicionais, geralmente influenciados pelo neokantismo, afirmam que a culpabilidade é um pressuposto para a aplicação da pena, tratando-se, portanto, de um juízo de reprovação da conduta típica e antijurídica. Outros, separam a culpabilidade do "juízo de culpabilidade", incluindo-a no conceito de crime, mas sempre sendo uma reprovação do fato típico e antijurídico.

             No sistema da culpabilidade como um juízo de imputação subjetiva, o juiz não somente irá verificar se o autor do fato típico e antijurídico é imputável, etc., mas se a pena é necessária, isto é, trata-se de um sistema onde o que se verifica é a presença dos fins preventivos da pena e não uma reprovação moral, ou seja, se a aplicação da pena não causará para a sociedade um dano social maior do que deixar de aplicá-la!

             Trata-se da quebra dos dogmas do direito tradicional de que necessariamente havendo um fato típico e antijurídico e culpável, a conseqüência será a aplicação de pena, sem a análise de suas conseqüências sociais.

             Libertou-se a dogmática alemã das escolas correicionalistas que apregoam a "recuperação" ou a "reeducação" do delinqüente através da prisão, percebendo que a prevenção especial possui uma falsidade, diante do estigma que causa à pessoa, pelo fato de ser o egresso do sistema penitenciário, discriminado, rotulado, não conseguindo emprego, sendo, portanto, excluído do processo produtivo e alijado da interação social.


I – DAS INSTITUIÇÕES TOTALIZADORAS

             A Alemanha percebera que a prisão como uma instituição totalizadora que é, introjecta no indivíduo os valores da subcultura delinqüente, fazendo-o acreditar-se realmente um marginal, um irrecuperável.

             A psicologia forense, de fato, demonstra que todas instituições totalizadoras(manicômios, conventos e prisões) possuem regras e valores absolutos, os quais são incontestáveis. E todas essas instituições necessitam para sobreviverem, da destruição do "eu", pois se cada interno continuasse a manter a sua individualidade, o caos reinaria em tais instituições.

             Na prisão, por sua feita, a regra é a violência! Os mais fortes dominam o presídio: sua cozinha, a faxina, destruindo outros grupos rivais. Traficam e corrompem funcionários, além de provocarem rebeliões, formando grupos delinqüentes e associações criminosas, de caráter estável, com hierarquia e regras de comportamento.

             Portanto, injustificável mandar um cidadão para um local desses por fatos penalmente irrelevantes, ou, por fatos que foram criminalizados por vontade e influência de grupos culturais, religiosos e econômicos dominantes. A prisão deverá ser reservada para fatos socialmente relevantes, que atinjam a pessoa humana ou a sociedade como um todo.

             A corte constitucional alemã, certa feita, absolvera um cidadão que praticara omissão de socorro, sendo vítima a sua própria esposa, que falecera por falta de transfusão de sangue, diante do fato de ambos serem membros de uma religião que não admitia tal transfusão. O cônjuge varão acatou a última vontade de sua mulher, antes que a mesma falecesse.

             A Suprema Corte Germânica decidira que os grupos sociais são distintos e conflitivos em seus valores e, que neste caso, a mulher religiosa, caso acontecesse a transfusão de sangue, com autorização marital, mas sem sua concordância, sofreria um drama de consciência, de tal forma, que sua vida perderia o sentido, tendo inclusive solicitado ao marido que não desrespeitasse as regras religiosas de sua crença, comum entre os cônjuges.

             O fato era típico, antijurídico e culpável, mas aplicar uma pena ao marido, que igualmente vivia sob os mesmos preceitos religiosos, era desnecessário(imputação subjetiva), pois o Estado estaria violando seu drama de consciência e interferindo em seus valores.


II - PAPEL DO DIREITO PENAL EM UMA SOCIEDADE CONFLITIVA

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             No Brasil, a sociedade é ainda mais heterogênea do que a alemã. Enquanto alguns realizam palestras sobre prevenção do uso de drogas, outros pais fumam maconha juntamente com seus filhos(Revista Veja, ano 34, nº 45, pg. 98).

             Qual será o papel do Direito Penal em uma sociedade conflitiva, sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito? Será impor valores morais? Os valores são comuns em todas as "bolhas sociais"? Ou são conflitivos? Quando pleiteamos uma condenação penal para que uma pessoa freqüente nosso sistema penitenciário e seja chamado de "reeducando" durante a execução da pena, por subtrair uma bicicleta ou um CD de um grande supermercado, estaremos pretendendo puni-lo realmente pelo que ele fez(violação do bem jurídico patrimônio) ou pelo que ele é(um ladrão da classe pobre, que um dia poderá nos atingir como membros da classe média)? Se houve a violação da lei, basta lembrar que o Direito Penal não veio para proteger a lei, mas a lei é que veio para proteger bens jurídicos relevantes.


III - O FUNCIONALISMO PENAL E A IDENTIDADE NORMATIVA

             O Direito Penal visa proteger muito mais a dignidade do homem. É a defesa do bem jurídico.

             Não se deve sacrificar a dignidade humana para defender pseudos bens jurídicos, visto que não há como haver aglomerado humano sem que haja crime. Este é uma construção lingüística elaborada pelo Estado, é uma comunicação entre o Poder estatal e a sociedade.

             Diante da complexidade social, há a prevenção geral positiva, que consiste em chamar a sociedade à valoração do comportamento e das normas penais.

             Na vida social há o risco e este é permitido. É a sociedade de confiança, onde não se espera ser vítima de crime. Mas se a pessoa ultrapassar os limites do risco permitido, poderá ser vítima, não podendo socorrer-se do Estado(imputação objetiva).

             Jakobs vai tratar o funcionalismo de maneira diferenciada, dizendo que não há como saber qual é o bem jurídico, por não ser palpável.

             O que nos motiva a cumprir o Direito Penal, segundo o funcionalismo, é a identidade normativa no grupo social e esta identidade normativa possui para aquele agrupamento humano um valor. Sendo assim, o crime é um desvalor de acordo com o grupo social.

             Portanto, mesmo que uma conduta esteja formalmente descrita como típica em lei, não deverá ser o autor punido, caso haja consenso social da inutilidade da norma, como nos casos de sedução, adultério e bigamia, além de tantas contravenções penais.

             Para GÜNTHER JAKOBS, o crime é uma conduta defeituosa do autor, onde este não observa a norma, violando o seu papel social, aquilo que se espera dele(JAKOBS, Günther, A Imputação Objetiva no Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari. Ed. Revista dos Tribunais).

             A sociedade se nega a admitir que este crime ocorreu por problemas na vida ou no contexto social(defeito da sociedade).

             Jakobs quer que a pena represente a realidade do sistema jurídico.

             O Direito Penal funcional tira a máscara da sociedade. Demonstra que o Estado não possui o dever de proteger a sociedade, mas sim, garantir a identidade normativa. Esta é a característica do Estado de Direito.

             O homem sendo livre, pode praticar um crime, como por exemplo, um pai estuprar a própria filha no interior de sua casa. O Estado não pode dar segurança à vítima e evitar que isto aconteça.

             O Estado entende que a sociedade poderá e deverá agir dentro dos limites da identidade normativa.

             O Direito Penal quer preocupar-se apenas com aqueles que ingressam na culpabilidade, tendo por base uma comunicação que vai estabelecer o comportamento que esteja de acordo com a identidade normativa, tendo-se o mesmo código de comunicação.

             A pena é necessária para manter uma ordem social, mas não o único instrumento, podendo outros ramos do Direito intervir com maior eficácia, sem causar estigmas, além do controle primário da criminalidade(reformas urbana e agrária, distribuição de renda, educação, acesso à saúde, ao transporte, lazer e esportes).

             Tornar-se o Direito Penal mais restrito possível e comunicar-se com a sociedade, é um objetivo a ser alcançado pelo Estado Democrático de Direito, pois sendo conflitiva, dificilmente o excesso de criminalização de condutas alcançará todos os membros da sociedade, caindo no descrédito, selecionando sempre os mais pobres, havendo inclusive falta de comunicação do Estado com a população, perdendo-se a identidade normativa.

             Existem casos em que ocorre a integração do fato defeituoso com a identidade normativa. Por exemplo: o marido agride fisicamente sua mulher. No dia seguinte, o casal faz as pazes, tendo a mulher perdoado o marido agressor. A sociedade e o Estado não têm que interferir na agressão ocorrida anteriormente, pois tal interferência nenhum benefício trará ao casal, ao contrário, poderá desestabilizar a vida conjugal. O Direito de Família poderá, perfeitamente, regulamentar o conflito.


IV – EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE BEM JURÍDICO

             Para o positivismo de Ferri e Lombroso, o bem jurídico era o Direito Natural; Von Liszt, entende que o bem jurídico é social; Binding, afirma ser a lei o próprio bem jurídico.

             No entanto, se o Direito Penal for funcional, ou seja, querer de fato ser útil à sociedade, respeitará que a sociedade possui valores diferenciados, por ser extremamente conflitiva e heterogênea, notoriamente a sociedade industrial moderna.

             Neste sentido, Jüngen Habermas sempre quis saber qual a razão do ser humano receber valores e agir de forma diversa, eticamente, dos valores que recebera.

             Klaus Günter afirma que a culpabilidade baseada no sistema da exigência do autor de agir de maneira diversa é ilegítima, pois este é o direito penal do autor-totalitário, vinculando-se a postura moral.


V – CULPABILIDADE E APLICAÇÃO DE PENA

             A culpabilidade não traz consigo a questão da pena. Não há ligação entre a pena e a culpabilidade, como pensam os clássicos e positivistas. Só pode ser culpável o autor que tiver a oportunidade de participar da formação da lei penal(cidadania), em amplo processo democrático, ocorrendo um liame entre o cidadão e a legitimidade da norma jurídica. Desta forma, não há porque punir toda conduta típica e antijurídica, mas somente aquelas que possuem relevância social, cujas normas recebem o apoio quanto a sua validade, consensualmente ou majoritariamente na sociedade(como por ex. arts. 121, 157, 159, 213, 214, 312, etc.).

             Ora, a sociedade exclui milhares de pessoas da participação do processo de formação das leis, através da miséria social, sequer como eleitores possuem tal participação. Famílias inteiras vivem de forma degradante, sequer recebendo a comunicação social da norma penal e sua legitimidade.

             O cidadão, pois, é aquele que faça parte do processo legislativo como eleitor, por exemplo. Havendo neste caso, um respeito à lei pelo cidadão.

             Os que não participam deste processo, têm diversos motivos para não cumprirem a lei.


VI – CULPABILIDADE ATENUADA(CO-CULPABILIDADE)

             Mesmo no sistema de reprovabilidade, isto é, no sistema de culpabilidade baseada na exigibilidade de conduta diversa, fruto do Direito Penal Clássico e neokantista, ilegítimo em um verdadeiro sistema democrático, os penalistas Zaffaroni e Pierangelli, reconheceram que a desinformação normativa, diante da exclusão social, através da violação do contrato social(pacto social) estabelecido entre o Estado e o povo, mediante a não concretização das políticas sociais previstas nos artigos 6º a 11 da Constituição Federal, atenua a culpabilidade.Deveriam dizer que exclui a culpabilidade, pois cidadão excluído deixa de ser cidadão. No capitalismo, quem perde totalmente a capacidade de produzir e consumir, perde a cidadania, bastando olhar os andarilhos, os mendigos e as crianças de rua. Surge o conceito de CO-CULPABILIDADE(atenuante inominada - art. 66 do CPB), reconhecendo-se que há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais(baixa escolaridade, miséria, etc.). Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há aqui uma "co-culpabilidade", com a qual a própria sociedade deve arcar. A co-culpabilidade faz parte da ordem jurídica de todo Estado social de direito, que reconhece direitos econômicos e sociais(arts. 6º a 11 da CF), e, portanto, tem cabimento no Código Penal mediante a disposição genérica do art. 66(ZAFFARONI, Eugênio Raúl & José Henrique Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, RT, 1999, pgs. 610/611).


CONCLUSÃO

             O sistema de culpabilidade vigente em nosso direito(da exigibilidade de conduta diversa) é ilegítimo, trazendo em sua ideologia, a defesa de uma postura moral e a exigência de condutas homogêneas para grupos sociais extremamente heterogêneos, com o claro objetivo de impor valores éticos e morais de um grupo dominante sobre as demais camadas sociais, através de um arcaico Direito Penal do autor do fato e não do fato praticado pelo autor.

             Objetiva o Estado exercer um controle social dos mais pobres e dos excluídos através do Direito Penal, banalizando-o, militarizando-o, mas com as tristes conseqüências de presídios superlotados, com diversas pessoas em regime fechado, as quais poderiam estar cumprindo penas alternativas ou em regimes mais brandos que não o fechado. Sendo a culpabilidade, no sistema de exigibilidade de conduta diversa, uma reprovação da conduta típica e antijurídica, com elementos normativos e não um juízo de imputação subjetiva, todo autor que pratique um injusto penal, cujos elementos normativos da culpabilidade encontrarem-se presentes, fatalmente receberá uma pena, isto é, milhares de pessoas são e serão rotuladas como criminosas e excluídas de novas oportunidades sociais, causando assim, um mal social maior e inaceitável para os dias modernos em que vivemos.

             Já o sistema de culpabilidade através dos fins da pena(imputação subjetiva), o Juiz garantirá que ninguém será apenado, mesmo que cometa um fato típico e antijurídico, caso os fins preventivos da sanção(geral e específico) não encontrem-se presentes. Saberá o Magistrado, que a prisão não reeduca, ao contrário, é um fator de aumento da criminalidade, inclusive a organizada e, portanto, somente fatos socialmente relevantes necessitam desse mal, pois aí sim, será um mal menor.

             O Magistrado impedirá, mediante o seu juízo de imputação(subjetiva), que o Estado interfira na vida do cidadão, quando o fato for socialmente irrelevante, ou quando a vítima aderir ao discurso do autor(consenso comunicativo entre autor e vítima – como por exemplo, arts. 217 e 220 do CP), ou ainda, condutas que visam impor valores éticos e morais(art. 240 do CP).

             Reconhecerá que vivemos "em sociedade" e esta possui "bolhas sociais", cujos valores são conflitivos e respeitará cada uma delas. Estará ciente que não existe "a sociedade", pois este é um termo ideológico monista, onde o grupo dominante quer fazer acreditar que todos possuímos valores homogêneos e que o crime é algo que deve ser "combatido", como se estivéssemos em guerra e esta guerra há que ser vencida a todo custo, mesmo que se viole os direitos individuais indisponíveis do cidadão, arduamente conquistados por nós brasileiros, vítimas de ditaduras que perduraram por longos anos e que cometeram atrocidades inesquecíveis.


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             ZAFFARONI, Eugenio Raúl, Em Busca das Penas Perdidas, Editora Revan.

Sobre o autor
Sérgio Abinagem Serrano

Promotor de Justiça- Titular da 13ª Promotorial de Justiça de Goiânia, Especialista em Direito Penal, Processual Penal e Criminologia, Membro da banca examinadora de concurso para ingresso na carreira do Ministério Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SERRANO, Sérgio Abinagem. A culpabilidade como juízo de imputação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 351, 23 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5190. Acesso em: 23 dez. 2024.

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