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Há um justificável ceticismo quanto ao acordo de cessar-fogo na Síria

Agenda 17/09/2016 às 11:50

A lógica da guerra é o pilar da estrutura norte-americana. É preciso muita ingenuidade para supor que esse acordo possa colocar fim à violência, considerando que a atuação do EI há tempo não se restringe aos territórios sírios e iraquianos.

O mundo assistiu e aguarda, esperançoso, à implementação do acordo de cessar-fogo na Síria, medida de iniciativa dos Estados Unidos e Rússia, aprovada pelo governo sírio. Com o acordo, EUA e Rússia dão uma trégua às divergências para unirem os seus esforços visando uma atuação conjunta contra dois inimigos comuns: o Estado Islâmico (EI) e a frente Al-Nusra, considerados não como meros opositores ao regime de Bashar al-Assad, mas como grupos terroristas radicais.

Esse consenso entre os dois países, apesar de representar uma esperança ao fim das agruras e ao caos humanitário que assola a população síria, deixa largas margens para ser visto com justificável ceticismo. Primeiro, não é possível supor que a Rússia irá endossar qualquer acordo que signifique a deposição ou o fim do governo de Bashar al-Assad, uma vez que este é um histórico e estratégico aliado do regime russo e seria temerária a sua substituição por alguém que possa vir a alinhar-se aos EUA e, consequentemente, à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) ou, melhor dizendo, à Turquia. Segundo, não é crível que objetivos tão distintos possam ser transformados, como em um passe de mágica, em ideais comuns, resultado de recíprocas concessões, depois de seus anos de ódio e destruições entre milícias que lutam pela tomada de poder. O terceiro fator de incertezas é a babélica variedade de grupos que tentam tirar proveito da instabilidade geral do regime sírio, atuando em várias frentes de batalhas – tendo como o mais forte dos inimigos o sanguinário EI – todos eles sem nenhuma vocação democrática nem altruísta, mas ávidos para alcançarem alguma parcela de poder e influência política, identificados apenas pelo ódio recíproco. Os mais evidentes são o EI e o Frente Al-Nusra.

Por outro lado, é preciso muita ingenuidade para supor que esse acordo possa colocar fim à violência, considerando que a atuação do EI há tempo não se restringe apenas aos territórios sírios e iraquianos – de onde se originou. Esse grupo radical extremista já implantou suas células em todo o mundo, estrategicamente. Do ponto de vista do objetivo de eliminar a atuação do EI, parece ser meio utópico acreditar nisso. Não apenas pela sua surpreendente proliferação por todo o mundo, mas, principalmente, pela forma dúbia como parceiros importantes da aliança militar ocidental (OTAN) comportam-se. A Turquia, por exemplo, oficialmente diz combater o EI e, oficiosamente, o apoia por dois motivos: primeiro, considera seus maiores inimigos e verdadeira ameaça não o EI mas os curdos. Segundo, o Turquia vem lucrando alto com o contrabando de petróleo oriundo dos territórios controlados pelo EI, comprando-o a preços módicos. Nesse negócio, o principal (talvez exclusivo) envolvido é Bilal Erdogan, filho do presidente turco Recep Tayyip Erdogan. Bilal, inclusive, é investigado na Itália por lavagem de dinheiro. Há que considerar-se, ainda, que os grupos mais influentes e que não são considerados pelas potências ocidentais como “terroristas”, opõem-se a qualquer acordo que não inclua a deposição de Assad. O primeiro deles a se manifestar contra o acordo de cessar-fogo foi o grupo rebelde islamita Ahrar al-Sham, argumentando que isso só beneficiará o regime do governo de Damasco e que servirá apenas para garantir o aumento do sofrimento do povo sírio.

Esses são os óbices regionais do acordo. Mas não se deve acreditar na “generosidade” das suas potências militares, EUA e Rússia, como sendo a razão ou o pano de fundo da busca pela implementação do acordo de cessar-fogo. A preocupação maior é a crise humanitária causada pelo longo conflito que, inevitavelmente, resvala para a crise imigratória para os países ricos e, a principal delas, a proliferação de células terroristas por todo o mundo, tornando-se uma ameaça constante à segurança da população civil.

Porém, há uma questão relevante, sob o aspecto geopolítico dos EUA, notadamente em um enfoque de sua base econômica, que não deve ser desconsiderado. A saber, a lógica da guerra é o pilar de sustentação da estrutura norte-americana. Eles precisam da guerra como sustentáculos de seu “american way of life”. É preciso um inimigo e, quando não existe um, fabrica-se, constrói-o. O EI, tal qual a Al-Qaeda, são crias suas. A doutrina Bush de “Guerra ao Terror” atende claramente aos interesses da indústria bélica dos EUA. Desde o período da Guerra Fria, com o mundo bipolarizado entre Ocidente (EUA) e Oriente (antiga União Soviética), que os Estados Unidos despontam com extraordinária capacidade de fabricar seus próprios monstros que voltam contra si e amedrontam o mundo inteiro. Primeiro, treinou e armou os Mujahidins, liderados pelo até então desconhecido Osama Bin Laden para que resistissem à intervenção russa no Afeganistão. Criava-se, assim, os germes embrionários daquilo que viria a ser, pouco tempo depois, a temida Al Qaeda. Após a invasão do Iraque e a promoção de diversas ações de desestabilização regional denominada de “Primavera Árabe”, proliferam-se organizações de fanáticos e fundamentalistas religiosos como o Estado Islâmico (EI), Frente Al Nusra, Talibã, Boko Haram, dentre outros. Se antes o inimigo era conhecido e visível, atualmente existem infindáveis ramificações que se proliferam vertiginosamente e com células espalhadas por todo o mundo. Acrescente-se a isso a existência dos temíveis “lobos solitários”, pessoas que, embora sem vínculo direto com organizações terroristas, agem praticando atentados por mera simpatia a ideias ou propagandas de cunho radical ou de ódio. Esses são ainda mais difíceis de serem identificados pelos serviços de inteligência, o que torna a segurança de civis ainda mais ameaçada. A farsa dos dossiês sobre a existência de armas de destruição em massa no regime de Saddam Hussein contou com diversos protagonistas, todos a serviço dos interesses da Casa Branca na era Bush. Dentre tantas mentiras na busca de justificar o “Grande Assalto” contra o Iraque, os EUA contaram com a participação de dois agentes da espionagem iraquiana, o desertor Rafid Ahmed Al-Janabi e o ex-oficial da inteligência Muhammad Mas Harith. Este último alegou que o laboratório de armas químicas de Saddam Hussein funcionava em bases móveis, em caminhões. A ONU (Organizações das Nações Unidas) exerceu papel fundamental nessa farsa o que despertou a ira da resistência iraquiana e ensejou o atentado em seu escritório em Bagdá, em 19 de agosto de 2003, matando, dentre outros, o Alto Comissário para os Direitos Humanos, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello.

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A era Bush, com a sua doutrina de “Guerra ao Terror”, foi caracterizada por uma grande farsa e uma marcante fragilização e desmoralização dos organismos internacionais como a ONU, que comporta-se como escritório de chancela dos interesses da Casa Branca, o Tribunal Penal Internacional, que demostra que serve para julgar apenas ditadores de países-aldeias pobres da África e funcionar como instrumento de ameaça e chantagem por parte das potências ocidentais. Nunca o mundo esteve tão inseguro como nestes tempos de “guerra ao terror” que, paradoxalmente, tem-se demonstrado eficaz apenas na produção de tragédias humanitárias e de facções terroristas integradas por fanáticos religiosos com altíssima capacidade de difusão de suas barbáries e propaganda midiática, com nefastos efeitos sobre jovens no mundo inteiro, principalmente os desesperançados, os sem sonhos, sem utopia. Os EUA, portanto, numa sanha obsessiva de se autoproclamar a “polícia do mundo”, têm tornado o mundo em um lugar cada vez mais inseguro, promovendo o caos humanitário, fome, imigração forçada pelo instinto natural de sobrevivência da população diretamente atingida pelos conflitos, difundindo-se o ódio e o terror. A lógica do capitalismo selvagem, levada a cabo pelos “senhores da guerra”, onde os fins justificam os meios, tem tornado o mundo repleto de pessoas hábeis em desenvolver seus sentimentos xenófobos, de intolerância, rompendo-se com um ensaio de integração comunitária – como a que assistimos, atualmente, na Europa com a chegada da grande leva de imigrantes – como forma de recusa de pagar uma conta alta demais.

O ceticismo em relação ao acordo faz sentido. E as lições da história recente mostram que, pela lógica do capitalismo belicista, como corolário de sua própria conservação, encerrado um ciclo, cessando-se o cerco a um “inimigo”, cria-se outro. Para começar tudo de novo.

Sobre o autor
Manoel L. Bezerra Rocha

Advogado Criminalista, professor de Direito Penal, Processo Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Manoel L. Bezerra. Há um justificável ceticismo quanto ao acordo de cessar-fogo na Síria. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4826, 17 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52083. Acesso em: 22 nov. 2024.

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