3. Espectros jurisprudenciais e doutrinários sobre o contrato
As empresas de factoring, segundo o STJ, normalmente não precisam se registrar no Conselho Regional de Administração, mas, para a sua regularidade formal, é necessário que estejam devidamente registradas na Junta Comercial de seu Estado.
Segundo a Seção do STJ (EREsp 1.236.002) e 2ª Turma REsp 1587600, “a empresa que se dedica à atividade de fomento mercantil (factoring), mas exerce outras atividades, como de administração mercadológica, financeira e de gerenciamento, bem como de técnicas administrativas aplicadas ao ramo financeiro e comercial, está sujeita a registro no Conselho Regional de Administração (CRA)”. O motivo é simples: quando há prestação de serviços ligados à administração de empresas, deve-se filiar ao Conselho profissional correspondente assim como ocorre com outras profissões.
Conforme já decidido em muitos julgados do STJ (REsp 1587600 / SP, REsp 1.048.341-RS e REsp 330.845-RS), “as empresas de fomento não se enquadram no conceito de instituições financeiras, por isso os juros remuneratórios estão limitados em 12% ao ano, nos termos da Lei de Usura” (ex vi MP n. 2.172/2001 e MP 1.820/1999, arts. 1º e 4º). Nota-se que não há operação de risco nessas sociedades, nem para seu funcionamento exige-se autorização do Banco Central. Pelos mesmos motivos, não se equiparam às instituições financeiras para fins de sigilo bancário nos termos da Lei Complementar nº 105/2001.
Registre-se que Fábio Ulhoa Coelho (2016: 297) faz uma interessante distinção quanto a natureza jurídica bancária do contrato de fomento:
“A natureza bancária do conventional factoring é indiscutível, à vista da antecipação pela faturizadora do crédito concedido pelo faturizado a terceiros, o que representa inequívoca operação de intermediação creditícia abrangida pelo art. 17 da LRB. Já em relação ao maturity factoring, em razão da inexistência do financiamento, há dúvidas quanto ao seu caráter bancário. Conforme ensina Newton De Lucca, no entanto, se a faturizadora assumir os riscos do inadimplemento das faturas objeto do contrato, a faturização se revestirá, também neste caso, de nítida natureza bancária. No plano regulamentar, contudo, não se considera o factoring espécie de contrato bancário, em qualquer de suas modalidades. O Banco Central já considerou, no passado, a faturização um contrato bancário. Atualmente, porém, nenhuma norma veda a exploração da atividade de faturização de créditos a não exercentes de atividade bancária.”
Segundo o Superior Tribunal de Justiça, não são aplicáveis as regras consumeristas às empresas contratantes de fomento mercantil, não satisfazendo os requisitos para aplicação da teoria finalista temperada. “A atividade de factoring não se submete às regras do CDC quando não for evidente a situação de vulnerabilidade da pessoa jurídica contratante. Isso porque as empresas de factoring não são instituições financeiras nos termos do art. 17 da Lei n. 4.595/1964, pois os recursos envolvidos não foram captados de terceiros. Assim, ausente o trinômio inerente às atividades das instituições financeiras: coleta, intermediação e aplicação de recursos. Além disso, a empresa contratante não está em situação de vulnerabilidade, o que afasta a possibilidade de considerá-la consumidora por equiparação (art. 29 do CDC). Por fim, conforme a jurisprudência do STJ, a obtenção de capital de giro não está submetida às regras do CDC.” (...) REsp 938.979-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 19/6/2012.
Uma complexa discussão desenvolveu-se sobre a possibilidade de exercício do direito de regresso do faturizador em face do faturizado.
Muitos doutrinadores como André Santa Cruz, Arnaldo Rizzardo, Fran Martins defendiam a impossibilidade do exercício do direito de regresso ao faturizador, porque seria contrário à essência deste contrato, assimilando-se ao contrato de desconto bancário.
A jurisprudência também caminhou no mesmo sentido da doutrina majoritária, conforme pode-se perceber no julgado do REsp 1.439.749-RS pelo Superior Tribunal de Justiça:
“ (...) O sacado pode opor à faturizadora a qual pretende lhe cobrar duplicata recebida em operação de factoring exceções pessoais que seriam passíveis de contraposição ao sacador, ainda que o sacado tenha eventualmente aceitado o título de crédito. Na operação de factoring, em que há envolvimento mais profundo entre faturizada e faturizadora, não se opera um simples endosso, mas a negociação de um crédito cuja origem é - ou pelo menos deveria ser - objeto de análise pela faturizadora. Nesse contexto, a faturizadora não pode ser equiparada a um terceiro de boa-fé a quem o título pudesse ser transferido por endosso. De fato, na operação de factoring, há verdadeira cessão de crédito, e não mero endosso, ficando autorizada a discussão da causa debendi, na linha do que determina o art. 294 do CC, segundo o qual: "O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente". Provada a ausência de causa para a emissão das duplicatas, não há como a faturizadora exigir do sacado o pagamento respectivo. Cabe ressaltar, por oportuno, que a presunção favorável à existência de causa que resulta do aceite lançado nas duplicatas não se mostra absoluta e deve ceder quando apresentada exceção pessoal perante o credor originário ou seu faturizador. (...)”
Contudo, deve-se advertir que esse contrato pertence à disciplina empresarial, que possui autonomia científica e princípios próprios, que deveriam ser observados na interpretação dele. Dever-se-ia permitir que a autonomia da vontade prevalecesse, quando houvesse previsão de cláusula expressa de regresso ao faturizador. Assim, o endosso não deveria ser desconsiderado, ocasionando apenas uma mera cessão de crédito civil.
Levando em consideração as balizas da disciplina mercantil, o próprio doutrinador André Santa Cruz revisou seu posicionamento de proibição de regresso questionando essas limitações ao contrato mercantil. Conforme André Santa Cruz em ensaio:
“Por que o factoring teria o condão de impedir o endosso de produzir seus efeitos naturais? Onde está a regra legal que afasta a produção de efeitos do endosso no contrato de factoring? A resposta é simples: em lugar nenhum. Tal regra não existe!”
Cabe registrar, ainda, que, caso a transferência dos títulos não se materialize por endosso, também não há impedimento à estipulação da cláusula de regresso no contrato de factoring, uma vez que o próprio CC/2002 permite a cessão civil de crédito pro solvendo em seu art. 296: “salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor”.
Conforme uma máxima enraizada no nosso sistema common law, o julgador não deve distinguir aonde a lei não discrimina. Portanto não se deve fazer restrições cambiais ao contrato de factoring, sob pena de afrontar a liberdade de iniciativa, princípio republicano fundamental, e de inviabilizar uma forma excelente de financiamento de microempresas e de pequeno porte.
Perfilhando esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Resp nº 1236701, cultivou a disciplina cambial própria dos contratos, desconsiderando a ideia original de cessão civil de crédito defendida para contratos de fomento. Segue a ementa do referido julgado, que é da lavra do Ministro Luiz Salomão:
“FACTORING E DIREITO CAMBIÁRIO. RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. CHEQUE À ORDEM. ENDOSSO. EFEITO DE CESSÃO DE CRÉDITO. DESNECESSIDADE DE NOTIFICAÇÃO EXIGIDA, PELO CÓDIGO CIVIL, PARA CESSÃO ORDINÁRIA DE CRÉDITO. RESPONSABILIZAÇÃO DO ESCRITÓRIO DE FACTORING PELO APONTAMENTO DO NOME DA ORA RECORRIDA A ÓRGÃO DO SISTEMA DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO, EM VISTA DA PRÉVIA DEVOLUÇÃO DO CHEQUE, PELO BANCO SACADO, POR INSUFICIÊNCIA DE FUNDOS. INVIABILIDADE. O ENDOSSO É PLENAMENTE APLICÁVEL À AVENÇA MERCANTIL DO FACTORING, NÃO CABENDO RESTRIÇÃO A DIREITOS ASSEGURADOS PELO DIREITO CAMBIÁRIO, SOB PENA DE INCIDÊNCIA EM DOMÍNIO CONSTITUCIONALMENTE RESERVADO AO ÂMBITO DE ATUAÇÃO MATERIAL DA LEI EM SENTIDO FORMAL. ALEGAÇÃO DA AUTORA DE TER EFETUADO O PAGAMENTO AO ENDOSSANTE, POR MEIO DE AÇÃO CONSIGNATÓRIA. O PAGAMENTO FEITO PELO DEVEDOR DE TÍTULO "À ORDEM", SEM QUE A CÁRTULA LHE TIVESSE SIDO DEVOLVIDA, EVIDENTEMENTE, NÃO PODE SER OPOSTO AO ENDOSSATÁRIO PORTADOR DE BOA-FÉ.
1. Como é cediço, o interesse social visa proporcionar ampla circulação dos títulos de crédito, dando aos terceiros de boa-fé plena garantia e segurança na sua aquisição, constituindo a inoponibilidade das exceções fundadas em direito pessoal do devedor a mais importante afirmação do direito moderno em favor da segurança da circulação e negociabilidade dos títulos de crédito. (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 27 ed. Saraiva: São Paulo, v. 2, 2010, p. 415-423)
2. Dessarte, o cheque endossado - meio cambiário próprio para transferência dos direitos do título de crédito, que se desvincula da sua causa, conferindo ao endossatário as sensíveis vantagens advindas dos princípios inerentes aos títulos de crédito, notadamente o da autonomia das obrigações cambiais - confere, em benefício do endossatário, ainda em caso de endosso póstumo (art. 27 da Lei do Cheque), os efeitos de cessão de crédito. De fato, a menos que o emitente do cheque tenha aposto a cláusula "não à ordem" – hipótese em que o título somente se transfere pela forma de cessão de crédito -, o endosso, no interesse do endossatário, tem efeito de cessão de crédito, não havendo cogitar de observância da forma necessária à cessão civil ordinária de crédito, disciplinada nos artigos 288 e 290 do Código Civil.
3. Assim, o art. 20, caput, da Lei do Cheque - no que em nada discrepa da Lei Uniforme de Genebra - esclarece que o endosso transmite todos os direitos resultantes do cheque. Com efeito, a teor da legislação, fica límpido que "[o] cheque é um título que tem vocação de circular pela simples tradição manual". (MARTINS, Fran. Títulos de crédito. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 313 e 314)
4. Como o endosso é plenamente compatível/aplicável ao fomento mercantil, é bem de ver que o princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, inclusive na sua função jurisdicional, que não se reveste de idoneidade jurídica que lhe permita criar ou restringir direitos conferidos por lei, "sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal". (ACO 1048 QO, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2007, DJe-134 DIVULG 30-10-2007 PUBLIC 31-10-2007 DJ 31-10-2007 PP-00077 EMENTA VOL-02296-01 PP-00001) (....)
7. Por um lado, o art. 905, caput, do Código Civil estabelece que "[o] possuidor de título ao portador tem direito à prestação nele indicada, mediante a sua simples apresentação ao devedor", e o parágrafo único estipula que a prestação é devida ainda que o título tenha entrado em circulação contra a vontade do emitente. Por outro lado, não se pode perder de vista que a exigência, sem nenhum supedâneo legal, de que, mesmo com endosso de cheque "à ordem", a factoring endossatária terceira de boa-fé devesse se acautelar – demonstrando ter feito notificação à emitente e/ou procedido à pesquisa acerca de eventual ação judicial a envolver emitente e endossante -, mesmo adquirindo pelo meio próprio crédito de natureza autônoma (cambial), implica restrição a direitos conferidos por lei à recorrente, em manifesta ofensa a diversas regras, institutos e princípios do direito cambiário - e, até mesmo, a direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal (vide o art. 5º, II e XXII).
8. Ademais, a alegação da autora, ora recorrida, de ter feito a consignação em pagamento do crédito ao endossante da cártula (credor originário), não é relevante para afastar o direito do endossatário do título, pois a quitação regular de débito estampado em título de crédito é a que ocorre com o resgate da cártula - tem o devedor, pois, o poder-dever de exigir daquele que se apresenta como credor cambial a entrega do título de crédito (o art. 324 do Código Civil, inclusive, dispõe que a entrega do título ao devedor firma a presunção de pagamento).
9. A "negativação" do nome da autora, ora recorrida, em órgão do sistema de proteção ao crédito constituiu exercício regular de direito da Factoring. Com efeito, o art. 188, I, do Código Civil proclama não constituir ato ilícito os praticados no exercício regular de um direito reconhecido. 10. Recurso especial provido.”
Em julgado do STJ (Resp nº 1.337.224-RS) deste ano, o Ministro Luís Felipe Salomão reafirmou mais uma vez a aplicação da disciplina empresarial ao contrato de factoring, ao analisar a contenda referente a uma ação declaratória de inexigibilidade de duplicata em face da sacadora do título e da empresa de fomento mercantil, em razão de devolução das mercadorias objeto da duplicata.
Para o Ministro, “a empresa de factoring não pode ter seu direito de crédito afetado pelo posterior acordo celebrado entre o sacador e o sacado do título, depois da transferência do crédito e depois de feita regular comunicação do endosso ao devedor. As regras de direito cambiário, dentre elas a do endosso e da inoponibilidade das exceções pessoais ao endossatário, são perfeitamente aplicáveis às operações de fomento mercantil, não havendo fundamento jurídico para se dar tratamento diferenciado ou restringir direitos da endossatária dessa espécie de negócio, porque representaria verdadeira ofensa à Lei.”
Outrossim, em julgados mais antigos do STJ, o Tribunal também conservou os delineamentos cambiais do título de crédito utilizado como garantia em contrato de fomento mercantil:
“DIREITO EMPRESARIAL. EXECUÇÃO DE AVALISTA DE NOTA PROMISSÓRIA DADA EM GARANTIA DE CRÉDITO CEDIDO POR FACTORING. Para executar, em virtude da obrigação avalizada, o avalista de notas promissórias dadas pelo faturizado em garantia da existência do crédito cedido por contrato de factoring, o faturizador exequente não precisa demonstrar a inexistência do crédito cedido. Com efeito, ainda que as notas promissórias tenham sido emitidas para garantir a exigibilidade do crédito cedido, o avalista não integra a relação comercial que ensejou esse crédito, nem é parte no contrato de fomento mercantil. Na condição de avalista, questões atinentes à relação entre o devedor principal das notas promissórias e a sociedade de fomento mercantil lhe são estranhas. Isso decorre da natureza pessoal dessas questões e da autonomia característica do aval. Assim, na ação cambial somente é admissível defesa fundada em direito pessoal decorrente das relações diretas entre devedor e credor cambiários, em defeito de forma do título ou na falta de requisito necessário ao exercício da ação. REsp 1.305.637-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 24/9/2013.”
Noutra senda, o Superior Tribunal de Justiça rechaçou a possibilidade de equiparação da faturizadora a um terceiro de boa-fé, pois aplicou-se a disciplina do art. 294 do CC referente à cessão civil de crédito, mas, nesse caso, atentou-se para a característica marcante da empresa, conforme se vislumbra adiante:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE DUPLICATAS ACEITAS. DESCUMPRIMENTO DO NEGÓCIO JURÍDICO SUBJACENTE COMPROVADO. POSSIBILIDADE DE DISCUSSÃO COM A EMPRESA DE FACTORING. 1. No contrato de factoring, em que há profundo envolvimento entre faturizada e faturizadora e amplo conhecimento sobre a situação jurídica dos créditos objeto de negociação, a transferência desses créditos não se opera por simples endosso, mas por cessão de crédito, hipótese que se subordina à disciplina do art. 294 do Código Civil. 2. A faturizadora, a quem as duplicatas aceitas foram endossadas por força do contrato de cessão de crédito, não ocupa a posição de terceiro de boa-fé imune às exceções pessoais dos devedores das cártulas. 3. Recurso especial conhecido e desprovido. (REsp 1439749-RS. 3ª Turma. Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA Julgamento: 02/06/2015)
Nota-se que o posicionamento, apesar do apego à concepção da cessão civil de crédito, ressalta uma característica salutar do contrato, o profissionalismo, o que afasta, por si só, a ideia de surpresa, de boa-fé.
Ainda quanto ao julgamento do REsp 1236701, em que se firmou a ideia da desnecessidade de notificação do endosso do cheque, pode-se ressaltar que, em razão da natureza quesível (quérable) das obrigações cambiais, conforme se depreende da leitura do art. 38 da LUG, é dispensável a notificação do devedor original para tomar ciência dessa cessão, bastando que seu legítimo titular/beneficiário se apresente para cobrar o crédito consubstanciado no título.
Finalmente, cabe ressaltar que, no projeto de lei 3615/2000 atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados, há previsão da possibilidade de direito de regresso do faturizador contra o faturizado, caso haja disposição expressa neste sentido no contrato firmado entre as partes.