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Teoria subjetiva da posse

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Agenda 23/05/2004 às 00:00

Nada que foi escrito sobre a posse antes de Savigny se compara ao seu Tratado da Posse, pela sistemática, pela clareza e pelo engenho. As idéias de Savigny sobre a posse dominaram a doutrina por mais de meio século.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Posse. Noções Preliminares; 3. Teoria Subjetiva da Posse, 3.1. O Corpus na Teoria de Savigny, 3.2. O Animus na Teoria de Savigny, 3.3. Aplicações Práticas; 4. Críticas à Teoria Subjetiva da Posse; 5. A Orientação Seguida pelo Ordenamento Brasileiro sobre Posse; 6. O Posicionamento da Legislação Estrangeira sobre o Conceito de Posse, 6.1. França, 6.2. Itália, 6.3. Portugal, 6.4. Espanha, 6.5. Argentina, 6.6. Alemanha, 6.7. Suíça, 7. Conclusão; 8. Bibliografia


1. INTRODUÇÃO.

Em 1803, aos vinte e quatro anos de idade, Friedrich Carl Von Savigny (1779-1861) publicou o Tratado da Posse (Das Recht des Besitzes / Traité de la Possession en Droit Romain), aonde se dedicou a analisar o instituto da posse, numa tentativa de reconstrução do direito romano.

Em tal obra, "que, por si só, bastaria para imortalizá-lo", segundo Moreira Alves, Savigny desenvolveu sua teoria sobre o conceito e os elementos essenciais da posse, posteriormente batizada como teoria subjetiva da posse, que obteve grande repercussão, influenciando a maioria das legislações do século XIX.

As idéias de Savigny não eram, de todo, desconhecidas da doutrina jurídica. Entretanto, nada que foi escrito sobre a posse antes de Savigny se compara ao seu Tratado da Posse, pela sistemática, pela clareza e pelo engenho. Por essas razões, as idéias de Savigny sobre a posse dominaram a doutrina por mais de meio século.

O próprio Jhering, principal opositor das idéias de Savigny, assinala a obra "Tratado da Posse" como uma das principais obras da literatura a respeito da posse. Ressalta, ainda, que esse livro "abriu novos horizontes, influindo não somente na teoria da posse, como também no desenvolvimento de toda a ciência romanista", e que, "sob o ponto de vista da história do assunto, terá sempre o mérito de haver excitado e favorecido poderosamente a investigação científica no terreno da teoria possessória".

Entretanto, apesar de toda a sua reconhecida importância histórica, a obra de Savigny desencadeou conflitos sem precedentes, e sofreu inúmeras críticas em todos os seus pontos fundamentais, críticas essas que culminaram, com o passar do tempo, na superação da teoria subjetiva e na adoção da teoria objetiva de Jhering nas legislações atuais.

Mas como bem observa Orlando Gomes, mesmo aqueles contrários à teoria subjetiva são "surpreendidos com a persistente penetração de seus conceitos, numa interferência indesejada, mas irresistível. Concessões ao seu sistema se encontram em todos os Códigos que preferiram a doutrina oposta".

São essas concessões subjetivistas assumidas pelas legislações modernas, bem como o valor histórico da teoria de Savigny, que mantêm o interesse na análise da referida teoria sobre a posse, objeto do presente estudo.


2. POSSE. NOÇÕES PRELIMINARES.

Como bem observa Tito Fulgêncio, a palavra "posse" tem sido usada abrangendo variadas significações impróprias, o que deve ser evitado a fim de garantir a precisão técnica da terminologia. Comumente, o conceito de posse tem sido exprimido com as seguintes significações:

a) "Posse" como sinônimo de propriedade. Tal equívoco remonta ao próprio direito romano e até hoje figura na linguagem do povo e mesmo de juristas. É certo que a posse exprime, em regra, o conteúdo da propriedade, mas é errônea, tecnicamente, a confusão dos dois institutos;

b) "Posse" como sinônimo de tradição, significando condição de aquisição do domínio, o que também consiste numa imprecisão técnica, tendo em vista que a posse tem um conteúdo mais amplo do que a simples forma de aquisição da coisa;

c) "Posse" significando o exercício de um direito qualquer, independente de recair diretamente sobre coisas, o que tem sido alvo de grande polêmica sobre a possibilidade de posse de direitos pessoais. O nosso código civil, inclusive, utiliza a expressão "posse do estado de casados", nos arts. 1.545 e 1.547;

d) "Posse" denotando o compromisso do funcionário no qual se compromete a exercer sua função com honra.

Maria Helena Diniz, acrescenta que o termo "posse", além das utilizações aludidas acima, tem sido ainda equivocadamente empregado nas seguintes situações:

e) "Posse" como sinônimo de domínio político, haja vista que no direito internacional público é normal a utilização da expressão "possessão de um país";

f) "Posse" na acepção de poder sobre uma pessoa. Essa confusão tem seu âmbito no direito de família, quando da referência ao poder que os pais têm sobre os filhos.

Ultrapassadas essas considerações preliminares sobre a significação vulgar do termo posse, é mister ressaltar que vários doutrinadores se esforçaram na tentativa de precisar o significado técnico desse instituto, que, na opinião de Sílvio de Salvo Venosa, é, fora de dúvida, "o instituto mais controvertido de todo o direito, não apenas do direito civil".

Os romanos, que já conheciam bem a posse e já disciplinavam a defesa da situação possessória, como historia Silvio Rodrigues, concentraram-se aprioristicamente nos aspectos práticos da posse, sem conceituá-la, perquirir sua natureza jurídica ou sistematizar as regras sobre a matéria. Essa tarefa de explicar o instituto coube aos doutrinadores modernos.

A tarefa de conceituar a posse, todavia, é bastante árdua, pois, assim como tudo que se refere à posse (origem, elementos essenciais, natureza jurídica e etc), suscita grande divergência doutrinária. Dentre as várias teorias que se dispõem a definir a posse, um ponto é fundamental, como bem assevera Serpa Lopes e é entendimento unânime na doutrina: toda a discussão gira em torno da configuração jurídica de dois elementos da posse - corpus e animus.

Por outro lado, o esforço da doutrina em obter essa conceituação teve o "objetivo de fornecer um critério para se distinguir o possuidor do detentor", na opinião de Orlando Gomes, o que tem grande efeito prático a partir do momento em que à posse são atribuídos efeitos jurídicos, especialmente no que se refere a sua proteção, que à detenção são negados.

Sem sombra de dúvida, imprescindíveis na análise desse prélio são as teorias dos notáveis Savigny e Jhering, respectivamente denominadas teoria subjetiva e teoria objetiva da posse, que obtiveram "repercussão legislativa evidente", como salienta Caio Mário da Silva Pereira.

Savigny e Jhering concordavam que a posse era composta por um elemento material e um elemento moral ou intelectual (corpus e animus). O ponto de discordância dos referidos autores, no que se refere à conceituação da posse, é exatamente a caracterização desses elementos.

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Savigny também manifestou seu pensamento em relação a vários outros aspectos da posse, além do conceito e elementos essenciais, como natureza jurídica, efeitos e fundamento da proteção possessória, o que gerou várias outras teorias referentes à posse. Nesta oportunidade, entretanto, cabe-nos enfocar mormente a teoria subjetiva da posse, examinando-a mais detalhadamente, como se procederá a seguir.


3. TEORIA SUBJETIVA DA POSSE.

Savigny atribuiu as dificuldades surgidas a respeito da posse à deficiente compreensão do direito romano nesse ponto. Como ensina Serpa Lopes, a teoria subjetiva surgiu num contexto em que a teoria medieval era preponderante, afirmando que a idéia de posse refletia a de um contato pessoal, desprezando o aspecto interno da posse que se reflete na relação direta e imediata com a coisa.

Investindo contra essa teoria, Savigny apresenta como paradigma a situação de alguém ter em mãos uma moeda de prata, caso que indubitavelmente configura a posse. A partir do seu posicionamento, a idéia de tangibilidade física tornou-se fundamental para a aquisição da posse.

Como historia António Menezes Cordeiro, "Savigny teve de enfrentar, no seu estudo sobre a posse, o problema da grande prolixidade: ele refere, só sobre a posse e temas possessórios, 78 obras". Como conseqüência dessa realidade, havia o problema da imprecisão terminológica e confusão quanto a regras, restando-lhe a tarefa de simplificar os estudos sobre esse instituto.

O ilustre autor alemão partiu da observação de que, no direito romano, apenas dois efeitos legais se atribuem à posse de forma independente da propriedade, que são o usucapião e os interditos possessórios (teoria da pluralidade dos efeitos da posse). A posse seria uma condição de existência desses efeitos.

Nas palavras do próprio Savigny, "Nous ne trouvons dans tout le droit romain que deux effets légaux que l’on puisse attribuer à la possession comme telle et indépendamment de toute sdée de propriété: ce sont l’usucapion et les interdits".

Após analisar, no Tratado da Posse, os efeitos da posse, Savigny analisa a natureza desse instituto, concluindo: "Ainsi, elle est à la fois un fait et un droit: par elle-même c’est un fait, par ses conséquences elle ressemble à un droit, et cette double nature est infiniment importante pour tout ce qui concerne cette matière".

Assim, na visão de Savigny, a posse seria ao mesmo tempo um fato e um direito. Considerada em si mesma, a posse seria um fato e, considerada nos seus efeitos (interditos possessórios e usucapião), a posse manifestaria a feição de um direito..

A partir dessas constatações, Savigny, no Tratado da Posse, dedicou-se a definir a posse, conceituando-a como a faculdade real e imediata de dispor fisicamente da coisa com a intenção de dono, e de defendê-la contra as agressões de terceiros. O fundamento da proteção possessória seria o princípio geral de que toda pessoa deve ter a proteção do Estado contra qualquer ato de violência (teoria da interdição da violência).

Nessa definição de posse dada por Savigny, como resta claro, encontram-se presentes os dois elementos essenciais da posse civil, corpus e animus. Esses elementos devem estar sempre conjugados para que exista posse, pois fazem parte da sua própria estrutura, não se adquirindo a posse somente pela apreensão física ou somente com a intenção de dono – "Adipiscimur possessionem corpore et animus; nec per se corpore, nec per se animo".

Nas palavras do próprio Savigny, "Toute acquisition de possession repose sur un acte physique, corpus ou fait, accompagné d’une volonté déterminée, aninus". (grifo nosso)

Pode-se perceber, portanto, que para uma perfeita compreensão do pensamento de Savigny quanto ao conceito de posse, que é o objetivo desse estudo, faz-se imperativa uma análise detalhada dos elementos estruturais corpus e animus, tarefa que agora tencionamos cumprir.

3.1. O corpus na teoria saviniana.

O corpus de Savigny é o fato material pelo qual a coisa está submetida à vontade humana, criando para o titular da coisa a possibilidade de dispor fisicamente desta, excluindo a intromissão de todas as outras pessoas.

Vale ressaltar que o corpus não é a coisa em si, mas o poder físico do possuidor sobre a coisa, a "possibilidade de ter contato direto e físico com a coisa". Nas palavras de Caio Mário, "é o fato exterior, em oposição ao fato interior", ou, segundo Jhering, "a supremacia de fato sobre a coisa".

Segundo Washington de Barros, a noção de corpus sofreu uma mutação dentro da própria teoria subjetiva. Num primeiro momento, o corpus era tido como o próprio contato físico, direto e permanente do possuidor com a coisa; num segundo momento, como a simples possibilidade de exercer esse contato, tendo sempre a coisa a sua disposição.

E, aceitando o corpus nessa acepção mais evoluída como possibilidade de exercer o contato com a coisa ou influência sobre a coisa, Savigny distinguia, ainda, graus de possibilidade (ou de corpus) conforme se tratasse de adquirir ou conservar a coisa, como assevera Antonio Hernández Gil.

Conforme esse autor espanhol, "Para adquirir es indiscutiblemente preciso que la influencia sea inmediatamente posible; para conservar, ya no. Es suficiente para conservar que la relación de poder, la influencia sobre la cosa, pueda producirse a nuestra voluntad, y de esa manera la posesión cesa cuando desaparece tal posibilidad".

Lafayette, ao dissecar a teoria de Savigny, afirma que, na visão desse autor, "basta a simples presença do adquirente para que se perfaça a aquisição da posse. Mas, se no local achar-se outra pessoa, que se atribua a posse da mesma coisa, ela somente se adquire com o seu consentimento, ou com o seu afastamento pela violência".

Como conseqüência, para que a apreensão física da coisa se concretize, faz-se necessário o preenchimento dos seguintes requisitos:

1º) Disponibilidade da coisa;

2º) Possibilidade direta e imediata de submetê-la ao seu poder físico;

3º) Excluir toda a intervenção estranha.

Da configuração desses requisitos resulta para o possuidor a possibilidade de fazer da coisa o que quiser e ainda afastá-la da ação de outras pessoas. Conclui-se, ainda, que a teoria subjetiva não permite o desdobramento da posse em posse direta e indireta, tendo em vista que, com o desdobramento, estar-se-ia considerando possuidor alguém que não teria a possibilidade de estabelecer o contato direto com a coisa quando bem lhe entendesse. A noção de posse como poder de fato sobre a coisa é incompatível com a bipartição da posse em graus, pois se não há o poder de fato não haveria posse.

3.2. O ANIMUS NA TEORIA SAVINIANA.

A visão subjetiva da posse, implicando a vontade do possuidor, não foi uma inovação de Savigny. Essa visão já havia sido consagrada na obra de Pothier (Traité de la Possession – 1772), ao afirmar que a posse adquirir-se-ia corpore et animo, baseando-se na doutrina desenvolvida pelos jurisprudentes Cujas e Donneau, aos quais se deve o animus domini posteriormente resgatado por Savigny.

Ao tratar do elemento psíquico da posse, Savigny, no Tratado da Posse, declara:

"Ainsi,, pour être considéré comme véritable possesseur d’une chose, il faut nécessairement que celui qui la détient se gère à son égard en propriétaire; em d’autres termes, qu’il prétende en disposer en fait comme un propriétaire aurait la faculté légale de le faire en vertu de son droit, ce qui implique en particulier aussi le refus de reconnaître daus le chef d’autrui un droit quelconque supérieur au sien. L’idée de la possession n’exige absolument rien de plus que cet animus domini; elle ne suppose nullement la conviction que l’on soit réellement propriétaire (opinio seu cogitatio domini); voilá porquoi le voleur et le brigand peuvent tout aussi bien avoir la possessin de la chose volée que le propriétaire lui-même, et ils diffèrent de la même manière que celui-ci du fermier qui, lui, ne possède pas, puisqu’il ne considère pas la chose comme sienne".

O animus, na posse, segundo Savigny, deve ser a intenção de ter a coisa como proprietário (animus domini) ou de ter a coisa para si (animus rem sibi habendi). Não se trata de convicção de ser dono, mas de vontade de ter a coisa como sua, conforme ressalta Caio Mário. Esse animus domini é uma evolução da Ψυχη δεσπόζοντος das fontes gregas.

Não se deve confundir, como lembra Orlando Gomes, animus domini e opinio domini, pois para esta é preciso que o possuidor seja de fato o proprietário. No animus domini, na vontade, Savigny enxerga o elemento preponderante da posse. Por essa razão a sua teoria foi batizada de teoria subjetiva.

Na falta desse elemento interior ou psíquico, animus domini, não existe posse, mas simples detenção. Isso não quer dizer que não haja um elemento psíquico na detenção, pois existe. Trata-se do animus detinendi, pois há uma vontade também ao se possuir nomine alieno e não nomine proprio.

De acordo com o animus, Savigny estabelece a seguinte classificação das pessoas:

a) O proprietário, o que se crê proprietário, o ladrão e o que se apoderou violentamente de um imóvel;

b) Aquele que detém a coisa em virtude de um direito real;

c) Aquele que detém a coisa por força de um vínculo obrigacional;

d) O que detém a coisa em nome do proprietário.

Todas as pessoas incluídas na primeira categoria ("a") seriam possuidoras, pois incontestável o animus domini. No caso do proprietário há mais que animus domini, há opinio domini, pois o possuidor tem, de fato, a propriedade.

Em contrapartida, fora de dúvida seria a exclusão da posse em relação às pessoas da quarta categoria ("d"), pois ao deter a coisa em nome de outrem (nomine alieno), fica automaticamente afastado o animus domini. É o que ocorre, por exemplo, no mandato. Neste caso, a posse não teria nenhuma justificação, pois o mandatário não tem nenhum interesse pessoal a fazer valer, possui no interesse de outrem.

Na visão saviniana, se alguém detém a coisa sabendo que esta pertence à outra pessoa, não há animus domini e, conseqüentemente, não existe posse. É o que ocorre também com as pessoas da segunda ("b") e terceira ("c") categorias, além da quarta categoria("d").

A esse princípio, consagrado na teoria subjetiva, de que "o conhecimento de que a coisa pertence a outrem descaracteriza a possibilidade de posse por outro que não o proprietário", ocorre uma exceção no caso dos ladrões e dos que se apoderam violentamente de um imóvel, incluídos na primeira categoria ("a"). A razão disso é que estes sujeitos, embora sabendo pertencer a coisa a outrem, insurgem-se contra essa propriedade, manifestando claramente a intenção de ser dono, animus domini.

Não havendo animus domini e, conseqüentemente, inexistindo posse, as pessoas descritas na segunda ("b"), terceira ("c") e quarta ("d") categorias seriam meros detentores. Na detenção haveria apenas a posse natural, em contraposição à posse civil, que seria protegida juridicamente.

Entretanto, apesar da ausência de animus domini e da impossibilidade de configuração de posse, Savigny defende a utilização dos interditos possessórios por algumas pessoas incluídas na segunda categoria ("b"), mesmo sem possuírem a qualidade de possuidores, o que confere a essa situação o status do que ele chamou de "quase-posse".

Orlando Gomes explica com muita clareza o que Savigny chamou de quase-posse, ou posse derivada (possessio derivata), que ocorre com sujeitos pertencentes à segunda categoria ("b"), e o por que da proteção especial a alguns casos que não seriam exatamente posse na visão de Savigny.

Já havia no direito romano uma proteção possessória a certos direitos sem a configuração do animus domini. Estavam nessa situação o credor pignoratício, o precarista e o depositário da coisa litigiosa (categoria "b"). Era preciso outorgar a essas situações a proteção possessória para que os titulares pudessem conservar a coisa que lhes foi confiada, embora não pudessem ter a vontade de se comportar como dono da coisa.

Apenas nesses casos de posse derivada, Savigny admitia que o possuidor originário pudesse transferir para outros a sua posse, não apenas a detenção material, mas também o jus possessionis, que ensejam o direito aos interditos possessórios.

Fora às exceções dos casos de posse derivada, como explicado retro, para Savigny, ainda que haja um fundamento jurídico para deter a coisa, as relações jurídicas em que as pessoas conservam a coisa em seu poder sem a intenção de tê-la como dono não constituem relações possessórias (como na locação, comodato, etc.), tornando descabida, nesses casos, a proteção possessória. Esse pensamento traz graves repercussões práticas.

Aquelas pessoas que Savigny considera meras detentoras não gozariam, segundo sua teoria, de uma proteção direta da lei, e, ocorrendo turbação ou esbulho da sua "posse natural", devem dirigir-se à pessoa que lhes conferiu a detenção para que esta pessoa, como possuidora, invoque a proteção possessória.

Pode-se imaginar o inconveniente que essa posição geraria em casos como, p. ex., o do locatário e os demais sujeitos incluídos na terceira categoria ("c"), pois essas pessoas agem em vista do seu próprio interesse, possuem em interesse próprio, diferentemente do que ocorre na quarta categoria ("d"). Por outro lado, o ladrão, por considerar a coisa como sua, não encontraria esses obstáculos para defender sua posse, o que é, no mínimo, uma incoerência do ponto de vista social.

Como ressalta Sílvio Venosa, na teoria subjetiva é o animus que distingue o possuidor do simples detentor. Apenas com a análise do corpus não seria possível a distinção, pois ambos exteriorizam o mesmo comportamento em relação à coisa aos olhos da comunidade. O que os diferenciaria seria a intenção, o elemento psicológico. Os detentores não possuem animus domini, mas animo nomine alieno.

3.3. APLICAÇÕES PRÁTICAS.

Serpa Lopes, analisando a obra de Savigny, enumera algumas aplicações práticas da teoria subjetiva, sintetizando-a.

A) Aquisição.

Em regra, a aquisição da posse ocorre pela conjunção de um fato ou ato físico de apreensão (corpus) e uma vontade determinada (animus domini). A conseqüência da aquisição é a possibilidade da exclusão da intervenção de qualquer outra pessoa sobre a coisa.

B) Apreensão de imóveis.

A posse de um imóvel é obtida pela presença pessoal do possuidor. A proximidade imediata seria a razão de poder o possuidor fazer com o imóvel o que melhor entender. Diferentemente do que ocorre na aquisição da propriedade, na aquisição da posse de imóveis não é necessário qualquer tipo de registro como requisito necessário para a aquisição.

C) Apreensão dos móveis.

A aquisição da posse das coisas móveis consuma-se pela apreensão material ou pela presença imediata que coloca a pessoa em condições de tomar a coisa.

D) Teoria da custódia.

Savigny teria criado a teoria da custódia, visando adaptar à teoria subjetiva alguns casos práticos aos quais ela não se ajustaria naturalmente ou entraria em conflito. Um exemplo desses casos práticos seria a situação em que alguém compra um objeto e o vendedor assume a obrigação de entregar o objeto no domicílio do comprador.

A idéia de custódia ou depósito pressupõe os seguintes requisitos:

1º) desnecessidade de a coisa comprada permanecer na presença do comprador após a aquisição;

2º) desnecessidade de o comprador estar presente em seu domicílio no momento da entrega;

3º) o simples depósito da coisa comprada no domicílio do comprador constitui atribuição da posse.

A teoria da custódia abre uma exceção para que aquele que seria simples detentor, na visão de Savigny, seja alçado à condição de possuidor, no intuito de proteger a posse do proprietário mesmo quando ainda não houve a apreensão física de fato.

E) Conservação.

Se o corpus e o animus são elementos essenciais da posse, esta persiste pela continuidade de suas condições ou elementos essenciais, enquanto existirem suas condições. A posse, segundo Savigny, mantém-se quando subsiste a possibilidade de reproduzir, quando se quer, o estado originário, o estado em que foi adquirida.

F) Perda da posse.

As idéias de conservação e perda da posse são correlativas, deixando de existir o corpus ou o animus, deixa de existir a posse, há a perda da posse, sendo impossível a reprodução do estado originário.

Outra questão de ordem prática, que desemboca na prova do animus e suscita grande polêmica, como ressalta José de Oliveira Ascensão, é se esse animus deve ser alguma coisa psicologicamente existente ou se deve resultar de certos indícios, de certos elementos objetivos.

Em relação a essa questão existem duas correntes, a teoria da vontade concreta e a teoria da vontade abstrata ou da causa. De acordo com o referido autor português, aquela procura de várias formas descobrir qual a vontade concreta do agente; esta atribui a cada sujeito o animus correspondente à causa porque detém, ou seja, analisa-se a relação jurídica que está na base da posse para se definir o animus.

De fato, os países que ainda hoje adotam a teoria subjetiva procuram elementos objetivos para se verificar com clareza o animus no caso concreto, conforme prega a teoria da causa. Isso acaba por ser um ponto de contato entre a teoria subjetiva e a teoria objetiva.

Vale ressaltar, sobre o assunto, a opinião de Saleilles:

"Este animus domini no puede ser únicamente un fenómeno íntimo existente sólo en el fuero interno, porque si así fuera, no habría más prueba de él que la declaración del pretendido poseedor: tiene que aparecer del título mismo en virtud del cual detenta".

Sobre a autora
Mariana Ribeiro Santiago

Advogada. Mestre e doutoranda em Direito Civil pela PUC-SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Teoria subjetiva da posse. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 320, 23 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5277. Acesso em: 28 nov. 2024.

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