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Teoria subjetiva da posse

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23/05/2004 às 00:00
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4. CRÍTICAS À TEORIA SUBJETIVA DA POSSE.

As maiores críticas à teoria subjetiva se dirigem ao seu exagerado subjetivismo, que faz a caracterização da posse, instituto de fundamental importância para a sociedade, depender de um estado íntimo do sujeito, difícil de ser precisado no caso concreto.

O principal crítico da teoria subjetiva foi Jhering, em suas obras "Fundamentos da Proteção Possessória" e "Papel da Vontade na Posse". Aliás, o subjetivismo passou a ser reconhecido como tal graças ao próprio Jhering, que criou a imagem do subjetivismo para o criticar. Contrapondo-se a Savigny, Jhering também analisa a posse tomando como base seus dois elementos: corpus e animus.

Para Jhering, "a posse consiste no fato de uma pessoa proceder intencionalmente em relação à coisa, como normalmente procede o proprietário, a dizer, na posse tem a propriedade sua imagem exterior, este direito, a sua posição de fato". O fundamento da proteção possessória seria facilitar a defesa da propriedade.

Percebe-se, por essa definição, que Jhering discorda que o corpus seja a possibilidade material de dispor da coisa e, ainda, diminui consideravelmente o papel da vontade na constituição da posse, ao contrário do que pregou Savigny.

Isto ocorre porque, segundo Jhering, nem sempre o possuidor terá a possibilidade física de dispor da coisa, sem que esse fato destrua a posse; e, por outro lado, na maioria das vezes é impossível a prova do animus, visto se tratar de elemento subjetivo, que está na esfera interior do indivíduo.

O corpus, para Jhering, "consiste no estado normal externo da coisa, sob que se cumpre o destino econômico de servir aos homens, vale dizer, a exterioridade da propriedade, podendo ser ou não a detenção, conforme a natureza das coisas". Ou ainda, nas palavras de Caio Mário, "é a relação exterior que há normalmente entre o proprietário e a coisa, ou a aparência da propriedade".

Já em relação ao animus, Jhering o define como a "vontade de se tornar visível como proprietário", não há a intenção de dono, mas tão somente vontade de proceder como procede habitualmente o dono, que seria a affectio tenendi . Não é, portanto, necessária a prova da intenção do possuidor, a idéia do animus já estaria contida na idéia de corpus, e seria observável quando o possuidor desse à coisa sua devida destinação econômica. De outra forma, segundo os objetivistas, estaria prejudicada a posse do incapaz.

Vale ressaltar, que Jhering não nega a influência da vontade na posse, entretanto, afirma que a vontade exerce na posse a mesma função que exerce em qualquer outra relação jurídica.

Alem disso, segundo Jhering, mesmo havendo o corpus e a affectio tenendi, um dispositivo legal pode, de forma excepcional, negar a existência de posse numa dada hipótese, caso em que existiria mera detenção.

A diferença substancial entre teoria subjetiva e teoria objetiva está no fato de que, para a teoria subjetiva, corpus mais affectio tenendi geram apenas detenção, devido à ausência do animus domini; e, para a teoria objetiva, corpus mais affectio tenendi são suficientes para gerar a posse, que somente se desclassificaria para detenção na existência de um imperativo legal que assim determinasse.

O próprio Jhering, com o fim de esclarecer o sentido e o alcance das orientações subjetivista e objetivista, apresenta as seguintes fórmulas possessórias:

Teoria Subjetiva:

X = a + c +α;

Y = a + c.

Teoria Objetiva:

X = a + c;

Y = a + c – n.

Legenda:

x = posse;

y = detenção;

a = animus, que deve existir mesmo no detentor, para que a situação tenha relevância jurídica;

c = corpus;

α = o plus de vontade que a teoria subjetiva requer para elevar a detenção à posse;

n = o fator legal que, segundo a teoria objetiva, conduz a posse à mera detenção.

Jhering vai mais longe e chega a afirmar que a noção de posse na teoria subjetiva está completamente errada, e que se os Romanos se houvessem orientado por ela teriam admitido a posse sobre os escravos e sobre os filhos-família, bem como teriam reconhecido ao criminoso a posse sobre o homem livre que aprisionou com o objetivo de lhe extorquir um resgate, por se achar ele incontestavelmente em seu poder.

Os Romanos não agiram dessa forma, segundo Jhering, exatamente porque sabiam que não se pode ser proprietário de filhos ou de homens livres, e onde não há propriedade não poderia haver posse, já que esta é uma exteriorização daquela.

Jhering enxerga, ainda, na teoria da custódia, uma contradição dentro da teoria de Savigny sobre a apreensão, pois ora a presença seria necessária para a aquisição da posse, ora não; quer a segurança do poder físico baste, quer não, podendo-se refutar Savigny com o próprio Savigny.

Serpa Lopes também critica a teoria de Savigny nesse ponto, porque esta teoria não justifica satisfatoriamente a persistência ou manutenção da posse de um proprietário que se afasta do seu objeto, sendo que a única explicação aceitável seria a finalidade econômica da coisa, alçada à condição de elemento essencial da posse, como propõe Jhering. O importante, como salienta Sílvio Venosa, é fixar o destino econômico da coisa.

Para exemplificar a importância do conceito de finalidade econômica para a caracterização da posse, Caio Mário visualiza as seguintes situações: um homem que deixa um livro num terreno baldio não tem sua posse, pois ali o livro não preenche sua finalidade econômica; mas aquele que manda despejar adubo num campo destinado à cultura tem a posse do adubo, porque ali a coisa cumprirá o seu destino, embora não haja o poder físico.

O próprio Jhering, com o intuito de evidenciar a excelência do critério da destinação econômica e a facilidade que atribui ao conveniente reconhecimento da posse no plano prático, exemplifica:

"suponhamos dois objetos que se acham reunidos no mesmo lugar, uns pássaros seguros por um laço no bosque, ou, num solar em construção, os materiais, e ao lado uma cigarreira com cigarros; o mais ignorante dos homens sabe que será culpado de um furto se tirar os pássaros ou alguns materiais, mas nada tem a temer se tirar os cigarros; qual a razão desse modo diferente de proceder? Com relação à cigarreira, cada qual dirá: perdeu-se; deu-se isso contra a vontade do proprietário, e torna-se a pô-lo em relação com a coisa, dizendo-se-lhe que foi encontrada; com relação aos pássaros e aos materiais, sabe-se que a posição em que se acham tem sua causa em uma disposição tomada pelo proprietário; estas coisas não poderão ser encontradas, porque não estão perdidas: seriam roubadas".

Em razão da restrição do papel da vontade na constituição da posse, a teoria de Jhering foi denominada de teoria objetiva, em contraposição à teoria subjetiva de Savigny. Como bem salienta Sílvio Venosa, um ponto ficou definitivamente claro na doutrina da posse após Jhering, a distinção entre posse e detenção não pode depender exclusivamente da vontade do sujeito.

O objetivismo de Jhering, que dispensa a intenção de ser dono para a configuração da posse, tem grande repercussão prática, pois dessa forma estariam caracterizados como possuidores os locatários, os depositários, os comodatários, os credores pignoratícios e etc., permitindo-lhes a utilização das ações possessórias, o que não era possível pela teoria de Savigny. Essa questão prática faz com que os doutrinadores, a exemplo de caio Mário, considerem a teoria objetiva mais conveniente e satisfatória.

Outra grande crítica que se faz à teoria subjetiva é pelo fato de não explicar de forma suficiente as chamadas posses anômalas, como a posse do credor pignoratício. Segundo Savigny, nesses casos haveria posse derivada, pois o ius possessionis seria transmitido pelo possuidor. Quem tem o animus domini e a proteção possessória transferiria a posse nessas situações.

Pontes de Miranda ressalta a artificialidade desse raciocínio, alegando que por esse pensamento poderia também ocorrer a transferência da posse ao detentor, não apenas aos casos de posse anômala. Alega, ainda, que a teoria subjetiva resolve apenas a questão de não ser suscetível de posse a coisa fora do comércio e a questão de não serem possuidoras as pessoas sujeitas ao poder de outrem.

Saleilles também critica a posse derivada idealizada por Savigny. Segundo o autor, a explicação de Savigny sobre a posse derivada só seria cabível se o direito romano houvesse reconhecido que o possuidor podia alienar livremente sua posse, mas em Roma a atribuição da posse não podia ser matéria de contrato, sendo que esta dependia de circunstâncias de fato expressamente reconhecidas e determinadas pela lei, independente da vontade em contrário das partes.

Orlando Gomes também ressalta outro ponto fraco da teoria subjetiva, que seria o fato de não comportar rigorosamente o desdobramento da relação possessória, permitindo a coexistência de posse direta e indireta, pois não admite a posse por outrem.

Menezes Cordeiro também faz uma série de críticas ao animus subjetivo, que segunto ele levanta uma série de dificuldades. A primeira dificuldade estaria ligada ao sentido da volição. Não seria correta a identificação do elemento subjetivo com o animus domini, pois, segundo esse autor, hoje se entende pela possibilidade de haver posse nos direitos reais menores. Também o animus possidendi e o animus sibi habendi deixariam, segundo ele, na penumbra os limites da posse, sendo que naquele caso se possibilitaria a posse dos direitos pessoais de gozo. Exatamente por não haver qualquer acordo sobre o sentido do animus subjetivo ele não poderia se erigido a elemento essencial da posse.

O referido autor português lembra ainda que ao momento histórico em que Savigny desenvolveu sua teoria subjetiva, no qual não havia leis modernas sobre posse, mas apenas o Corpus Iuris Civilis, sendo que o próprio Savigny era contrário às codificações. Nesse contexto, faltavam critérios explícitos para a distinção entre posse e detenção, por isso o apelo à vontade humana. Modernamente, segundo o autor, nenhum legislador abdica da prerrogativa de prescrever ou vedar a existência da posse numa determinada situação fática, ou seja, as legislações atuais, independentemente da opção pela teoria subjetiva ou não, contêm o fator "n" da fórmula objetiva desenvolvida por Jhering.

Ao justificar suas críticas à teoria subjetiva, Jhering bombardeia:

"a meu ver Savigny não fez justiça nem ao direito romano, nem à importância prática da posse porque, de um lado, as idéias preconcebidas que tinha impediam-no deter a imparcialidade necessária para reconhecer exatamente o direito romano, e porque, por outro lado, quando empreendeu seu trabalho, estava desprovido de toda noção relativa à prática, defeito que devia ser duplamente perniciosa, sobretudo na teoria da posse, que não pode ser compreendida sem a prática".

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Expostas as críticas à teoria subjetiva, é forçoso admitir que elas ocorrem devido à tentativa de se aplicar a teoria subjetiva à conceituação de posse tal como existe modernamente. Entretanto, como bem salientam Serpa Lopes e Moreira Alves, é um erro a tentativa de aplicação da teoria de Savigny nessas circunstâncias, pois o objetivo de Savigny foi reconstruir a posse tal como existia no direito romano, e não se destinava a fins práticos.

Ademais, como bem observa o professor Arruda Alvim, "em muitos pontos fundamentais das disciplinas existentes sobre a posse há, como parece que diferentemente seria impossível, convergência dos diversos sistemas". Existem aspectos que são pacíficos sobre a posse, independentemente de se adotar a teoria subjetiva ou objetiva da posse.

Alguns desses pontos de convergência entre as duas teorias são, por exemplo, em relação aos efeitos da posse: 1º) a posse pode ser defendida pelos interditos; 2º) a posse prolongada durante certo tempo, conduz à aquisição do direito, quando observadas as regras da prescrição aquisitiva; 3º) o possuidor de boa fé tem direito aos frutos; 4º) o possuidor de má fé não tem direito aos frutos (mas tem direito às despesas feitas para colhê-los).


5. A ORIENTAÇÃO SEGUIDA PELO ORDENAMENTO BRASILEIRO SOBRE POSSE.

O art. 1.196, do Código Civil de 2002 manteve a orientação do Código Civil de 1916, art. 485, ao conceituar como possuidor "todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade".

Já no art. 1.198, o Código Civil de 2002 mantém a idéia do art. 487, do Código Civil de 1916, ao negar o status de possuidor àquele que, achando-se em relação de dependência com outra pessoa, conserva a coisa em nome deste. Entretanto, o Código de 2002 é expresso em usar para tal hipótese o termo "detenção".

Ambos os Códigos deixaram de conceituar diretamente a posse, mas forneceram, através do conceito de possuidor, todos os elementos essenciais à caracterização da posse, tarefa que ficou a cargo da doutrina.

O Código Civil de 1916 foi um dos primeiros no mundo a romper com a teoria subjetiva, dominante entre os civilistas anteriores, filiando-se a teoria objetiva da posse, já adotando a idéia de posse que hoje figura no Código de 2002. Isso resta expresso também na exposição de motivos do Código de 1916.

A posse, em nosso sistema jurídico, portanto, não exige o animus domini, ou intenção de ser dono, e também não exige o poder físico sobre a coisa. Prioriza-se a utilização econômica da coisa, sendo a posse a exteriorização do domínio.

Por esse método objetivista, pode-se distinguir mais facilmente e seguramente posse e detenção, permitindo-se, inclusive, que um maior número de situações seja enquadrada como posse do que seria possível pela teoria subjetiva.

A conseqüência mais importante dessa orientação seguida pelo ordenamento pátrio a respeito da posse é a concessão das ações possessórias, previstas no Código de Processo Civil, a princípio em todas as hipóteses em que se configurem o corpus e a affectio tenendi, independentemente do animus domini, como no exemplo clássico do locatário, e ainda nos casos do usufrutuário, comodatário, depositário, transportador, administrador, testamenteiro e etc.

Entretanto, como bem adverte Sílvio Venosa, embora o nosso Código Civil tenha adotado a teoria objetiva como regra geral, enfocando a posse como postulado da proteção da propriedade, nosso ordenamento sobre posse não repousa exclusivamente sobre a teoria de Jhering, foram feitas algumas concessões à teoria subjetiva.

Nos artigos referentes à usucapião, o Código Civil de 2002, à semelhança do Código de 1916, estabelece um ponto de contato, uma interferência entre teoria objetiva e teoria subjetiva, que pode ser notado, por exemplo, no art. 1.238.

Art. 1.238. "Aquele que, por 15 (quinze) anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis". (grifo nosso)

Como resta claro da análise do artigo citado retro, no caso de usucapião o nosso ordenamento, fazendo uma exceção à teoria objetiva, exige a intenção de possuir a coisa como dono para que haja a aquisição, tornando-se necessário o exame do animus do possuidor no caso concreto.

Em geral, o instituto da usucapião no nosso ordenamento envolve a noção do animus domini do possuidor, tal como definia Savigny, não bastando a affectio tenendi, sendo esta uma importante concessão feita pelo nosso ordenamento à teoria subjetiva, da qual o legislador do Código de 2002 não conseguiu desvincular-se.

Segundo Maria Helena Diniz, o animus domini é o elemento psíquico da usucapião, e o objetivo da análise desse elemento seria exatamente evitar a possibilidade de usucapião pelos fâmulos da posse.

A expressão "possuir como sua" ou "possuir como seu" constam ainda nos artigos 1.239, 1.240 e 1.260, do Código Civil de 2002, todos sobre usucapião, sendo que este último artigo trata da usucapião de móveis.

Vale ressaltar que o Código Civil de 2002 restringiu a influência do pensamento de Savigny em matéria de posse no nosso ordenamento jurídico. O Código Civil de 1916 fazia concessões à teoria subjetiva, ao tratar da aquisição e da perda da posse, que o novo Código não faz mais.

O art. 493, do Código Civil de 1916, estabelecia:

Art. 493. "Adquire-se a posse:

I – pela apreensão da coisa, ou pelo exercício do direito;

II – pelo fato de se dispor da coisa, ou do direito;

III – por qualquer dos modos de aquisição em geral".

O citado art. 493 enumerava hipóteses de aquisição da posse, demonstrando uma influência da doutrina de Savigny ao expressar sua idéia de corpus como apreensão física ou possibilidade de disposição da coisa, enquanto, de acordo com a teoria objetiva, deveria-se priorizar a destinação econômica da coisa.

Já o art. 520, do Código de 1916, determinava:

Art. 520. "Perde-se a posse das coisas:

I – Pelo abandono;

II – pela tradição;

III – pela perda, ou destruição delas, ou por serem postas fora do comércio;

IV – pela posse de outrem, ainda contra a vontade do possuidor, se este não foi manutenido, ou reintegrado em tempo competente;

V – pelo constituto possessório".

O referido art. 520 enumerava as hipóteses de perda da posse, levando em consideração a ausência de um elemento estrutural ou dos dois elementos - corpus e animus, voltando a demonstrar a influência do entendimento de Savigny sobre esses elementos. Os casos dos incisos I e II seriam de perda da posse pela ausência de corpus e animus; nos incisos III e IV haveria perda pa posse por ausência do corpus; e, finalmente, no inciso V, por perda do animus.

Inclusive, o caso em que fica mais nítida a influência de Savigny é o caso do inciso V. No constituto possessório, aquele que detém a posse direta não é mais proprietário da coisa, possuindo-a em nome de outrem. Considerar a perda da posse nesse caso é privilegiar o elemento animus, o que é incompatível com a teoria de Jhering.

Os arts. 493 e 520, do Código de 1916, foram muito criticados exatamente porque se o próprio Código definia implicitamente a posse no art. 485 como exteriorização da propriedade, de acordo com a doutrina de Jhering, sendo que a enumeração de hipóteses de aquisição e perda da posse era supérflua, a aquisição ou perda seriam notadas pelo próprio exercício de poderes inerentes ao domínio.

Segundo o próprio Jhering, a aquisição e a perda da posse devem reger-se pela seguinte regra: "O modo pelo qual o proprietário exerce de fato sua propriedade deve ser o critério da existência da posse".

O Código Civil de 2002 mudou esse panorama do Código de 1916 ao estabelecer:

Art. 1.204. "Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade".

E, ainda:

Art. 1.223. "Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196".

Como dito anteriormente, no art. 1.196, o Código de 2002 mantém a noção, que já estava presente no art. 485 do Código de 1916, de posse como exercício de poderes inerentes à propriedade, que está de acordo com a doutrina objetiva, que descreve a posse como exteriorização da propriedade.

Dessa forma, os novos arts. 1.204 e 1.223, do Código de 2002, estão em sintonia com esse conceito objetivo de posse, diminuindo a influência do pensamento de Savigny sobre a posse no nosso ordenamento ao se desligarem das suas idéias de corpus e animus ao dispor da aquisição e perda da posse.

Os referidos artigos do Código de 2002 também mostram estreita semelhança com os artigos correspondentes no BGB sobre a matéria. Isso ocorre porque o novo Código pátrio adotou um sistema mais flexível e de maior mobilidade, do qual o BGB é a maior referência. Nesse sistema aberto, as regras mais genéricas, como as cláusulas gerais, assumem o lugar das enumerações casuísticas, o que confere maior liberdade para o aplicador do direito ao julgar o caso concreto.

A atual redação que o Código de 2002 deu aos artigos referentes à aquisição e à perda da posse estão ainda em sintonia com a redação original pretendida por Beviláqua quando do Projeto que deu origem ao Código de 1916. Na redação pretendida por Clóvis, posteriormente alterada pelo Congresso devido à influência do Código de Seabra, de 1867, também não havia qualquer enumeração de hipóteses de aquisição e perda da posse.

Ainda assim, mesmo sofrendo influências da teoria subjetiva, como pondera Orlando Gomes, o nosso Código Civil já era, em 1916, a construção legislativa que mais se aproximava do pensamento de Jhering, tendo o Código de 2002 mantido o mesmo posicionamento.

Essa aderência tão exacerbada à doutrina objetiva da posse foi possível porque o direito anterior ao Código de 1916 era omisso quanto à natureza e o conceito da posse, simplesmente aplicando-se o direito romano, o que resultava na falta de uma construção sistemática a respeito de um conjunto ordenado de preceitos legais nacionais sobre o tema.

Contudo, é importante frisar que, como ressalta o mesmo autor, a interferência da teoria subjetiva no nosso Código Civil não deve ser considerada tecnicamente como incoerência, pois o Código não é obra teórica, na qual o autor deve guardar absoluta fidelidade à doutrina que adotou.

O legislador não é um jurista, que é o cientista do direito, devendo ser coerente à filosofia a que se filiou sob pena da sua obra ter valor científico duvidoso. Segundo Maria Helena Diniz, "a coerência lógica não é requisito essencial do direito, mas do sistema jurídico, logo a incompatibilidade entre normas é um fato".

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Sobre a autora
Mariana Ribeiro Santiago

Advogada. Mestre e doutoranda em Direito Civil pela PUC-SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Teoria subjetiva da posse. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 320, 23 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5277. Acesso em: 24 abr. 2024.

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