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O que o filme Section Spéciale, de Costa-Gravas, pode nos ensinar sobre o Direito

Agenda 04/04/2017 às 15:15

O filme mostra como um sistema jurídico, embasado em séculos de história, como o da França, pode ruir facilmente, caso os detentores do poder decidam burlar os princípios do Estado Democrático e de Direito.

O filme “Section spéciale”, ou “Sessão Especial de Justiça” como foi traduzido para o português, dirigido pelo cultuado diretor Costa-Gravas, narra um evento jurídico que ocorreu durante a ocupação nazista na França, no contexto da Segunda Guerra Mundial. O ano é 1941, período que ficou conhecido pelos franceses como a “França de Vichy” (1940-1944), um governo fantoche da influência nazista, governado pelo Marechal Philippe Pétain.

É interessante notar que o filme escolhe que sua primeira cena seja de uma reunião de chefes de Estado de diversas nações assistindo a uma ópera, uma metáfora para os acontecimentos que irão se suceder durante a narrativa. Esse é um ponto que merece ser lembrado, mas deixarei a minha interpretação melhor explicada para o final desse resumo.

Mas vamos ao caso de que trata o filme. Um grupo de jovens associados à Resistência Francesa, composto por comunistas e gaulistas, é atacado por soldados alemães durante uma passeata anti-nazista. Nessa ocasião, um manifestante morre durante a confusão e o restante, que os nazistas conseguiram capturar, são fuzilados sumariamente. Revoltados com essa violência do regime alemão, alguns jovens da resistência conseguem assassinar um oficial nazista no metrô parisiense e fogem.

O governo de Pétain juntamente com o alto escalão nazista começa a pensar em meios para evitar que atos como esse se repitam e encontrem impunidade, cogitando em fazer uma execução com guilhotina em praça pública. O problema é que eles não sabem quem são os responsáveis pelo assassinato do soldado alemão. O Terceiro Reich, em uma atitude de claro desespero, ordena que o governo francês condene seis pessoas que sejam suspeitas de ter envolvimento com partidos políticos de esquerda ou que sejam judeus. Se não cumprida a ordem, o governo nazista executaria cem franceses, incluindo magistrados e advogados, por insubordinação. 

A partir daí inicia-se uma verdadeira deterioração do sistema judiciário francês, pois, não encontrando base legal para se criar um tribunal de caráter praticamente inquisitorial, os políticos e magistrados decidem criar uma “lei de exceção”, que fere uma série de princípios do Estado Democrático e de Direito. O primeiro que dá para ser notado de imediato pela essência dessa lei é o princípio do juiz natural, que deixa de existir para dar lugar a um Tribunal com caráter de “exceção”. Não só isso, mas ignoraram também o princípio da anterioridade da lei, seja pelo fato do Tribunal Especial ser criado após a ação criminosa em questão, ou pelo fato de criarem um tipo penal e uma sanção legal, no caso a de pena de morte, não previstas antes da prática do delito, ferindo a garantia da irretroatividade da lei penal menos benéfica. Outro princípio que também é destruído é o da Separação dos Poderes, elaborado por Montesquieu, pois, para acelerar o procedimento formal de elaboração das leis, quem escreve e assina o documento dando início à Lei de Exceção são juízes de Direito, simulando uma competência do Poder Judiciário, que não lhes pertence. Ainda, a Lei fere o princípio do duplo grau de jurisdição por não permitir recurso às decisões do Tribunal Especial.

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Depois de estruturada essa farsa jurídica, a segunda metade do filme irá mostrar o julgamento. São escolhidos seis prisioneiros para compor o banco de réus. O critério de seleção é que eles sejam comunistas, gaulistas, judeus, ou que tenham condenações por crimes políticos, no caso, praticado qualquer ato que fosse anti-nazista.  

Durante o julgamento, mais princípios e garantias democráticas são violados. O primeiro é o da publicidade dos atos judiciais, que é estipulado com o escopo de garantir a transparência da justiça, a imparcialidade e a responsabilidade do juiz. A possibilidade de qualquer indivíduo verificar os autos de um processo e de estar presente em audiência, revela-se como um instrumento de fiscalização dos trabalhos dos operadores do Direito, o que é algo que não ocorre no Tribunal Especial.

O segundo é o da proporcionalidade entre o crime e a pena, que é totalmente ignorado, aplicando-se uma pena de morte para, até mesmo, um mero “crime” de panfletagem. O que se nota é que as justificativas para penas tão absurdas não se sustentavam; não passavam de um simulacro do governo para tentar aplicar a pena capital aos réus.

Infelizmente as injustiças não param por aí. Vemos no julgamento do réu Adolphe Piwolski, por exemplo, a aplicação de duas penas para o mesmo fato. Já no julgamento de André Brèchet vemos o juiz obrigando-o a confessar que trabalhava para um partido comunista, ou seja, ignorando por completo o princípio da não produção de provas contra si mesmo. Também não existe o princípio da ampla defesa no Tribunal Especial, uma vez que os juízes já tomaram suas decisões, sem racionalizar ouvindo a sustentação oral da defesa.

Agora vale voltar para a metáfora da ópera que eu havia mencionado no começo do texto. De maneira interessante, o diretor optou por começar e terminar o filme em uma ópera. A imagem é clara: a plateia vendo a ópera reflete os réus observando o seu julgamento pelo Tribunal Especial. Ou seja, tudo não passa de uma encenação, de uma farsa jurídica. A questão da encenação é reforçada pelo personagem Sampaix, que diz ao seu advogado “É inútil discutir. Todas essas penas de morte já foram decididas. Não gaste suas forças ou seu talento. Deixe que eles lutem suas próprias consciências.”. No fim o Tribunal condena três réus à morte e o restante sofre pena de deportação.

Esse filme é de extrema relevância para os alunos e atuantes do Direito, pois nos mostra como um sistema jurídico, embasado em séculos de história, como o da França, pode ruir facilmente, caso os detentores do poder decidam burlar os princípios do Estado Democrático e de Direito. Por isso, é importante se manter atento a qualquer ameaça que ponha em risco essas garantias que nos permitem viver em democracia.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORDEIRO, André Mincherian Mostafa. O que o filme Section Spéciale, de Costa-Gravas, pode nos ensinar sobre o Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5025, 4 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52952. Acesso em: 24 dez. 2024.

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