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Ação afirmativa.

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Agenda 14/06/2004 às 00:00

5. Ação Afirmativa no Direito Brasileiro

No capítulo anterior, procurou-se demonstrar constitucionalmente a possibilidade da aplicação das ações afirmativas no direito brasileiro. Tratar-se-á agora da implementação da ação afirmativa de raça, especificamente do caso das cotas para acesso às instituições de ensino superior da rede pública do Estado do Rio de Janeiro.

5.1. Ação Afirmativa e Raça

Para se estudar as ações afirmativas, não se pode olvidar o passado escravocrata brasileiro e a condição que foi imposta aos negros nos últimos séculos. Mesmo após a abolição da escravidão o negro foi tratado como inferior, sendo impedido de ocupar os melhores postos de trabalho, e por isso mesmo, nesses últimos 15 anos que sucederam a promulgação da constituinte, muito se discutiu a respeito da discriminação do negro, quer seja no mercado de trabalho, quer seja nas Instituições de Ensino Superior da rede pública.

Dados do instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) referentes ao ano de 2002, mostram que "enquanto o salário médio mensal dos homens e mulheres brancos era, respectivamente, de R$ 726 e R$ 572 por mês, o dos homens e mulheres negros era de R$ 337 e R$ 289. São negros 64% dos pobres e 69% dos indigentes do País. A taxa de analfabetismo é três vezes maior entre os negros. Os jovens brancos, aos 25 anos, têm, em média, 8,4 anos de estudos. Já os negros da mesma idade, têm a média de 6,1 anos." 60

Além disso, entre os brancos "que são 54% dos 170 milhões de brasileiros, 36% são pobres e 31% são indigentes. Já entre os negros, 64% estão na linha de pobreza e 69% são arrolados na linha de indigência". 61

Sem levar em conta que "o Brasil possui a maior população negra fora da África [...] só inferior numericamente à população do mais populoso país africano, a Nigéria". 62 Contudo, esses negros não atingem as posições de status elevado, "entre os 970 magistrados [ da justiça federal] brasileiros, a percentagem de negros é inferior a 10% [...] no Ministério Público do Trabalho, apenas 7 dos 465 procuradores são negros, [...] o Itamaraty conta com cerca de mil diplomatas dos quais menos de dez são negros. Do total de professores universitários no país, 98% são brancos." 63

Diante desse quadro, algumas iniciativas já começam a surgir. Tramita no Congresso Nacional o projeto de Lei n.º 650/99, que reserva 20% das vagas no serviço público, nas universidades públicas e nos contratos de financiamento estudantil. 64

Destaca Alexandre Vitorino que o percentual de reserva de 20% das vagas "é substancialmente inferior ao percentual de negros na população, vez que segundo o autor correspondem a negros a soma de brancos e pardos, ao que se chega em 45% da população brasileira". 65

5.2. O vestibular das universidades públicas estaduais do Rio de Janeiro

Mas, a grande polêmica com a questão das cotas veio à tona no início deste ano com a divulgação dos resultados do Vestibular da UERJ, onde foram utilizados dois tipos de cotas, um que reservava 50% das vagas para estudantes de escolas públicas (Lei Estadual n.º 3.708), e outro reservava 40% das vagas para os candidatos que se declarassem negros (Lei Estadual nº 3.525/00). É mister esclarecer que as cotas para negros, abrangem todas as pessoas que se declararam negros ou pardos.

O resultado foi que as cotas foram usadas de forma superpostas, de modo que "de cada 10 vagas em disputa, menos de quatro couberam a estudantes que se destacaram pelo conhecimento e pela competência para responder às questões". 66 "Dos 1969 negros aprovados no vestibular, 83% entraram graças às cotas." 67

Posteriormente ao exame do vestibular, foi promulgada a Lei Estadual n.º 4.061/03, que determina a reserva de mais 5% de vagas para portadores de deficiências especiais.

Devido a isso muitos autores, têm demonstrado-se contrários às cotas. Tratando do mesmo tema, Sebastião José Pena Filho, faz uma indagação muito simples a partir de uma abordagem unicamente jurídica: "O que faz com que o negro tenha menos acesso às vagas nas universidades que legitime um regime jurídico diferenciado? Se a resposta for ‘a cor da pele’, então pode-se (sic) afirmar que há pertinência lógica entre o fator de discriminação e o tratamento jurídico diverso, dele decorrente. A norma, para se qualificar como aderente ao princípio constitucional da isonomia, toma por fato a hipótese de que perfis de cor da pele, de per si, influem no resultado da prova de admissão na universidade, o que é um desatino. E pior: prevendo um "benefício" ao perfil de cor da pele negra, toma por fato a hipótese de que o negro obtém resultados piores que o não-negro. Em palavras curtas: pressupõe que o negro seja menos inteligente que o branco." 68

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Neste mesmo sentido Christiano Menegatti, para quem as cotas terminariam por "subestimar a capacidade da raça negra". 69

No sentido oposto, surgem os que defendem as cotas. Cite-se como exemplo, a Professora Maria Cláudia Cardoso Ferreira, para quem as cotas são uma necessidade. "Mais do que nunca, será dado o direito o direito do acesso à universidade para uma população que há muito tempo não o tem." 70

Concordando com ele, Rosangela e Walter Praxedes para quem as cotas "para alunos negros nas universidades públicas podem compor um conjunto de medidas práticas, efetivas e imediatas que apontem para o fim das desigualdades raciais na sociedade brasileira". 71

Por fim, destaca-se que diversas ações judiciais foram propostas, dentre elas uma representação de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça estadual (TJRJ), processo n.º 2003.007.00021, e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) no Supremo Tribunal Federal (STF), processo n.º ADIN 2858.

Ao receber a representação o Des. Relator, suspendeu de logo a eficácia das leis impugnadas. No STF o Min. Relator, Carlos Velloso, ao receber a inicial, já tinha ciência da liminar deferida pelo TJRJ, e mandou apenas notificar a Governadora do Estado e Assembléia Legislativa para que prestassem informações acerca da leis ora impugnadas.

Nesse ínterim, foi aprovada no Rio de Janeiro a Lei Estadual n.º 4.151/03 de 05 de setembro de 2003, que revogou as Leis 3.524/00, 3.708/01 e 4.061/03, no tocante às cotas, dispondo que as cotas seriam de 20% para alunos da escola pública, 20% para alunos negros ou pardos.

Tendo em vista que o novo diploma legislativo, revogou as leis impugnadas, o Min. Relator da ADIN 2858 extinguiu, por julga-la prejudicada. Por sua vez o Des. Relator da Representação 2003.007.00021, instado a se manifestar, determinou que fosse oficiado à Assembléia Legislativa e à Governadora do Estado que a liminar ainda continuava em vigor, razão pela qual não se podia editar uma lei tratando da mesma matéria.

Ressalte-se, por fim, que tramita na Assembléia Legislativa pernambucana, o projeto de Lei n.º 340/2003 72 de autoria do Deputado Isaltino Nascimento, que se aprovado for instituirá uma cota mínima de 30% para alunos que tenham cursado o ensino fundamental e médio na rede pública, desde que atendam a pelo menos um dos seguintes requisitos: possuir renda familiar menor cinco salários mínimos, ou firmar declaração de afrodescendência.


Conclusão

A guisa de conclusão, gostaríamos de ressaltar, que juridicamente é possível a implementação das ações afirmativas no Brasil, claro que com as devidas adaptações, pois como vimos, a história norte-americana é bem diferente da nossa, odiosa que seja a escravidão, nós nunca convivemos com uma situação de segregação, a qual era juridicamente legitimada.

Temos que, obviamente usar as ações afirmativas levando-se em conta as nossa peculiaridades, mas sua implementação não só é possível, como é um dever, mormente diante do comando do constitucional de se materializar o princípio da igualdade, permitindo a todos iguais oportunidades de ascensão social.

Realmente, e infelizmente, na nossa sociedade o negro ainda é muito discriminado, e é verdade que poucos são os negros nas universidades, mormente nos cursos de grande prestígio, como Medicina, Odontologia e Direito, porém, não nos parece que as cotas tenham sido a melhor opção para solucionar o problema da ausência de negros nas universidades fluminenses.

Ao nosso ver, a questão do vestibular da UERJ, foi boa, apenas por um aspecto, levantou a discussão da ausência de negros nas Instituições de Ensino Superior, mas, errou ao impor uma cota, sem antes verificar se o método copiado dos Estados Unidos resolveria o problema.

Ocorre que nos Estados Unidos a situação é diversa, enquanto o ensino fundamental e médio de qualidade é uma garantia de todos os cidadãos, os afro-americanos tem hoje (após o da fim segregação) a oportunidade de aprender tanto quanto um branco, as cotas existem porque o vestibular não é uma prova, e sim uma análise de currículos (portanto de caráter subjetivo que depende dos interesses de cada universidade), nas quais historicamente o negro, ficou em situação de desvantagem, servindo as cotas para corrigir essa distorção. 73

Já no Brasil, os ensinos fundamental e médio (antigos 1º e 2º grau) ainda não são uma conquista de todos, estão à disposição apenas das camadas mais bem aquinhoadas da população, "gerando uma situação inversa: quem pode pagar por um bom ensino fundamental alcança as vagas das universidades públicas e gratuitas, enquanto que os que precisam se sujeitar às escolas públicas, mesmo que logrem êxito em alcançar uma vaga em instituições particulares, certamente não terão como custeá-las. A divergência entre os sistemas é gritante, restando claro que o modelo americano não pode ser usado como parâmetro. Não há como negar que a origem do problema encontra-se, predominantemente, na má distribuição da renda, entre outros fatores de ordem social, que não será minimizado pela medida proposta." 74

O que se nota, é que no Brasil há uma verdadeira exclusão sócio-econômica, e não exclusão racial, ao menos, nos exames de vestibular para acesso as Instituições de Ensino Superior.

Não se está com isso, procurando negar a realidade, nem mascarar a situação do negro na sociedade brasileira. A dificuldade do negro de entrar na universidade, está, ao nosso ver, no fato de ao negro, sobretudo por uma razão histórica, ter sido relegado o trabalho considerado inferior, e por isso não foi possível a ele acumular riquezas para atingir o topo da pirâmide social, o que por sua vez restringe a sua possibilidade de investir em educação para ascender socialmente, transformar a própria realidade.

Muitos autores, neste ponto, sugerem que as cotas deveriam ser apenas para as escolas públicas, 75 ouso contudo, discordar. Criar cotas para os alunos da escola pública não nos parece ser a medida mais acertada, pois colocaria numa mesma sala estudantes com diferentes níveis de conhecimento, o que implicaria no retardo do aprendizado e em mais gasto para fazer com que as os alunos das escolas públicas acompanhassem os demais. "Calcula-se que seriam necessários investimentos da ordem de R$ 12 milhões para permitir que os alunos aprovados pelas cotas pudessem acompanhar sem atropelos o que se passa em classe. A universidade, é claro, não tem esse dinheiro." 76

Acreditamos que o mais coerente, seria num primeiro momento uma melhora qualitativa no ensino público fundamental e médio, todavia, como levará tempo até que isto ocorra, sugere-se de imediato criar cursinhos pré-vestibulares para os alunos da rede pública (o que por sinal já ocorre em Pernambuco, para alguns alunos), para que possam concorrer em pé de igualdade com os demais. E no segundo momento, quando todos tivessem as mesmas chances de concorrer, o poder público subsidiaria vagas para os alunos pobres que não conseguissem entrar nas universidades públicas.


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Sobre o autor
Osias Tibúrcio Fernandes de Melo

Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Osias Tibúrcio Fernandes. Ação afirmativa.: o problema das cotas raciais para acesso às instituições de ensino superior da rede pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 348, 14 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5301. Acesso em: 22 nov. 2024.

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