A busca obstinada e incessante de um único culpado pelo fim da relação matrimonial ou convivencial, salvo em situações muito específicas, parece, cada vez mais, tese sepultada por nossos principais autores e pela segura jurisprudência de nossos Tribunais.
Porém, parece que de tempos em tempos, provavelmente para que nos rememoremos de como o Direito de Família brasileiro já foi marcado por este pensamento retrógrado, como advogados, somos obrigados em peças de defesa a tecer certas considerações a respeito.
Isso porque em certos processos, alguns litigantes deixam de lado os temas mais importantes (situação dos filhos, partilha de patrimônio, v.g.) para tecer comentários – geralmente desairosos - a respeito de condutas da outra parte, seja durante o relacionamento, seja nas intermitências de seu encerramento, as quais, verdadeiras ou não, não possuem o condão de influir nas vindouras decisões judiciais acerca da concessão ou não do divórcio ou da dissolução da união estável.
Ora, é notório e sabido que nos dias de hoje não se deve destinar o processo de Divórcio - ou Dissolução de União Estável - à discussão da culpa pelo fim da relação, pois se assim fosse, certamente a outra parte teria também uma série de considerações desagradáveis para fazer e esta troca de acusações não chegaria a lugar algum, apenas servindo para entupir o feito de petições e papéis inúteis.
Esta vetusta técnica de argumentação tem por escopo, muitas vezes, tão somente, buscar arranhar a imagem de um dos cônjuges/companheiros, buscando desviar a atenção do Magistrado e do representante do Ministério Público para assuntos de somenos importância, sem se ater aos principais aspectos que devem nortear este tipo de processo.
Foi-se o tempo em que a discussão sobre a culpa possuía alguma relevância jurídica, causando impactos patrimoniais, pessoais e alimentares até, os quais geralmente recaíam sobre o cônjuge virago, em um processo marcado pelo sexismo, pelo preconceito e pela influência do Direito Canônico.
Vários são os modernos pensadores do Direito de Família que pretendem afastar o máximo possível a discussão da CULPA nas Separações.
Leia-se, por todos, a opinião do festejado jurista gaúcho BELMIRO PEDRO WELTER:
No Direito de Família, em vista dos princípios da secularização, da dessacralização do casamento, da liberdade, da igualdade, da prevalência dos interesses dos cônjuges e dos companheiros, da felicidade, da solidariedade, do afeto, da cidadania e da dignidade da pessoa humana, não se pode falar em culpa ou em responsabilidade civil. A responsabilidade imposta no Direito de Família é apenas o “direito de ser feliz e o dever de fazer o outro feliz”. O amor é uma estrada de mão dupla, na qual os cônjuges ou companheiros são responsáveis pelos seus atos e suas escolhas, pelo que não se pode discutir a culpa No Direito de Família, não há responsabilidade civil, e sim a responsabilidade pessoal, em vista da liberdade de escolha do consorte, da situação em que o cônjuge ou companheiro se encontra, ao optar pela dissolução da entidade familiar, e pela saída desse conflito, enfim, se é direito da pessoa humana constituir núcleo familiar, também é direito seu não manter a entidade formada, sob pena de comprometer-lhe a existência digna.
Destarte, o Estado de Direito laicizou, tornou leigo, secularizou, descristianizou, profanou, desconsagrou, degredou, dessacralizou, desdramatizou, enfim, extinguiu o princípio da culpa, pelo que, em um Estado Constitucional, deve-se compreender que a Constituição (ainda) constitui, não se podendo admitir a discussão da culpa do Direito Canônico no âmbito do Direito de Família. (disponível em http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9414-9413-1-PB.pdf, acessado em 02/09/2016).
Não se pode negar que, em alguns casos, a ruptura do casal dá-se por um ou mais atos eivados de violência e/ou má-fé praticados por um dos cônjuges, até ensejadores de outras medidas penais e/ou de responsabilidade civil, porém esta circunstância não pode jamais inspirar os operadores do Direito de Família a procurarem em todos os casos e de modo obstinado um único culpado pela falência matrimonial, pois, na maior parte dos casos, esta falência é fruto de meses, às vezes anos, de ausência de diálogo, falta de compreensão, omissões, obsessões, pequenos atos de desrespeito mútuo que vão se avolumando até criar uma situação insustentável.
O fato é que nestes casos de desgaste natural e paulatino do casamento/união estável é impossível ao Magistrado, aos advogados e aos representantes do Ministério Público, atuantes em um processo de dissolução do casamento, obterem êxito em descobrir qual dos cônjuges/companheiros foi - pela primeira vez - grosseiro, violento, inoportuno, ciumento ou omisso, pois isto implicaria em adentrar em uma “máquina do tempo” para tentar “ver” o que ocorria dentro da morada comum, todos os dias em que este casal esteve junto, o que sabemos ser impossível.
Ademais, no momento em que ex-esposos/companheiros estão frente a frente em um Tribunal, abalados psicologicamente pelo estresse da separação, em um misto de frustração e vergonha, muitas vezes a razão é deixada de lado e pequenos fatos que já haviam sido relegados a um segundo plano, tornam-se importantes “cavalos de batalha”, no sentido de atribuir toda a culpa ao outro, quando a culpa geralmente pode ser atribuída a ambos, ainda que em proporções diferentes.
A falta de tato, inteligência emocional, honestidade intelectual (e às vezes de ética pessoal e profissional) para superar estes problemas, tanto do lado dos litigantes, quanto por parte dos advogados, pode levar a um duradouro e venenoso processo, o qual poderá, tranquilamente, dar azo a outros processos que tomarão a forma litigiosa, muitas vezes por mera postura vingativa e beligerante das partes. Assim, não se descarta o posterior ingresso de outras ações, prolongando desnecessariamente a dor e o sofrimento destas pessoas, isto sem mencionarmos a série de traumas que podem se abater sobre os filhos do casal.
Tais questões ligadas a determinação de “um culpado” são herança do sistema Canônico, daí o porquê de a doutrina mais abalizada estar pouco a pouco buscando o afastamento destas considerações, tendo sido festejadas as regras contidas especialmente no artigo 1580, § 1º, do Código Civil de 2002, o qual determina que da sentença concessiva de divórcio não conste referência à sua causa. Além disso, não se pode olvidar que o Novo Código de Processo Civil proclama a obrigação de as partes envolvidas buscarem a solução pacífica dos conflitos, algo que, convenhamos, não se obtém enxovalhando a parte ex adversa em petições recheadas de historietas ruins do passado e adjetivos (muitos adjetivos) daninhos.
Esta é a linha de pensamento de nosso Eg. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:
CIVIL. FAMÍLIA. DIVÓRCIO DIRETO LITIGIOSO. RECONVENÇÃO. ALEGAÇÃO DE CULPA. NÃO CABIMENTO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE.1. A ação de divórcio é direito potestativo da parte, não havendo que se perquirir a respeito da culpa. Dessa forma, comprovada a condição de casados, de que não mais coabitavam, a inexistência de bens a partilhar, tem-se por acertado o julgamento antecipado da lide e a consequente decretação do divórcio pelo julgador monocrático, repelindo-se a alegada violação ao artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal.(...)(Acórdão n.636368, 20120110230492APC, Relator: FLAVIO ROSTIROLA, Revisor: CESAR LABOISSIERE LOYOLA, 1ª Turma Civel, Publicado no DJE: 29/11/2012. Pág.: 75) grifamos
DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. DIVÓRCIO DIRETO. CITAÇÃO POR EDITAL. REVELIA. CURADORIA ESPECIAL. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. RETORNO AO USO DO NOME DE SOLTEIRA. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO DO CÔNJUGE VIRAGO. DIREITO PERSONALÍSSIMO. RECONHECIMENTO.1. A novel legislação civil (CC/2002), recriando paradigmas, afastou-se da busca pela apuração de culpa quando do desfazimento da união conjugal(...)(Acórdão n.588638, 20110310089238APC, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO, Revisor: NIDIA CORREA LIMA, 3ª Turma Civel, Publicado no DJE: 29/05/2012. Pág.: 129) grifamos.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIVÓRCIO LITIGIOSO. CUMULAÇÃO DE PEDIDOS. EMENDA CONSTITUCIONAL 66/2010. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. POSSIBILIDADE. ARTIGO 273, §6º, DO CPC. DECISÃO REFORMADA. 1. A Emenda Constitucional n.º 66/2010 trouxe novos relevos ao divórcio, bastando para sua concessão apenas a vontade de um dos cônjuges, ou de ambos, independentemente de qualquer prazo mínimo de separação de fato ou da decretação judicial de separação, sendo afastada, ainda, a discussão sobre culpa pelo rompimento, preservando a intimidade das partes, facilitando e acelerando o procedimento.(...)(Acórdão n.939193, 20160020024312AGI, Relator: ANA CANTARINO 3ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 04/05/2016, Publicado no DJE: 12/05/2016. Pág.: 235/244)
Portanto, o divórcio/dissolução da união estável das partes deve ser decretado, sem que haja a menor necessidade de se perquirir o culpado (ou culpada) pelo fim da relação. Entendimento contrário, data maxima venia, seria lançar de volta o Direito de Família brasileiro ao abismo obscurantista do qual vem se livrando há alguns anos.
Além do mais, caso realmente haja fatos graves atribuíveis a uma das partes e que enseje a reparação de algum tipo de dano, importante frisar que já há entendimentos no sentido de que o pedido de indenização por danos morais, pelo menos no âmbito do Distrito Federal, extrapola a competência das Varas de Família, devendo a discussão ser encaminhada para as Varas Cíveis:
SEPARAÇÃO JUDICIAL LITIGIOSA - AGRAVO RETIDO - PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - MANUTENÇÃO DE INDEFERIMENTO - COMPETÊNCIA - EMENDA CONSTITUCIONAL 66/2010 - DIVÓRCIO DIRETO - PARTILHA - NOME. 1.A competência da varas de família (art. 27, da Lei 11.697/08 (LOJDFT) não contempla a demanda de indenização por dano moral supostamente causado por um cônjuge ao outro, estando a matéria afeta à competência das varas cíveis. Precedentes TJDFT.
(...) (Acórdão n.575942, 20080110004768APC, Relator: SÉRGIO ROCHA, Revisor: CARMELITA BRASIL, 2ª Turma Cível, Data de Julgamento: 21/03/2012, Publicado no DJE: 30/03/2012. Pág.: 100)
Apenas como adendo, entendemos que nestes casos, ou seja, de discussão de danos morais, oriundos de fatos ocorridos durante a relação conjugal/convivencial, tramitando perante Vara Cível, deve ser concedido às partes o direito ao Segredo de Justiça, com base no art. 189, I e II do novo Código de Processo, sendo seus nomes abreviados nas publicações, a fim de evitar exposição indevida.
Por fim, em respeito aos ditames da lei 12.318/10 e ao Princípio da proteção integral aos direitos das crianças e adolescentes, ainda mais quando estão passando pela dissolução da relação dos pais, é necessário observar que estes fatos negativos (e passados) da vida privada do casal, os quais vieram para os autos do Processo, verdadeiros ou não, exagerados ou não, ao talante do contador das estórias, são muitas vezes repassados aos filhos do casal, de modo a enlodar e conspurcar a imagem de um ou ambos os genitores, em conduta que pode ser entendida como sendo compatível com verdadeira tentativa de Alienação Parental, devendo ensejar a aplicação das penas previstas no supramencionado documento legal.