RESUMO
Assunto de relevância inegável, o debate a respeito da escravidão, marginalização e consequente discriminação da população negra brasileira é tema caro ao direito que tem ganhado notório destaque nos últimos tempos. Questiona-se o valor de iniciativas e políticas públicas que tratam da correção de injustiças históricas. Como toda matéria controversa há quem elogie, critique ou dê sugestões. Daí a importância e atualidade da obra escrita pela jornalista Giselda Laporta Nicolelis.
O livro “O Sol da Liberdade” possui aspecto singular, retratando a saga de oito gerações da família de um príncipe africano trazido ao Brasil em um navio negreiro. Por meio do olhar crítico da autora, o leitor observa o desenrolar de 160 anos da história do Brasil, desde 1825 até 1985. O presente ensaio, longe da pretensão de esgotar o assunto, aborda o direito à “liberdade” sob a perspectiva do romance histórico, relacionando-o com o ordenamento jurídico pátrio. Emprega-se a obra literária como meio para descortinar princípios e valores fundamentais, consolidados pela legislação e perenizados pelo atual texto constitucional brasileiro.
Palavras-chave: Liberdade; direito; obra; história.
ABSTRACT
Subject of undeniable importance, the debate on slavery, marginalization and consequent discrimination of black people, is subject close to the right that has gained notorious prominence in recent times. Questions the value of public initiatives and policies dealing with the correction of historical injustices. Like any controversial matter there are those who praise, criticize or give suggestions. Hence the importance and relevance of the work written by journalist Giselda Laporta Nicolelis.
The book "The Sun of Freedom" has unique aspect, depicting the saga of eight generations of the family of an African prince brought to Brazil on a slave ship. Through the critical eye of the author, the reader watches the course of 160 years of the history of Brazil, from 1825 until 1985.
This test is far from intending to exhaust the subject, addresses the right to "liberty" from the perspective of the historical novel, relating it to the Brazilian legal system. It employs the literary work as a means to uncover fundamental principles and values, consolidated by legislation and perennial by the current Brazilian Constitution.
Keywords: Freedom; law; work; history.
1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Se há uma questão aparentemente pacificada no mar das controvérsias do ordenamento jurídico brasileiro é o direito à liberdade. Consagrado pela Constituição Federal de 1988, trata-se de porto seguro, princípio solidamente estabelecido, por assim dizer.
Neto (2006, p.165), por exemplo, preleciona que “em sentido jurídico, liberdade suscita, em primeiro lugar, a ideia de ausência de obrigação de conduta ou, em termos mais rigorosos, ausência de uma norma jurídica que proíba ou ordene um determinado comportamento”.
Essa noção basilar norteia todas as interpretações legais sobre o tema. No entanto, apesar de tratar-se de preceito bem estabelecido, basta à leitura de obras como a de Nicolelis, objeto da presente dissertação, para ter-se a impressão de que há uma distância longa e tortuosa entre o que está posto pela doutrina e a conquista da liberdade (latu sensu).
Para se entender a complexidade da problemática em face ao tratamento dispensado aos mais diversos grupos sociais, torna-se válido atentar para o que diz o texto constitucional, parâmetro obrigatório para toda e qualquer interpretação legal. O artigo quinto da Carta Magna (1988) determina que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”.
Infelizmente, contudo, nem sempre foi assim. O advogado Romualdo Flávio Dropa rememora que “no Brasil Colônia, a base da economia e de sua riqueza estava no trabalho escravo”. Na opinião do autor, pesquisador em Direitos Humanos, ao longo da história brasileira, de todos os grupos excluídos os negros foram os que mais sofreram com o preconceito. Ele, lamentavelmente, está correto. Explica Dropa:
Com a abolição da escravatura, em 1888, o Estado Brasileiro deixou os negros à mercê da concorrência do mercado capitalista. Só depois de 100 anos do fim da escravidão, e mais de 400 anos de luta do povo negro, é que este Estado se propõe a pensar e elaborar políticas públicas para valorização dos descendentes de africanos escravizados no Brasil. (DROPA, Romualdo Flávio. Direitos humanos no Brasil: a questão negra. Disponível em<http://www.advogado.adv.br/artigos/2003/romualdoflaviodropa/direitoshumanosnegra.htm>. Acesso em 12 out. 2015)
Segundo o autor, apesar do negro ter alcançando a igualdade jurídica a partir da abolição, a desigualdade sócio-econômica com relação aos brancos se mantinha a mesma, e a ideologia de 400 anos de escravidão se mantinha forte, definindo a diferença entre os dois, sendo o negro eternamente visto como um indivíduo submisso e inferior aos brancos.
“Infelizmente, o passado escravista registrou no inconsciente coletivo a absurda noção da inferioridade do negro, criando-se um preconceito que se manifesta de diferentes formas”, acrescenta.
É, obviamente, uma observação pertinente. Servirá, portanto, como ponto de partida para nossa explanação sobre o tema.
2 – CONCEITOS
Por se tratar de tema complexo e de constante evolução histórica e jurídica torna-se tarefa árdua conceituar o direito à liberdade. Ruiz (2006, p. 137-150), por exemplo, afirma que “o homem por si mesmo é livre. A liberdade nasce juntamente com o ser humano, entretanto, são impostas restrições à liberdade do homem em razão de sua opção de conviver em sociedade”.
Trata-se de interpretação válida. Contudo, cabe pontuar algumas observações pertinenentes.
De modo simplista no primeiro momento pode-se afirmar, com base nos inúmeros registros, que ao longo da história humana a consolidação do indivíduo como partícipe do todo político, bem como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) significaram importantes conquistas no reconhecimento dos direitos individuais, de onde extraímos por consequência o princípio da liberdade.
No contexto desta observação podemos identificar em leis, tratados, discursos e em Constituições fatores que caracterizam tais documentos como liberais, igualitários, bem como variações derivadas destes termos. Sob este aspecto, a conquista de direitos, essencial para o convívio pacífico da sociedade, foi construída ao longo das últimas décadas.
Preleciona Gamba:
É necessário frisar [...] que a liberdade consiste, curiosamente, no fim último de todas as ideias de igualdade – e fraternidade [...]. O reforço e elaboração de um ordenamento baseado em deveres consiste na ideia de fazê-los caminhar ao lado – e não opostos – aos direitos, fazendo com que a liberdade, que é vista sempre em relação ao indivíduo, possa ser exercida por todos. (GAMBA, João Roberto Gorini. Direitos e deveres: uma aproximação para liberdade ou igualdade.Disponívelem:<http://revistasapereaude.org/SharedFiles/Download.aspx?pageid=145&mid=190&fileid=159>. Acesso em 12 out. 2015).
Para a construção de uma ordem jurídica adequada, deve-se prestigiar, portanto, em primeiro lugar, a liberdade. Como ensina Machado Segundo (2010, p. 1882-1895):
Não porque seja essa a vontade de Deus ou decorrência da natureza das coisas. Não por conta do lema da Revolução Francesa ou por ser a base dos direitos fundamentais ditos de primeira dimensão. A liberdade deve ser prestigiada por uma simples razão, que subjaz às duas últimas que foram apontadas: é o que caracteriza o homem enquanto tal, viabilizando a própria existência do direito, que sem ela seria impensável.
Que dizer então dos fatos elencados ao longo da obra de Nicolelis? Como justificar o tardio reconhecimento nacional a direito pétreo, inerente a um grupo étnico fundamental a construção social do Brasil?
Como citado, a relação jurídica que assegura a liberdade aos mais diversos segmentos sociais encontra-se atualmente bem estabelecida. Explicitá-la, no entanto, é tarefa necessária para apresentar de forma adequada as noções legais que fundamentam tal direito.
3 – JURISDIÇÃO
Quando se diz que do direito à liberdade decorrem os demais direitos toma-se por consideração um conceito amplo de liberdade. Ser livre não é apenas não ser impedido de fazer o que se deseja. Ser livre é, como já foi dito, ter a faculdade de vislumbrar possibilidades, fazer escolhas entre elas e promover sua concretização, tornando-as realidade.
Por outro lado, a liberdade tem como consequência direta a responsabilidade pelas escolhas livremente feitas. Assim, a preservação da igualdade, que visa a garantir a todos o exercício da liberdade, não pode ter como consequência a supressão da responsabilidade pelas escolhas livremente feitas por cada indivíduo. Essa é a finalidade maior de uma ordem jurídica, sua principal e essencial razão de ser.
A discrepância entre o que se preconiza nessa conclusão e a realidade verificada em diversos países, sobretudo no Brasil, não é motivo para que seja considerada improcedente ou equivocada. Pelo contrário. Talvez nenhum Estado no mundo tenha ordenamento jurídico fundado em um modelo ideal de Direito, decorrente da efetiva manifestação da vontade da maioria de seus cidadãos, todos livres e iguais. Umas estão mais próximas, outras mais distantes.
O jurista lusitano Miranda (2000. p. 53), por exemplo, ensina que “os direitos fundamentais, ou pelo menos os imediatamente conexos com a dignidade da pessoa humana, radicam no Direito natural”.
Equivale dizer que, os direitos fundamentais, dos quais o direito à liberdade é parte integrante, têm relações diretas ou indiretas com os direitos humanos à medida que são constituídos em decorrência daqueles.
Fácil, portanto, compreender a relevância atribuída aos mesmos pela Constituição Federal de 1988. Pelo texto constitucional, os direitos fundamentais em sentido material estão previstos no art. 5º, §2º, o qual reza que os direitos fundamentais que não são previstos na CF não são excluídos por aqueles que estão expressos em seu texto.
Estes direitos fundamentais básicos constituem o alicerce de todos os demais direitos consagrados nos incisos do art. 5º, nos artigos sequenciais do Título II, bem como nos demais dispositivos constitucionais.
Destarte pode-se afirmar que, em virtude do §2º do art. 5º, relativo aos direitos fundamentais não expressos, somente os direitos e garantias vinculados a um dos cinco direitos fundamentais básicos completam a classificação de direitos fundamentais, os demais direitos apenas são normas constitucionais.
Podemos concluir então, com base no exposto, que a liberdade é um direito fundamental básico por fruir do caput do art. 5º.
4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em vez de tão somente descrever de modo aleatório passagens da obra de Nicolelis responsáveis por retratar atos que afrontam o direito à liberdade, o que se pretendeu ao longo deste ensaio foi sugerir as bases que fundamentam o princípio constitucional.
Ao bem da verdade, qualquer ato que culmine na cessação da liberdade física do indivíduo, em especial a escravidão, dilacera e impõe sofrimento. Na obra da autora, passados 160 anos, percebe-se o sofrimento imposto a oito gerações pelo ato inicial de privar o personagem Ajahi da liberdade.
A prisão, como se sabe, não só encarcera o ser humano, mas cativa a sua alma. Seguindo esta seara, a liberdade deve ser interpretada como valor absoluto, somente podendo ser suprimida de qualquer ser humano em “ultima ratio”, devendo sempre serem observados os princípios garantistas consignados na Lei Maior e a posição de estirpe em que se encontra a liberdade frente ao Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 25 out. 2016.
DROPA, Romualdo Flávio. Direitos humanos no Brasil: a questão negra. Disponível em<http://www.advogado.adv.br/artigos/2003/romualdoflaviodropa/direitoshumanosnegra.htm>. Acesso em 12 out. 2015.
GAMBA, João Roberto Gorini. Direitos e deveres: uma aproximação para liberdade
ou igualdade. Disponível em <http://revistasapereaude.org/SharedFiles/Download.aspx?pageid=145&mid=190&fileid=159>. Acesso em 12 out. 2015.
MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do direito. São Paulo: Atlas, p. 1882-1895, 2010.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3 ed. tomo. IV. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 53.
NETO, João dos Passos Martins. Noções preliminares de uma teoria jurídica das liberdades. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, v. 27, n. 53, p. 163-172, 2006.
NICOLELIS, Giselda Laporta. O sol da liberdade. São Paulo: Atual Editora, 1996.
RUIZ, Thiago. O direito à liberdade: uma visão sobre a perspectiva dos direitos fundamentais. Revista do Direito Público, v. 1, n. 2, p. 137-150, 2006.
[1] Jornalista, Pesquisador Jurídico, Graduando do curso de Direito da Multivix de Cachoeiro de Itapemirim, wellington.cacemiro@gmail.com;