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O recolhimento ao cárcere como condição objetiva de admissibilidade da apelação

Agenda 12/06/2004 às 00:00

Na prática judiciária, o uso de expressões chavões em sentenças condenatórias como "nego o direito do réu apelar em liberdade" e a própria forma de abordagem do assunto pela jurisprudência, a qual costumeiramente decide o tema da desnecessidade do recolhimento ao cárcere para que a apelação seja conhecida junto com a necessidade ou não da custódia cautelar, resulta em uma verdadeira confusão e simbiose entre dois institutos absolutamente diferentes: a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e o recolhimento ao cárcere (ou sua mantença neste) como requisito objetivo de admissibilidade da apelação. Como resultado desta mistura, não é o tema do recolhimento ao cárcere como requisito para julgamento da apelação criminal tratado da forma que realmente necessita.

Para que possamos analisar o problema proposto, sugerimos primeiro a distinção destes dois institutos.

Do ponto de vista meramente normativo, o primeiro instituto, possibilidade de decretação da prisão no momento da sentença, é tratado no inciso I, do artigo 393 do CPP, já o segundo, recolhimento ou mantença na prisão como condição de admissibilidade da apelação, é tratado nos artigos 594 e 595 do CPP, do mesmo estatuto.

Quanto à natureza jurídica dos institutos, o primeiro é modalidade de prisão provisória, posto que antes do trânsito em julgado da sentença condenatória proferida. Registre-se a controvérsia sobre se esta modalidade de prisão tem natureza cautelar ou se consiste em mero efeito da sentença, condicionado ao fato do acusado não preencher os requisitos elencados no dispositivo legal respectivo (primariedade ou bons antecedentes), mas para não fugir-se a atenção ao foco do assunto abordado, apenas faz-se o registro. O segundo instituto consiste em requisito objetivo de admissibilidade da apelação, funcionando o primeiro como fato impeditivo do direito de recorrer (não recolher-se à prisão) e o segundo (evadir-se)., como fato extintito do direito de recorrer-se da sentença.

Feita esta pequena e necessária introdução, passamos ao núcleo do tema, a análise deste requisito objetivo de admissibilidade da apelação criminal, buscando demonstrar que a mesma é incompatível com a atual Constituição da República, não tendo sido assim recepcionada, e, ainda que não o fosse, encontra-se revogada.

Antes disto, é importante fazer-se uma análise histórica deste instituto. Negar-se o direito de um réu apelar de uma sentença não é mais nada do que um resquício medieval em nossa legislação, que tem como única explicação o fato da inércia do legislador e da falta de debate e espírito de evolução normativa de nossa nação, aliado ao fato de que o CPP vigente na verdade foi importado para nosso ordenamento jurídico em plena época da ditadura do Estado Novo, sob a influência do Código de Processo Pena italiano, este, estatuto processual penal de contorno absolutamente fascista.

Tal digressão histórica tem especial importância quando se tem atualmente uma Constituição da República, democrática e baseada em valores realmente essenciais e dignos, elaborada sob olhos e anseios absolutamente diversos daqueles que, inspiraram o legislador do CPP de 1940.

Trazendo mais uma dado histórico, verifica-se que o CPPM (Código de Processo Militar) não traz em nenhum de seus dispositivo institutos semelhantes, ou seja, no Processo Penal Militar não se tem como requisito para recorrer o recolhimento à prisão ou a mantença do acusado nesta. É sabido que o CPPM é posterior ao CPP, e, não apenas neste ponto mas em outros é explicativo daquele ou mesmo traz progressos, como o que ora se aponta.

Assim, deve-se perguntar, por que manter-se a aplicação deste instituto. A esta pergunta pedimos vênia para respondermos de duas formas. A primeira dá-se pela não aprovação ainda da chamada reforma do Código de Processo Penal, já que neste, que traz uma nova parte acerca dos recursos, não traz mais esta modalidade de requisito de admissibilidade recursal. Mas, pior que a paralisia legislativa, é, pedindo-se vênia, a paralisia intelectual e principalmente questionadora que nos cerca e nos faz aceitar determinados institutos impostos com base em outras ideologias e até noções de humanidade, razoabilidade e justiça, sem em momento algum indaguemos se estes tem uma razão realmente legítima, jurídica e humana para existir.

Sugere-se a seguir dois casos hipotéticos, mas de possível concretização em um processo criminal, em que se a utilização dos institutos em debate irão gerar situações de extrema injustiça e ilegalidade.

Imagine-se dois réus que, em co-autoria, respondem a mesma acusação baseada na imputação de fatos idênticos. Um destes réus encontra-se recolhido no cárcere, enquanto o outro encontra-se foragido. Aplicando-se a norma do artigo 594 ou a do artigo 595 do CPP, o recurso defensivo de apelação interposto pelo acusado foragido não é recebido ou é julgado deserto, enquanto o interposto pelo réu preso é analisado e provido, sendo, na hipótese sugerida, revista a prova produzida e decretada a absolvição deste.

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É inegável que a injustiça praticada em relação ao primeiro réu, foragido, é insustentável à luz dos direitos mais básicos e fundamentais tutelados pela nossa Constituição. Não há fundamento legal, ou constitucional, que possa justificar a mantença de um decreto condenatório a uma pessoa inocente, e mais, cuja inocência fora comprovada e extraída como conclusão de todo um processo judicial, e a qual não poderá ser mais discutida em nenhuma hipótese, dada a garantia da coisa julgada material, a qual em processo penal, sendo pro reo, é absoluta

Imagine-se agora outra situação.

Um réu que tenha encontrando-se foragido, e que, tendo diante de si uma sentença condenatória maculada de vício pretende discutir o julgado. Todavia, ocorre que se o mesmo buscar a revisão da sentença através da apelação, aplicando-se os artigos em comento, não logrará êxito, já que estaria ao Tribunal vedado seu conhecimento. Entretanto, para a proposição da ação de revisão criminal, para a qual não se mostra necessário o recolhimento ao cárcere, estaria a via aberta, bastando a este réu aguardar o trânsito em julgado da sentença condenatória, quando passaria do status de inocente para culpado.

O fato é que não se busca dizer que seja correto o acusado esquivar-se ao comando estatal que lhe impõe a pena privativa de sua liberdade, todavia, o que não se pode admitir é que o Estado negue, impeça, cerceie o direito do acusado à revisão de sua condenação através da apelação, o que por vezes pode até tornar eventual injustiça definitiva, já que a rigor para a revisão criminal seria necessário algum fato novo.

Tal discussão poderia até ser evitada com a simples aplicação da legislação infraconstitucional vigente em nosso País.

A letra "h", do artigo 8º do decreto 678/92, Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos ao nosso ordenamento jurídico.), prevê como direito mínimo e fundamental a ser assegurado a todo aquele que se vê acusado em Processo Penal o duplo grau de jurisdição.

Ainda que se tenha como correta a orientação jurisprudencial predominante hoje no STF quanto a natureza infraconstitucional das normas oriundas de tratados internacionais (com a qual não se concorda quando a norma oriunda de tratado internacional tem status de direito ou garantia fundamental e assim resguardada pelo d 2º do artigo 5º), ou mesmo que a imposição de um duplo grau de jurisdição no Processo Penal não pode subsistir nos casos em que a própria Constituição prevê os foros por prerrogativa de função, o fato é que para os "acusados em geral", como são chamados pelo CPP todos aqueles que respondem a um processo penal em Juiz singular, o fato é que não há como não aplicar uma Lei infraconstitucional em vigor, no caso, o pacto de San José da Costa Rica.

Além disto, e mais importante, é que como já sustentado acima, negar-se o direito ao réu a revisão de sua condenação por apelação é negar o direito fundamental à ampla defesa, e, pior, aceitar que alguém em um Estado Democrático de Direito seja condenado e privado de sua liberdade por uma sentença injusta.

Assim, é posta à discussão a presente questão, buscando com isto uma imprescindível evolução humana do Processo Penal, fazendo com que o mesmo possa atingir suas finalidades, garantir a punição dos culpados, mas também a inocência dos outros, para que não passem da condição de injustamente acusados para a de verdadeiras vítimas de uma injustiça e violência cometidas pelo próprio Estado.

Sobre o autor
Guilherme Celidonio

defensor público do Estado do Rio de Janeiro (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CELIDONIO, Guilherme. O recolhimento ao cárcere como condição objetiva de admissibilidade da apelação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 340, 12 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5331. Acesso em: 5 nov. 2024.

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