A obra "O Direito na Grécia" é parte integrante da coleção "História da Cultura Jurídica" que conta também com o volume "O Direito em Roma". Com demasiada eloquência e sabedoria, os autores exploram as questões mais contumazes do direito na Grécia Antiga. O livro é dividido em doze capítulos que explicitam os cinco períodos da civilização grega pré-cristã, quais sejam: período pré-homérico, homérico, arcaico, clássico e helenístico. Os autores, pesquisadores na área jurídica, Oleney Queiroz Assis, advogado e professor doutor em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Vitor Frederico Kümpel, magistrado e professor doutor em direito; e Ana Elisa Spaolonzi, bacharel em direito e pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Ao conservar a evolução cronológica dos acontecimentos históricos, os autores analisam temas relacionados à formação familiar, social, econômica, política e religiosa, com o propósito de estabelecer um paralelo entre o direito e valores na sociedade antiga e moderna.
O direito, como é aceito na sociedade hodierna ocidental, tem como leito primordial a Grécia Antiga. A própria organização que se dá atualmente à ciência jurídica, área penal, área civil e área pública, já era discutida entre os gregos. A tripartição dos poderes, teorizada por Montesquieu em O espírito das leis, teve sua gênese no pensamento aristotélico e, de forma incipiente, também era aplicada na antiguidade. Diversos princípios do estado moderno, tais como: a democracia, a igualdade e a liberdade foram desenvolvidos de forma acurada pelos gregos. Não obstante, ao avesso do ordenamento romano, cujo direito foi em grande parte positivado – tendo como exemplo máximo o Corpus Iuris Civilis do imperados Justinianus, o qual serviu de base para o código napoleônico e, consequentemente, para o Código Civil de Beviláqua –, são inúmeras as normas que deixaram de ser costume na Grécia. Por este motivo, como alertam os autores, grande parte do ordenamento jurídico grego se perdeu. Além disso, eles não contavam com um direito unitário – como ocorria no Império Romano –, cada pólis – a cidade-estado – era autônoma juridicamente. A existência de diversos direitos foi outro fator que gerou a miscigenação de sua cultura jurídica.
O período pré-homérico foi marcado pela invasão dos povos indo-europeus e pela formação da civilização micênica. Apesar de ainda não existir a formação de um Estado organizado, as famílias mais poderosas das tribos já haviam formado uma realeza dominante, a qual se denomina sistema palaciano. Até este período, o direito era baseado nos valores religiosos, entretanto, o rei tinha legitimidade para criar multas e castigos. Este sistema oligárquico foi interrompido com as invasões dóricas no século XII. O fim do sistema palaciano tirou o poder da elite e fortaleceu as famílias aldeãs.
Até esse período, a propriedade era coletiva e as tribos se dividiam em grandes famílias, exercendo atividades agropastoris. Contudo, o início do período homérico é caracterizado pelo crescimento das famílias, cuja consequência foi o esfacelamento da propriedade coletiva. Com a divisão das terras, nasceu o direito de propriedade, porém, algumas famílias ficaram com as terras mais férteis. Com isto, ocorreu um demasiado enriquecimento de algumas famílias e, consequentemente, o empobrecimento de outras. O aumento demográfico fez com que algumas famílias crescessem de tal forma que não conseguiam mais tirar seu sustento pela exploração de suas terras. É neste momento que se inicia a servidão por dívida, a escravidão e o surgimento de uma camada social miserável. Mesmo assim, ainda havia nesta época os princípios de parentesco e solidariedade, pilares da cultura grega até então, onde o altruísmo entre os membros familiares era fundamental.
Mesmo se utilizando de escravos e servos, as famílias aristocratas ainda realizavam o trabalho braçal no cultivo das colheitas e no tratamento dos animais. O trabalho manual era visto como atividade digna, por isto, nobres, aristocratas e escravos se ajudavam e se dividiam nas tarefas. Somente com o início do período arcaico que esta situação mudou. A população continuou aumentando, as tribos se aglutinaram e nasceram as cidades – pólis –, com isto, aumentou-se também a miséria – máxime nas pólis maiores – e a oferta de escravos e servos. Com tanta mão de obra disponível, os aristocratas passaram a apenas administrar seus bens e a se dedicar a atividades intelectuais. Surge a filosofia e o culto à razão, concomitantemente, se malfada o trabalho braçal e aumentam as desigualdades.
O aumento demográfico tornou as cidades gregas sociedades complexas, o direito homérico era ilimitado e incapaz de abranger os novos fatos jurídicos. Dentre as inovações jurídicas, ressalta-se a consagração da propriedade privada, que até então não era bem compreendida, juntamente a ela, a desigualdade social marca o período arcaico. Também surgiram novos princípios no direito, que de certa forma dão lugar ao parentesco e a solidariedade: a represália, princípio nefasto que perdurou até o início da modernidade, o qual consistia em se vingar do criminoso – correspondente à lei de Talião –; e a reciprocidade, que ainda se encontra viva no direito civil atual, corresponde a indenização paga por aquele que devassa o direito de alguém. O próprio conceito de liberdade era bastante distinto do moderno. Para os gregos, livre era o cidadão, aquele que nascia na cidade. Sendo atrelada ao cidadão, a liberdade designava evidentemente a subordinação às leis da pólis. O escravo, por seu turno, não era considerado uma pessoa, mas, sim, uma ‘mercadoria’ – res.
O direito tradicional que outrora se fundamentava na religião doméstica, a partir da vontade dos ancestrais e dos deuses, passou a ser questionado. As leis que surgiam começaram a beneficiar apenas as famílias aristocratas, como, em título de exemplo, a norma que regulava a propriedade: enquanto as terras férteis das famílias abastadas não podiam ser alienadas, as outras propriedades podiam ser incorporadas às destas famílias e seus membros poderiam virar servos por dívida. As leis relativas à dívida também eram extremamente severas e nefastas. As inovações jurídicas trouxeram mais poder à aristocracia e à nobreza, e mais inópia aos desviantes miseráveis. Havia ainda uma hierarquia entre as famílias aristocratas, sendo que as mais poderosas ocupavam a chefia das cidades, o poder real.
A introdução da economia monetária e a expansão marítima e a mercantil resultou em uma crise sem precedentes nas pólis gregas. A moeda possibilitou o surgimento dos empréstimos e da usura, fato que agravou a pobreza, em contrapartida, favoreceu o florescimento de uma nova camada social emergente. Esta nova classe, a despeito de possuir poder econômico, não representava influência política. Eles passaram a influenciar o povo na tentativa de reconstruir a ideologia política e social. Ainda neste momento, com o poder dracônico em vigor, surgem novas leis escritas e a ideia de diminuir o poder político da aristocracia. Então, promulgou-se a primeira codificação draconiana, o direito grego perdeu efetivamente seu caráter tradicional e religioso – agora as leis favoreciam à cidade e não aos deuses.
Se Drácon inovou o cenário jurídico, maiores ainda foram as transformações trazidas por Sólon. Ele foi responsável pela reorganização social, político-administrativa e jurídica. Ressalta-se, entre as mudanças, a proibição da escravidão por dívida e a devolução das terras tomadas pelos aristocratas, o que representou um grande salto rumo a um direito mais igualitário. Com efeito, destaca-se que, até aqui, não se pode falar em efetiva igualdade nas reformas de Sólon. Uma vez que não houve reforma agrária e os poderes políticos continuaram a ser influenciados pela posse de bens. Por este motivo, suas reformas não agradaram a ninguém, pois a aristocracia perdeu bens e poder, enquanto que, das reivindicações populares, pouquíssimas foram atendidas.
Na tentativa de reconquistar seus direitos, os aristocratas lideraram uma campanha que acabou por instaurar um período de tirania governamental. Os autores apresentam uma análise, realizada por Foucault, bastante intrigante entre a tirania grega e a personagem edípica das obras de Sófocles. Segundo o filósofo francês: “Édipo representa o protótipo do tirano grego, do final do século VI, que contrapõe o seu direito ao direito dos cidadãos” (p. 120). Não obstante, a personagem Antígona representa justamente a negação à tirania e a luta pela justiça divina.
Sucessor de Sólon, Clístenes somente conseguiu derrotar a oposição política e conquistar o governo mediante a aliança com as castas inferiores. Neste sentido, o período Clássico foi palco de diversas reformas administrativas – quais sejam: criação do Conselho dos Quinhentos e implementação da Assembleia do Povo. Este foi um momento de grande epifania popular, uma vez que, após um longo período de oligarquias tirânicas, os gregos puderam experimentar a democracia. A nova constituição clistênica considerava todos os homens cidadãos, independente de seu estrato social, considerando-os ativos na vida política da cidade. Obviamente, o beneplácito constituinte não atingia todos os indivíduos da sociedade, mesmo durante o ápice da democracia grega, a xenofobia persistiu na exclusão dos estrangeiros, a cultura misógina continuou por desamparar as mulheres e os escravos permaneceram sendo meras mercadorias. Além das conquistas de liberdade, este período foi cenário de grande efervescência intelectual – destacam-se os três gênios da filosofia clássica: Sócrates, Platão e Aristóteles. Não obstante, infelizmente, a democracia durou pouco. Em detrimento da Guerra do Peloponeso, o que culminou com a morte de Péricles, os sucessores do governo não deram continuidade à ideologia democrática.
O período helenístico foi caracterizado pela estagnação generalizada. Os ocorridos bélicos enfraqueceram a economia e a exploração agropastoril foi arruinada, o que impossibilitou o comércio com outros territórios. O cenário político era igualmente conflituoso, as pólis estavam tão enfraquecidas que não era possível determinar quem poderia assumir a liderança grega. Alguns governantes ainda conseguiram se aproveitar da balbúrdia para se posicionarem no poder. Todavia, mesmo com a união das cidades, novas guerras iniciadas deram um desfecho trágico a este povo. A Grécia foi dividida entre os generais inimigos e os territórios foram anexados ao reino da Macedônia.
A ideia de um direito natural se teoriza primordialmente durante o período clássico. Contudo, é no seguinte momento, com os estoicos, que ele é tratado de forma mais ampla. Segundo eles, o direito natural liga-se à reflexão dos filósofos no sentido de construir uma compreensão universal para o fenômeno jurídico. É este entendimento de razão vital que dá ao direito natural um caráter evidentemente religioso. A própria utopia de promoção da harmonia e do amor entre os homens é evidência cabal da influência axiológica direta da religião. Aspectos que influenciaram mais ainda o direito com o advento dos novos sentimentos cristãos por toda a Idade Média.
No decorrer deste trabalho pôde-se perceber os demasiados traços em comum entre o direito grego e o hodierno, o que efetivamente prova a influência da cultura do povo grego, que parece ainda tão viva para o homem moderno, mesmo após dois milênios de distância. Neste diapasão, o estudo do passado deve ser ao mesmo tempo crítico e livre de qualquer etnocentrismo. Não se deve subjugar uma sociedade por seus erros e infortúnios. Se outrora os gregos levaram o homem ao extremo de sua indignidade animalesca – por meio da escravidão, da guerra e da misoginia –, foi este mesmo povo hábil o suficiente para criar os baldrames das ideologias que hoje são consideradas as mais inovadoras nos diversos campos da ciência. O entendimento da história jurídica – que a priori pode parecer irrelevante – é, in summa, a compreensão dos próprios conflitos presentes e quiçá a única ferramenta para se refletir o amanhã. Destarte, pela demasiada eloquência no desenvolvimento das críticas e reflexões, esta obra se torna imprescindível ao estudante de direito.