INTRODUÇÃO
O presente artigo é parte das produções do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, e tem por objetivo apontar, de forma introdutória, alguns aspectos relevantes à discussão da retomada das raízes históricas do Ensino Jurídico. No que se refere ao método de pesquisa, o artigo contará com a busca bibliográfica e a revisão de literatura, onde se destacam as contribuições de José Antonio Tobias, por meio da obra História da Educação Brasileira, e Horácio Wanderlei Rodrigues, em seu trabalho Ensino jurídico para que(m)?. Destarte, a pergunta que dá baldrame ao artigo pode ser, de tal modo, formulada: com base no atual cenário da educação no Ensino Jurídico do Brasil, como é possível pensar na retomada de suas raízes históricas?
Como relembram Adaid e Mendonça (2012), a educação pode ser averiguada como um dos aspectos que mais diferencia a humanidade da selvajaria animalesca. É possível a educação como o meio pelo qual o homem apreende noções comuns e inerentes às peculiaridades de seu grupo social. Ademais, os autores ainda, na busca por estabelecer um conceito com base nas mais arcaicas bases etimológicas, cita que o próprio radical do vernáculo educação já é tautológico, dado que descende do verbo latino educere, o qual pode ser traduzido pela ideia de conduzir para fora, fazer sair, intimar, produzir, exaltar, elevar ou criar. A etimologia sugere, desta feita, o caráter emancipatório e transformador do processo educativo. Destarte, de acordo com o primeiro caráter, há semelhança à entidade jurídica, uma vez que torna o indivíduo apto para desempenhar determinada função, de forma que, assim como o processo emancipatório possibilita (possibilita?) ao menor de idade atuar civilmente como se maior fosse, a educação emancipatória prepara o educando à prática das atividades vitais, através do desenvolvimento de sua habilidade crítica, reflexiva e consciência social. De outra banda, em relação ao segundo caráter, no sentido nietzscheano de transformação, dentre as práticas pedagógicas, a transformação causada pela educação pode ser entendida como os processos de aprimoramento passados pelos educandos na aprendizagem. Assim, não obsta ressaltar a diferença apontada por Biesta (2013) a respeito da diferença entre aprendizagem e educação:
“uma das mudanças mais notáveis que ocorreram na teoria e prática da educação nas últimas duas décadas foi a ascensão do conceito de aprendizagem e o subsequente declínio do conceito de educação. Ensinar foi redefinido como apoiar ou facilitar a aprendizagem, assim como educação agora é frequentemente descrita como propiciadora de oportunidades ou experiências de aprendizagem. Alunos e estudantes se tornaram aprendentes, e a educação adulta se te tornou aprendizagem adulta” (p. 32).
Sendo assim, pode-se entender a aprendizagem como processo da educação, inclusive, num sentido psicológico, poder-se-ia ainda afirmar que a aprendizagem se refere a um fenômeno cognitivo, ao turno que a educação se torna seu propósito. Por outro lado, não obsta ressaltar que tampouco poderia se olvidar da diferenciação entre o sentido de educação e ensino. Neste sentido, tanto Biesta (2013) quanto Teixeira (In DEWEY, 1964) concordam que há concisa diferença entre o significado de ensino e educação: enquanto aquele representa um aspecto mais específico, remetendo ao processo moderno e institucionalizado, este é mais genérico e abrange todos os processos de aprendizagem. Em suma, seja qual for a perspectiva que se esteja usando, o conceito de educação sempre remeterá a um sentido mais abrangente, mormente em relação à ideia de ensino. Desta feita, é possível concluir que a expressão Educação Jurídica é deveras mais extensa, enquanto que a expressão Ensino Jurídico, normalmente, se restringiria em específico às academias – visto que, no caso do Brasil, seu ensino ainda se restringe à graduação e à pós-graduação.
Em relação aos aspectos históricos da educação, como retomam Assis, Kümpel e Spaolonzi (2010), na obra História da cultura jurídica, não há óbice em ressaltar que durante o período Arcaico do Grécia Antiga, o trabalho braçal era visto como o único caminho para se alcançar a virtude. Segundo a mitologia grega, o próprio Ulisses – rei de Ítaca – gabava-se ao dizer que colhia mais rápido do que qualquer um de seus escravos. Não obstante, com o aumento da densidade demográfica, os donos das terras mais férteis passaram a adquirir mais escravos. A abundância de mão-de-obra fez com que os senhores se tornassem cada vez mais ociosos, deixando o trabalho prático para os escravos. Os aristocratas e a nobreza passaram a não mais admirar o trabalho braçal como virtuoso, levando sua atenção para o conhecimento das Artes e da Filosofia, que dava seus primeiros passos, este fenômeno foi o início do que futuramente daria início à instituição escolar como se conhece hodiernamente.
Ainda em conformidade com Adaid e Mendonça (2012), foi durante este momento que surgem duas instituições de ensino absolutamente distintas em seu propósito, quais sejam, a oficina, destinada aos filhos dos escravos, dos servos e dos trabalhadores artesãos e a escola livresca, destinada aos futuros donos de terras. Este modelo educacional estratificado, ou seja, a educação servil e senhoril, foi bastante eficiente durante o período clássico e perdurou por toda a Idade Média. Os servos recebiam a educação técnica formal nas oficinas, onde tinham contato com o saber tecnológico, meramente voltado para o trabalho. Nesta sociedade estratificada não havia muita possibilidade de escolha, nem opções disponíveis, o trabalho era sempre de força brutal, as únicas exceções eram os artistas e os comerciantes. Os servos e os burgueses medievais, em geral, aprendiam o ofício pelo qual suas famílias estavam ligadas e o exerciam pelo resto de suas vidas. Este saber técnico, como prosseguem os autores, pertinente à atividade servil, era absolutamente desnecessário tanto aos pontífices e aristocratas antigos, quanto aos clérigos, nobres e senhores feudais medievais. Por pertencerem a uma sociedade de estratificação imutável, a elite jamais exerceria qualquer atividade relativa ao escravismo. Então, para ela restava o ensino das Artes, da Matemática, da Física e da Filosofia. Estas categorias de conhecimento teórico eram muito apropriadas para eles, uma vez que passariam o resto de suas vidas dedicando-se exclusivamente à religião, à governança, à administração de suas terras ou à atividade bélica.
Embora demasiadamente superficial, no que se refere ao estudo da historiografia, intersectando doravante o período Moderno, com o alvorecer do movimento Iluminista e o legado da Revolução Francesa, é possível observar uma profunda dicotomia entre educação proletária e elitista cada vez mais anacrônica. Conforme demonstram Adaid e Mendonça (2012), o avanço tecnológico exigiu da classe trabalhadora um conhecimento cada vez mais aprofundado e as escolas de ofício da Idade Média não atendiam mais à demanda do mercado. Os proletários deveriam especializar-se cada vez mais para conseguir manusear as máquinas cada vez mais modernas e o analfabetismo passou a ser cada vez mais inaceitável ao exercício profissional. Além disto, o aumento populacional do último século, jugado à entrada da mulher no mercado de trabalho e os novos maquinários – que substituíam cada vez mais a mão de obra humana –, fizeram aumentar demasiadamente a oferta de trabalhadores. Dentro da massa de desempregados, o proletário necessitava implementar suas habilidades e conhecimentos para conseguir um emprego ou mesmo ser promovido. A contemporaneidade, por conseguinte, trouxe uma nova significação à ideia de melhoria educacional, uma vez que, cada vez mais, confunde-se democratização com fomento no sistema educacional. Neste sentido, ainda em relação aos autores, democratizar a educação equivale a dizer que o Estado deve proporcionar formas igualitárias de acesso a ela. Facilitando não só o ingresso do indivíduo na escola, como também sua continuidade. Além disso, a democratização é apontada, muitas vezes, como a única forma de tornar os indivíduos intelectualmente capacitados para serem cidadãos conscientes e, consequentemente, a solução para o desenvolvimento do país.
DISCUSSÃO
Embora pouco se tenha comentado, o projeto de criação do ensino superior no Brasil é tão antigo quanto seu descobrimento. Foi ainda durante o período jesuítico que se cogitou a criação de uma Universidade na colônia. Os próprios jesuítas que aqui ministravam seus cursos filosóficos e teológicos defendiam a importância do curso superior e, inclusive, argumentavam que havia estrutura física e potência pedagógica para tal feito. O Colégio da Bahia era o mais proeminente a receber o título de Universidade visto que, oficialmente o primeiro colégio brasileiro, era considerado o mais conceituado da colônia no preparo para o ensino superior europeu. Segundo Tobias (1972), em 1572, nele se iniciou também o primeiro Curso de Artes, em 1575, a Coroa Portuguesa lhe conferiu os primeiros graus de bacharel em Artes da América Portuguesa e, em 1578, atribuiu-se as primeiras láureas de Mestre em Artes. Este seria o primeiro passo para o Colégio da Bahia se erguer ao patamar universitário, segundo os padrões de Coimbra. Contudo, ainda segundo o autor:
Em carta de 26 de janeiro de 1583, Padre Miguel Garcia, receoso de que se elevasse o Colégio da Bahia à Universidade, comunicou suas apreensões a Roma. Em 1592, reunindo-se a Congregação Provicial perguntou-se a Roma se era lícito promover tanto os externos ao grau português de Filosofia e Teologia, acompanhando essa pergunta uma carta de Padre Marçal Beliarte, Porvincial do Brasil, onde este falava que, no ano de 1592, 19 estudantes concluíram o curso como era possível em qualquer boa Universidade. A resposta foi negativa, apagando-se, deste modo, a chama do nascimento da primeira Universidade Brasileira que, na realidade existencial dos fatos, chegou a ser acesa a brilhar por algum tempo, sem a devida chancela legal (TOBIAS, 1972, p. 59).
Os externos, em referência aos colonos portugueses e silvícolas, eram, pois, reflexo do mais profundo sentimento de etnocentrismo metropolitano disseminado na época. O que evidencia não apenas a repulsa pelas habitantes do novo mundo, mas o medo de seu desenvolvimento e autonomia, além do ranço de que, a despeito de todas as adversidades ambientais e tecnológicas, a famigerada colônia havia conseguido erguer um colégio que não apenas se tornara referência nas terras selvagens, mas que, de certa forma, concorria com os colégios portugueses, na medida em que tornava os estudantes colonos tão bem preparados para cursar em Coimbra quanto os estudantes portugueses. Assim, embora na prática o Colégio da Bahia tenha formado excelentes bacharéis e mestres nos cursos de Artes e gozasse de plena capacidade para ministrar cursos de Filosofia e Teologia, sem o beneplácito d'El-Rei, legalmente os egressos não se equiparavam aos formados coimbrenses.
Ressalta-se, porém, em referência a Tobias (1972), que a Colégio da Bahia não foi a única tentativa da criação do ensino superior no Brasil antes da vinda da Família Real. Em 1637 o Conde Maurício de Nassau tentou a criação de uma Universidade em Pernambuco. Em 1789 surgiu outro projeto, também baseado no modelo de Coimbra, na cidade de Vila Rica, capital da Província de Minas Gerais. Em 1816, já com o estabelecimento da realeza, tentou-se criar a Universidade do Brasil, utilizando-se da estrutura do Instituto Acadêmico na cidade do Rio de Janeiro. Contudo, foi apenas em 1823 que se deu, oficialmente, a primeira escola superior, com os cursos jurídicos de São Paulo e Olinda.
É irônico imaginar que enquanto a Europa já caminhava para a Belle Époque, o Brasil ainda não tinha formado seu primeiro bacharel – legalmente reconhecido pela Corte Portuguesa. Neste diapasão, assevera Rodrigues (2000) que, possivelmente Portugal mantinha um bloqueio ao ensino superior na colônia, assim, não era possível se produzir uma cultura própria, bem como desenvolver qualquer conhecimento científico e filosófico. O retardo educacional no Brasil é tão evidente que se podem apresentar exemplos ululantes, ao ser comparado com outros países latinos, citam-se: em 1553 foi inaugurada a Universidade do México; a Universidade de São Marcos em 1551 no Peru; e Córdoba na Argentina em 1613.
De fato, o retardo no ensino superior se prorrogou até o século XIX, quando o ataque napoleônico forçou a vinda da Família Real ao Brasil, surgindo, então, a necessidade da implementação de cursos superiores. Até então, era usual – e, inclusive, constituía fálica demonstração de poder – que os filhos das famílias abastadas fossem estudar fora do país. Os primeiros intelectuais brasileiros, então, cruzaram o Atlântico com o objetivo de obter sua formação acadêmica nas tradicionais Universidades da Europa, principalmente na França ou em Portugal, sendo que o mais comum era o ingresso na Universidade de Coimbra. Todavia, mesmo com o advento da presença real nas terras brasileira a partir de 1808, o surgimento dos primeiros cursos só ocorreram uma década depois, como reflexo direto da Independência.
Com advento da Independência, num processo político que durou até 1822, decidiu-se pela implantação de cursos superiores no Brasil, na garantia de que os filhos da elite não precisassem se submeter às extenuantes navegações transatlânticas para estudar no exterior. Entretanto, de acordo com Rudnicki (2008), além da comodidade aos descendentes da aristocracia, havia um motivo político que envolvia a necessidade do investimento na educação superior: a preocupação de um possível confronto entre Portugal e Brasil – doravante Estado independente. De acordo com Bittar (2006), a abertura dos cursos jurídicos no Brasil não foi uma decisão inocente e desenraizada de pretensões ideológicas muito bem determinadas. É possível cogitar que tenha sido uma necessidade política do Império frente à crise bélica e econômica portuguesa. Fez-se necessário, então, a criação de uma elite puramente nacional, na tentativa de uma composição intelectual, burocrática e dominante. Foi então que, a visar a autonomia intelectual da elite brasileira, foram criados dois projetos para cursos superiores jurídicos, um na próspera cidade de Olinda, a mais rica e desenvolvida, e outro na pobre e chuvosa cidade de São Paulo, que embora pouco desenvolvida e habitada, era centralizada entre as grandes fazendas de café da região e seria muito útil para as famílias ricas que ali viviam.
Por obra do Visconde de São Leopoldo, paulista de nascimento, uma das cidades escolhidas para sediar os cursos jurídicos foi a justamente pobre São Paulo de então. Aponta-se inclusive, que o argumento usado pelo Visconde foi a necessidade de se recompensar a província que primeiramente apoiara a independência nacional (HIRONAKA, 2008, p. 15).
Mais de trezentos anos depois de sua descoberta europeia, e após tantas outras tentativas frustradas, nasce no Brasil a educação superior com a criação de dois cursos jurídicos, em agosto de 1827, outorgada por Vossa Majestade Real Dom Pedro I. Segundo a mesma crítica de Rudnicki a respeito dos motivos políticos para a criação dos cursos superiores no Brasil, Tobias (1972), assevera que dando continuidade aos projetos de São Paulo e Olinda, diversos outros cursos superiores surgiram, não apenas visando o Ensino Jurídico, mas de Medicina, Artes, Filosofia, Letras, Teologia, Física e Matemática.
Dom Pedro Primeiro, por Graça de Deus e unanime acclamação dos povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os nossos subditos que a Assembléia Geral decretou, e nós queremos a Lei seguinte:
Art. 1º – Crear-se-ão dous Cursos de sciencias jurídicas e sociais, um na cidade de S. Paulo, e outro na de Olinda; (…) Art. 9º - Os que freqüentarem os cinco annos de qualquer dos Cursos, com approvação, conseguirão o gráo de Bachareis formados. Haverá tambem o grào de Doutor, que será conferido áquelles que se habilitarem som os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e sò os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes (BRASIL, 1827, sic).
De modo que, além de a lei determinar os regulamentos para se tornar professor universitário – denominado Lentes –, apresentava os quais requisitos para receber o título de Doutor, requisitos os quais estavam relacionados à apresentação de uma tese, ao final do curso, e que lhe conferira também a possibilidade de se tornar docente. O estatuto a que se refere o texto é o Estatuto para um Curso Jurídico – mais conhecido por Estatuto do Visconde de Cachoeira –, publicado em janeiro de 1825 pelo então Conselheiro de Estado Visconde de Cachoeira. Este estatuto estabelecia, entre outras coisas, como seriam ministradas as aulas nos cursos de Olinda e São Paulo. O artigo 6º, então, mencionava:
Será mui breve e claro nas suas exposições. Não ostentará erudição por vaidade, mas aproveitando o tempo com lições úteis, trará só de doutrina o que for necessário para perfeita inteligência das matérias que ensinar, e trabalhará quanto lhe for possível por terminar o compêndio a tempo de poderem os estudantes ainda no mesmo ano ouvir todas as lições de Direito Público (BRASIL, 1827, sic).
O pensamento dogmático e bacharelesco, sempre foi uma característica dos cursos jurídicos, a preocupação com um ensino que atendesse as demandas do mercado de trabalho apontava para a importância de se formarem egressos com a capacidade de operar o Direito, sem, contudo, prepará-los para uma formação crítica e humanística; para quem se interessasse por tal formação deveria se matricular em um curso de Filosofia e não de Direito. Outrossim, não havia no imaginário da época a preocupação com robusto projeto educacional, muito menos uma formação pedagógica docente. Os professores, que inicialmente foram trazidos de Coimbra e paulatinamente deram lugar aos primeiros juristas formados em solo brasileiro, tinham total autonomia docente, desenvolvendo suas aulas a seu bel-prazer. De acordo com Rudnicki (2008), quando foram criados os cursos, havia a preocupação em focar os estudos nas questões propriamente jurídicas. Existia o temor de que, sem um foco tecnicista e dogmático, os bacharéis saíssem da Academia grandes eruditos, porém pouco hábeis à prática jurídica. Ademais, como alhures exposto, não havia nenhuma preocupação pedagógica, a legislação fornecia apenas breves indicações de como os professores deveriam ministrar suas aulas. Um exemplo da vagarosidade evolutiva do pensamento jurídico é a questão da inclusão da disciplina de Psicologia. Em conformidade aos apontamentos de Holanda (2008), no final do século XIX Clóvis Beviláqua já criticava a ausência da disciplina de Psicologia nos cursos de Direito, necessário aos conteúdos de Filosofia do Direito e Direito Criminal. Todavia, a compreensão da importância dos estudos psicológicos só foi admitida a partir da década de sessenta. E colocada em prática pelo Conselho Nacional de Educação, por meio da Resolução nº 9, apenas em 2004:
Art. 5°: O curso de graduação em Direito deverá contemplar, em seu Projeto Pedagógico e em sua Organização Curricular, conteúdos e atividades que atendam aos seguintes eixos interligados de formação: I - Eixo de Formação Fundamental, tem por objetivo integrar o estudante no campo, estabelecendo as relações do Direito com outras áreas do saber, abrangendo dentre outros, estudos que envolvam conteúdos essenciais sobre Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia (...)” (BRASIL, 2004, grifa-se).
O paradigma de ensino adotado nos primeiros cursos jurídicos, mormente nas Universidades de Olinda e São Paulo, no que se refere à estrutura curricular, modelo de aula e doutrina, foi copiado ipsis litteris do modelo de Coimbra, que já era deveras obsoleto para a época. Holanda (2008) lembra que, ao se comparar o ensino superior ministrado em Portugal com o alemão, o inglês e, principalmente, o francês, se podia observar nitidamente que o Direito que se ensina estava aquém não apenas em seu aspecto pedagógico, mas nos próprios conteúdos doutrinários e valores tradicionais que ainda se disseminava. Este descompasso entre o pensamento jurídico ensinado e praticado no século XIX em relação aos demais países foi alvo de inúmeros debates. Em seu texto “Isto aqui é Coimbrã?”, datado do início do século XX, Oswald de Andrade faz severas críticas à perspectiva jurídica tradicional brasileira:
O vosso mal é um mal coimbrão, um mal portuguez agravado pela nossa situação de colonia-mental. A nossa velha Faculdade, é como a de Recife, apenas um pedaço do projeto escolar, que não foi avante no Primeiro Império e assim reprezou o pensamento brasileiro na bacharelice (ANDRADE, 1935, sic).
As críticas andradeanas diziam respeito ao atraso dos conteúdos ensinados. Causado pela permanência do espírito de colônia e a demasiada influência do ensino religioso, o jusnaturalismo. A consequência disto foi a falta de produção intelectual e a transformação dos cursos de ciências jurídicas em simples forma de ascensão profissional. Aliás, a própria atividade docente, já desde este período, era exercida como forma de promoção profissional e vaidade pessoal. Não obsta ressaltar, todavia, que as ferrenhas críticas apontadas por Oswald de Andrade foram escritas mais de cem anos após a primeira turma de bacharéis se formarem. O que demonstra que, além do fato de que o ensino já se iniciara em retardo às vanguardas europeias, mais um século de criação dos primeiros curso e o ensino no Brasil permanecia sob a mesma égide tradicional, dogmática e bacharelesca.
Com o início da República Velha, no final do Século XIX, as principais alterações no ensino do Direito foram a influência do positivismo e a criação de novos currículos, a procurar dar maior profissionalização aos egressos. Entretanto, a continuar rígidos, sem trazer qualquer alteração estrutural nos cursos jurídicos. Foi nesta época que surgiram as primeiras Universidades particulares, aumentaram-se, pois, a oferta de ensino e possibilidade do ingresso da classe média nas Universidades (RODRIGUES, 1993). Assim, se por um lado o franco crescimento das universidades trouxe a possibilidade de um acesso mais democrático, a tornar não apenas o ensino jurídico como os demais cursos superiores menos elitistas, este foi apenas o início de um processo de total massificação da qualidade educacional. A abertura do mercado para o ensino privado tornou possível que em bem pouco tempo qualquer instituição – com mínimos requisitos – ganhasse título universitário e a possibilidade de formar bacharéis. Este processo de proliferação do ensino superior pode ser observado, de forma mais acentuada, após o Regime Militar. Neste sentido, como assevera Bittar (2006), pode-se perceber paulatinamente a partir da segunda metade do século XX a mudança no perfil universitário do Direito, no que se refere à quantidade de matrículas: no ano de 1960 foram realizadas 93.202 matrículas; o número dobra na década de setenta; a chegar a 1,5 milhão na década de oitenta.
Em suma, sobre as raízes históricas do ensino superior no Brasil, com base na crítica de Gilberto Freyre em A Ascensão do Bacharel e do Mulato, não obstante sua obsolescência, sobremodo o jurídico, tanto os filhos da aristocracia que ainda eram mandados para estudar na Europa quanto os que no Brasil se formavam, recebiam na formação universitária um contato com valores bastante diferentes daqueles que estavam acostumados. Estes jovens que voltavam para o Brasil e os que retornavam para suas casas nas fazendas do interior traziam um pouco dos valores modernos e dos debates mais acalorados que se travavam entre os intelectuais europeus. Assim, ao mesmo tempo em que eles influenciavam o pensamento o local, também disseminavam a ideia de que o Brasil era um país atrasado – o que obviamente era verdade.
Os bacharéis e doutores que iam chegando de Coimbra, de Paris, da Alemanha, mais tarde foram saindo de Olinda, de São Paulo, da Bahia, a maior parte deles formados em Direito e Medicina, alguns em Filosofia e todos uns sofisticados, trazendo com o verdor brilhante dos vintes anos, as últimas ideias inglesas e as últimas modas francesas, vieram acentuar, nos pais e avós dos senhores de engenho, não só desprestígio da cidade patriarcal, por si só uma mística, como a sua inferioridade de matutões atrasados (FREYRE, 1936, p. 304).
O que, porém, se tornava nefasto era a forma como este sentimento de inferioridade se transmitia entre as pessoas, levando-as a crer que, realmente, elas não passavam de selvagens, devendo, então, se inclinar e idolatrar tudo aquilo que não fosse nacional, numa esperança desesperada de buscar uma nova identidade. Destarte, se não bastasse o atraso inaugural da educação superior, a arraigada influência do tradicional modelo bacharelesco e as parcas políticas educacionais coevas, o cenário profissional e educacional se encontram cada vez mais saturados, a formação universitária no Brasil aponta também aquele velho ranço colonial. De modo que, ao mesmo tempo em que houve um anacronismo no surgimento universitário, o passado de exploração fez surgir uma profunda mágoa, adstrita a uma sensação de impotência, o que, ao longo de seu desenvolvimento, tornou mas evidente seu desacordo frente os outros.
CONCLUSÃO
Embora pouco comentado, os primeiros projetos de implementação do ensino superior no Brasil já datam do período jesuítico no Século XVI. Dentre as inúmeras escolas que se abriam durante o movimento educacional cristão, o Colégio da Bahia, o primeiro colégio brasileiro, era, possivelmente, o mais notável a se elevar ao nível de Universidade, segundo os padrões da Corte Portuguesa. De fato, como se constatou na época, o Colégio não apenas era bem preparado, no que se refere à sua infraestrutura e modelo pedagógico, como também era desejo da comunidade que a colônia fosse contemplada com sua primeira Universidade.
Não obstante, foi por um torpe sentimento de inveja, por parte da própria elite eclesiástica romana, que o sonho de se criar a primeira Universidade brasileira, possivelmente começando pelos cursos de Filosofia e Teologia permaneceu como tal. O motivo da recusa foi bastante claro: politicamente não interessava nem a Roma nem à Corte que os colonos se emancipassem intelectualmente, pois seria ultrajante que os habitante da selvajaria se bacharelassem ao mesmo nível dos cortesãos.
Enquanto diversas outras colônias americanas fundavam suas primeiras instituições de ensino superior, esta realidade estagnada permaneceu no Brasil até o advento de sua independência, em decorrência das invasões napoleônicas a Portugal, fato que culminou na covarde fuga da Família Real. Doravante, uma vez que as novas terras tinham se erguido da categoria de colônia para Reino Unido, novamente por motivos políticos, se tornava imprescindível que os brasileiros, agora sob a proteção direta do cetro real, ganhassem feições mais dignas e metropolitanas.
Em suma, foi a vergonha do ambiente selvagem e a falta do requinte europeu as quais fizeram com que a nobreza se interessasse em fundar as primeiras Universidades, uma vez que, de agora em diante, se formava uma nova elite. Era inconcebível que os filhos desta nova aristocracia tivessem que se sujeitar ao cruzamento do Atlântico em busca de um diploma honrado. Contudo, seja por meio dos tradicionais bancos acadêmicos europeus, seja pelos novos bancos brasileiros, a formação superior, sobretudo em Direito, permaneceu pautada no mesmo modelo pedagógico decrépito e elitista da Universidade de Coimbra.
Assim, os jovens bacharéis que continuavam a retornar da Europa, pois relutavam em receber sua formação na colônia, bem como os que agora retornavam das recém-inauguradas Faculdades de Olinda e de São Paulo, tinham em comum não apenas a certeza de que seu bacharelado lhes renderia o título de doutor, tornando-os, doravante, mais do que simples intelectuais, porém, a única elite pensante do país, os quais, de forma paulatina, começariam a infiltrar nas redações jornalísticas, nas academias literárias e, mormente, no poder político. De outra banda, quiçá mais importante do que tal ascensão, seria a simbólica sobreposição diante do povo silvícola, iletrado e excluído de qualquer tipo de formação, possivelmente na mesma altivez que diferia a burguesia e a monarquia parisiense da mendigaria do Pátio dos Milagres – que, a seus olhos, “era apenas um cabaré, um cabaré de bandidos” (Hugo, 2005, p. 342).
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