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As relações de consumo e a teoria do valor do desestímulo em face da globalização dos negócios jurídicos

Agenda 02/11/2016 às 13:24

Não haveria o enriquecimento ilícito dos fornecedores/prestadores de serviços em face dos danos causados aos consumidores que prejudicaram, caso não sejam condenados a pagar punitive damages?

1. BREVE HISTÓRICO

Nas palavras de Luiz Carlos Bresser-Pereira, só é possível compreender como funciona a vida econômica, política e social de uma sociedade partindo da premissa que tais manifestações só fazem sentido a partir da coordenação básica que deriva das normas jurídicas.(1)

Desta forma, a rubrica ‘direito econômico’ trata especificamente das normas que regulam as atividades econômicas que interagem no mercado − local e global − sejam tais normas de direito público para a sociedade em que se insere, sejam normas para regular as atividades entre particulares.

Uma vez se tratar de ciência jurídica, as disciplinas que a compõem se intercomunicam, e desse modo, os ramos do direito público (constitucional, administrativo, financeiro, tributário) interagem com os ramos de natureza civil, comercial e penal atinentes à atividade econômica propriamente dita. E nesse aspecto, em específico, o Direito é o sistema normativo da sociedade com poder coercitivo.(2)

Ao longo da história do século XX, a atividade econômica rompeu as fronteiras tornando as relações econômicas em transnacionais e, olhando em retrospecto, o pós-Segunda Guerra é o marco que deu início às transformações que conduziram a sociedade mundial até a contemporaneidade.

1.1 O CENÁRIO PÓS CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição Federal de 1988, no Art. 170, insere os princípios gerais norteadores da atividade econômica que consagram uma economia de mercado de natureza capitalista contida no princípio constitucional da livre-iniciativa, ao mesmo tempo em que, no seu viés social, prioriza os valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado.(3)

Segundo Fábio Ulhoa Coelho, a inclusão dos direitos do consumidor entre os direitos fundamentais da pessoa (Art. 5º, XXXII), e entre os princípios básicos da ordem econômica (Art. 170, V), não significa apenas o reconhecimento da sua importância pelo constituinte, com repercussões meramente políticas.(4)

O autor segue afirmando que no direito brasileiro, os interesses do destinatário final dos bens e serviços oferecidos ao mercado devem ser adequadamente reconhecidos e prestigiados no regramento da produção de riquezas.

Desse modo, após 1988, surge a Lei nº 8.078 de 1990, consagrada como o Código de Defesa do Consumidor – CDC, permitindo a instalação permanente dos órgãos de defesa do consumidor, notadamente os Procons, seguida da Lei nº 8.884 de 1994, denominada Lei Antitruste, dando ensejo à criação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE.

Verifica-se, então, que com a edição desses dois diplomas legais – a partir das premissas inseridas pela Constituição Federal de 1988 – começa a surgir a política nacional de proteção às relações consumeristas, criando um lastro a toda atividade de natureza econômica entre particulares e entre a iniciativa privada e poder público.

Contudo, a interpretação de qualquer lei ordinária protetora dos consumidores não deve significar desestímulo à produção de bens e serviços tampouco contrariar os demais aspectos do direito privado que se destinem a propiciar as condições para o exercício da atividade econômica em um sistema de feitio neoliberal.(5)

1.2 DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

Ainda segundo Bresser-Pereira, quando o país tem uma estratégia nacional de desenvolvimento, a ordem jurídica faz parte dela, não obstante seja mais ampla que aquela.(6)

Para o autor, a ordem jurídica é ao mesmo tempo referencial do comportamento aceitável como também referencial do comportamento desejável. Em outras palavras, o sistema jurídico é o depositário do comportamento desejável dos atores que compõem o desenvolvimento econômico de um país.(7)

Uma vez que o direito econômico é o direito das políticas públicas, aspectos relevantes do comportamento dos agentes são por ele estabelecidos.

No entanto, como se verá adiante, não é exatamente o que ocorre, pois a atuação de grandes grupos econômicos interfere não só na macroeconomia, como também, em certa medida, repercutem negativamente a partir de decisões judiciais pouco efetivas, sem que se alcance os efeitos condenatórios punitivo e educativo objetivados.

É importante pontuar que há movimentos internacionais com forte interesse na adoção do sistema anglo-saxão do common law em detrimento da histórica opção da lei civil (civil law) adotada pela grande maioria dos países cujo sistema jurídico tem origem na matriz romana.

Significa dizer que há um forte interesse em se padronizar, além das relações comerciais na esfera internacional de um mundo sem fronteiras, as normas legais para uma maior mobilidade dos agentes econômicos.

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1.3 GLOBALIZAÇÃO E AS RELAÇÕES JURÍDICAS CONTEMPORÂNEAS

O processo de globalização compreende diversos fenômenos não só econômicos, como também políticos, sociais e culturais que incidem, direta ou indiretamente, no direito.(8)

Logo, cada Estado-nação possui soberania e capacidade jurídica de pactuar acordos e tratados internacionais, tanto com entes públicos quanto privados, sem que se macule a soberania jurídica e política do país.(9)

E nesse quadro se insere o estágio atual da globalização, numa crescente interdependência econômica das nações, materializada no fluxo do capital, do comércio, das pessoas e da tecnologia entre todos os anteriores.(10)

Portanto, o fenômeno da interdependência econômica em tantos campos distintos, passa a interferir na esfera do direito, tanto pela internacionalização dos negócios quanto pela consequente reorganização produtiva.(11)

Destacam-se os novos hábitos de consumo espalhados por todos os continentes, culminando em mudanças de comportamento social, individual e coletivo das mais diferentes culturas. Tais mudanças apresentam reflexos relevantes na esfera comportamental de distintos estratos sociais.

Na seara jurídica, tais reflexos são observados na atuação cada vez mais internacionalizada das bancas de advogados, notadamente pela expansão do modelo norte-americano das law firms, que passam a atuar num ambiente jurídico cada vez mais padronizado sob a égide do common lawanglo-saxão.

Nesse particular, é importante destacar o trabalho dos professores canadenses Kevin E. Davis e Michael J. Trebilcock, em que analisam o ressurgimento do interesse internacional de apoiar reformas jurídicas em países em desenvolvimento, refletindo uma perspectiva otimista sobre o papel do direito, e consequentemente dos juristas, no desenvolvimento de países pobres ao redor do mundo.(12)

Segundo essa análise, afirmam os autores que nos últimos vinte e seis anos, nações ocidentais e doadores privados despejaram bilhões de dólares na reforma do império do direito na América Latina, África subsaariana, Europa central e oriental e Ásia.

Os entusiastas de tal mobilização, apoiam seu otimismo no tripé (i) importância do direito, (ii) mudança dos sistemas jurídicos em resposta aos esforços deliberados de reforma, e por último, (iii) a consequente promoção do desenvolvimento. 

Pelo trabalho de Davis e Trebilcock, observa-se que o fenômeno da estandardização dos negócios jurídicos não é recente e perpassa não apenas os negócios jurídicos transnacionais entre particulares, mas, também entre as nações.

Em certa medida, as análises históricas trazidas pelos autores são perturbadoras, pois oferecem ao leitor um cenário etnocêntrico e anglo-saxão sobre a legalidade, o direito e o desenvolvimento.


2. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR

Para Ulhoa Coelho (1994), a preocupação em tutelar os interesses dos que adquirem e se utilizam de produtos ou serviços oferecidos em grande escala ao mercado é que assinala o surgimento do consumerismo(13), além disso, nenhuma norma jurídica se mostra eficaz se não se compatibiliza com o estágio de evolução econômica da sociedade que a gerou.(14)

É claro que a vertiginosa evolução tecnológica deixa muito mais próxima a relação entre fornecedor/prestador de serviço de seu consumidor final.

Em muitos casos, os maus serviços, ou os produtos que apresentem perigo, defeito ou vício, acabam por serem solucionados na esfera contenciosa sem que, ao final, haja repercussão de natureza punitiva ou pedagógica àqueles.

Assim, imperioso registrar que o Código de Defesa do Consumidor arrola, entre os direitos básicos do consumidor, a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos (Art. 6, VI).

Já em 1992, o STJ sumulou, sob nº 37, que são cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato.

E em consonância com os novos tempos, e porque não dizer com a dinâmica da sociedade contemporânea, o Código Civil de 2002, no Art. 944, preconiza que a indenização mede-se pela extensão do dano, e completa que, se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização (Art. 944, Parágrafo único).

2.1 REFLEXOS DA NOVA ORDEM ECONÔMICA MUNDIAL NO DIREITO CONSUMERISTA BRASILEIRO

Com a globalização sedimentada, assiste-se às indústrias transnacionais venderem seus produtos em grande escala, e percebe-se que no ambiente interno nacional, cresce a tendência de um emergente setor de serviços atuando por meio de empresas, sejam elas de médio ou pequeno porte, microempresas e até mesmo microempresários individuais, constituídos na forma da lei para o exercício da prestação de serviços.

Evidente que a maior fatia de qualquer setor de serviços está adstrita às grandes corporações tais como seguradoras, companhias aéreas, operadoras de cartões de crédito, operadoras de planos de saúde, prestadoras de serviços de telecomunicações entre outras, e é relevante o volume de reclamações de clientes frente ao descuidado com que os serviços são prestados nas mais diversas atividades econômicas.

O Procon-SP publica relatórios anuais em que o órgão apresenta o saldo da ineficiência dos serviços dos diversos ramos de atividade que movimentam a economia nacional sob o sugestivo título de Ranking das Reclamadas.(15)

Considerando que tais empresas são prestadoras de serviços, muitos deles essenciais, e sendo certo que o ranking torna questionável a qualidade dos serviços por elas prestados - tanto na execução dos serviços contratados como na entrega dos produtos que revendem em suas lojas - constata-se que na indigitada lista ocupam os primeiros lugares empresas operadoras de telefonia, grandes lojas de varejo e bancos. As multas arbitradas totalizam um passivo próximo a meio bilhão de reais.

Nesse contexto caótico, de má prestação de serviços de um lado e de consumidores flagrantemente prejudicados de outro, é que se assiste ao surgimento da admissibilidade da teoria do desestímulo no direito brasileiro para a aplicação de indenização punitiva frente a apuração dos danos extrapatrimoniais decorrentes da desídia dos requeridos.

2.2 A TEORIA DO DESESTÍMULO (PUNITIVE DAMAGES)

Nessa conjuntura que mais recentemente chegou ao Brasil a teoria do desestímulo, consagrada no direito norte-americano sob a denominação de punitive damages, em que pese não ser esta unânime entre doutrinadores e tribunais nacionais, porém, mesmo não sendo unanimidade, passa a integrar parte de decisões principalmente em face de litigantes reincidentes.

Como ilustra David Castro Stacciarini, ao contrário das indenizações compensatórias, que se destinam a compensar as vítimas depois de sofrerem os danos, o conceito de indenizações punitivas destina-se a punir aqueles que deliberadamente ou por imprudência colocam em perigo a saúde e segurança do requerente; as punições não apenas fornecem a compensação às vítimas que provavelmente sofreram uma conduta ultrajante (16)

Leciona Nelson Rosenvald que são duas as finalidades das indenizações punitivas. A primeira retributiva sendo que a retribuição reclama que a conduta revele extrema reprovação social – uma malícia, evidenciada pelo dolo ou grave negligência do agente, cumulada com a segunda finalidade, qual seja, o desestímulo, no sentido de direcionar a pena e afligir o transgressor, induzindo-o a não reiterar comportamentos antissociais e ultrajantes análogos.(17)

Para André Gustavo Corrêa Andrade, além da teoria do desestímulo ter um caráter social, também alberga o interesse público, na medida em que objetiva ao mesmo tempo punir o autor do fato danoso e desestimular a reiteração da conduta ofensiva, e nesse aspecto alcançando terceiros a partir da sua repercussão.(18)

Na esfera dos tribunais, observa-se uma percepção ensimesmada quanto a aplicação do instituto, muitas vezes não se aplicando a indenização punitiva propriamente dita.


CONCLUSÃO

Constata-se que a sociedade contemporânea multifacetada e de nuances complexas, como demonstra a geopolítica atual, trilha um caminho onde o poder dos monopólios e das megacorporações domina drasticamente a economia em escala mundial chegando até mesmo a pretender interferir na realidade jurídica dos Estados-nação.

Assim, os mecanismos para salvaguardar os interesses nacionais que giram a macroeconomia, deve ter a tutela reconhecida pelo Judiciário toda vez que a sociedade busque por essa proteção, cabendo em certa medida aos magistrados esse mister pedagógico e punitivo de interceder nas relações consumeristas em que o agente econômico é o lado mais forte da relação contratual.

Dessa maneira, a teoria do desestímulo ainda é aplicada de maneira incipiente no direito brasileiro, portanto, ineficaz. Grande parcela dos julgados apresenta uma abordagem punitiva e pedagógica de baixíssima repercussão.

Na esfera consumerista sabe-se que o hipossuficiente é o consumidor, portanto, há que se questionar por que razão as indenizações por dano moral não vêm de encontro a atender ao clamor daqueles que efetivamente foram prejudicados por ação ou omissão do fornecedor ou prestador de serviços.

Dessa forma, uma indenização simbólica não poderá jamais ser qualificada como sendo “reflexo da teoria do valor do desestímulo”, principalmente porque em casos envolvendo prestadoras de serviços, como nos episódios envolvendo empresas de telefonia, companhias aéreas, instituições financeiras, entre outras, as indenizações arbitradas estão aquém de instaurar o punitive damages da referida teoria, tendo apenas o caráter de indenização punitiva no papel, sem maior repercussão.

Em suas sentenças, alguns magistrados alegam que a aplicação da indenização não deve conduzir ao enriquecimento ilícito do lesado. Ora, é de se questionar a interpretação inversa do mesmo raciocínio, afinal, não haveria o enriquecimento ilícito dos fornecedores/prestadores de serviços em face dos danos causados aos consumidores que prejudicaram?

Além das indenizações serem de natureza simbólica, o que por si só em nada abala ou educa os condenados, cabe lembrar que as grandes empresas possuem mecanismos que minimizam os custos do passivo contencioso com os seus valores provisionados no balanço contábil-financeiro, e em certos casos, com seguros contratados especificamente para absorver eventuais indenizações e/ou condenações judiciais.


REFERÊNCIAS

(1) BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Direito e desenvolvimento econômico. Disponível em . Último acesso: 03 ago.2015.

(2) Idem

(3) SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1998, p.754.

(4) COELHO, Fabio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994. P.23.

(5) Idem, p.24.

(6) BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Direito e desenvolvimento econômico. Disponível em . Último acesso: 03 ago.2015.

(7) Idem

(8) BORGES, Luiz Cláudio. Globalização e direito: Os efeitos da globalização na Teoria Geral do Direito. Disponível em:n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11058&revista_caderno=24>. Último acesso: 03 ago.2015.

(9) Idem

(10) Idem

(11) DAVIS, Kevin E.; TREBILCOCK, Michael J.. A relação entre direito e desenvolvimento: otimistas versus céticos. Rev. Direito GV, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 217-268, June 2009. Disponível em . Acesso em 28 jul. 2015.

(12) Idem

(13) COELHO, Fabio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994. P.27.

(14) Idem, p.28.

(15) FUNDAÇÃO PROCON-SP. Reclamações fundamentadas 2014. Disponível em . Último acesso 03 ago.2015.

(16) STACCIARINI, David Castro. Punitive Damages: A verdade por trás das indenizações punitivas - Parte I. Disponível em . Acesso 02 ago.2015.

(17) ROSENVALD, Nelson. As funções da Responsabilidade Civil: A Reparação e a Pena Civil. São Paulo: Atlas, 2013.

(18) ANDRADE, André Gustavo Corrêa. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.195.

Sobre a autora
Cristhiane Borrego

Advogada e Docente em ensino superior na área de cidadania e defesa do consumidor

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORREGO, Cristhiane. As relações de consumo e a teoria do valor do desestímulo em face da globalização dos negócios jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4872, 2 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53392. Acesso em: 22 dez. 2024.

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