O art. 10, § 3.º, IV, da revogada Lei n. 9.437, de 20 de fevereiro de 1997 (Lei do Porte de Armas), previa a reincidência como qualificadora dos crimes descritos no art. 10, caput, e § 1.º, impondo pena de reclusão, de 2 a 4 anos, além de multa, o dobro do tipo simples (detenção, de 1 a 2 anos). A figura típica não definia crime autônomo, pois não possuía elementares próprias [1]. Descrevia, em local inadequado, uma qualificadora, tendo em vista que impunha, abstratamente, mínimo e máximo da pena [2]. Era muito estranho, já que os outros incisos do § 3.º retratavam delitos autônomos. Para a aplicação da agravação específica, era necessário que a sentença condenatória irrecorrível anterior tivesse reconhecido a prática de crimes contra a pessoa, contra o patrimônio ou o tráfico ilícito de drogas. Só exasperavam a pena as condenações com trânsito em julgado prolatadas na vigência da Lei n. 9.437/97.
Em nossas críticas, observávamos que o fato anterior, objeto da sentença condenatória transitada em julgado, podia não manter nenhuma relação com arma de fogo [3]. Imagine que o autor tivesse sido condenado irrecorrivelmente por estelionato. A Lei determinava a agravação obrigatória da pena. Não se mostrava justo que a reincidência, nesse caso, elevasse tão intensamente a sanção do crime posterior [4]. Além disso, fugia completamente do sistema criminal brasileiro a existência de uma circunstância agravante genérica, transformada em qualificadora de um delito especial, aumentando de tal forma a pena [5].
A Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003, corrigindo o erro da norma anterior, não contém dispositivo semelhante contemplando a reincidência como qualificadora ou causa de aumento de pena dos crimes de porte de arma de fogo e correlatos. Apreciando as duas Leis – as de n. 9.437/97 e n. 10.826/2003 – verifica-se que a posterior é mais benéfica, uma vez que não prevê a qualificadora anteriormente tipificada. Trata-se de novatio legis in melius (art. 5.º, XL, da CF; art. 2.º, parágrafo único, do CP) com efeito retroativo incondicional, aplicando-se inclusive aos fatos definitivamente julgados (art. 2.º, parágrafo único, parte final, do CP) [6]. Suponha-se que um réu, autor de posse ilegal de arma, tenha sido irrecorrivelmente condenado a 2 anos de reclusão, além de multa, em face da reincidência, nos termos do art. 10, caput, e § 3.º, IV, da revogada Lei. n. 9.437/97. Com o advento da Lei nova mais benéfica, cumpre que seja reduzida a pena de acordo com os parâmetros punitivos impostos pelo art. 12 da Lei n. 10.826/2003, detenção, de 1 a 3 anos, e multa, subsistindo a reincidência como agravante genérica, ressalvada outra eventual circunstância exasperadora da pena reconhecida pela sentença anterior e não extinta pela Lei posterior.
Se o Juiz ou o Tribunal ainda não proferiu condenação, compete àquele ou ao órgão colegiado efetuar, na sentença ou acórdão condenatório, a adequação penal. Se, contudo, a sentença ou acórdão já transitou em julgado, a competência é do Juiz da execução, de acordo com o art. 66, I, da Lei de Execução Penal [7] (Súmula n. 611 do STF). Nesse caso, a competência não é do Tribunal, ao qual compete apreciar a espécie somente na hipótese de haver recurso da decisão do Juiz de Primeira Instância (art. 197 da LEP).
Notas
1 Nesse sentido: TJRS, ACrim n. 700.0000.9563, rel. Des. Carlos Roberto Lafego Caníbal, RT 772/672.
2 Nesse sentido: TJRS, ACrim n. 700.0000.9563, rel. Des. Carlos Roberto Lafego Caníbal, RT 772/672; TJSP, 3.ª Câm. Crim., ACrim n. 288.773, rel. Des. Gonçalves Nogueira, RT 778/586.
3 JESUS, Damásio de. Crimes de porte de arma de fogo e assemelhados. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 74.
4 Nesse sentido, tratando de estelionato e adotando nossa posição: STJ, 5.ª T., HC n. 14.917, rel. Min. Felix Fischer, DJU de 4.6.2002, p. 197, e RT 793/558.
5 Nesse sentido: GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Porte de arma: inaplicabilidade do art. 10, § 3.º, da Lei n. 9.437/97. Boletim do IBCCrim, São Paulo, 70/6, set. 1998.
6 Nesse sentido: RTJ 83/1003 e 95/814.
7 Lei n. 7.210/84.