3 A DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE: ALCANCE E EFEITOS
Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle abstrato de constitucionalidade, em regra, são: erga omnes (gerais), ex tunc (retroativos), vinculantes e repristinatórios. Já no difuso são: ex tunc, repristinatório e inter partes (somente se aplicando as partes e em relação ao processo em que houver a declaração). Neste trecho sedimentar-se-ão os conceitos de todos os possíveis efeitos de uma decisão judicial, a fim de uma melhor compreensão da modulação temporal.
De antemão cabe diferenciar os efeitos repristinatórios de repristinação. O primeiro se trata da reentrada em vigor da norma aparentemente revogada, enquanto a outra é a reentrada em vigor da norma efetivamente revogada.
Acerca do tema, Alexandre Moraes afirma:
Na repristinação, ocorre o retorno de vigência de lei anteriormente revogada pela revogação de sua lei revogadora, desde que, nos termos do art. 2º, §3º, da Lei de Introdução ao Código Civil, houver expressa previsão. Dessa forma, a lei anterior volta a ter vigência somente a partir da revogação de sua lei revogadora. Diversamente, nos efeitos repristinatórios da declaração de inconstitucionalidade, se a lei revogadora foi decretada nula e, consequentemente, jamais teve a força de revogar a lei anterior, essa manteve sua vigência permanente (MORAES, 2014, p. 785).
Em suma, na repristinação a lei revogadora tem que ser expressa em afirmar a reintegração da norma anteriormente revogada ao ordenamento jurídico. Já no âmbito do Controle Concentrado de Constitucionalidade (mais especificamente nas Ações Diretas de Inconstitucionalidades), o efeito repristinatório acontece tacitamente, mesmo diante de eventual silêncio da decisão judicial.
Marcelo Novelino afirma que o efeito repristinatório tácito poderá ocorrer em duas situações. A concessão de medida cautelar suspendendo uma lei revogadora faz com que a lei revogada volte a ser aplicada novamente, salvo determinação expressa em sentido contrário (Lei 9.868/1999, art. 11, § 2.º). De igual forma, na decisão definitiva de mérito, se uma lei é declarada inconstitucional com efeitos retroativos (ex tunc), o vício é reconhecido e declarado desde o seu surgimento. Neste caso, a lei inconstitucional não poderia ter revogado uma norma válida, razão pela qual esta voltará a ser aplicada novamente. (NOVELINO, 2013, p.198).
Em síntese, seria uma contradição admitir que uma lei revogada por outra lei que teve a sua inconstitucionalidade reconhecida, permaneça sem eficácia.
Ocorre que os efeitos repristinatórios nem sempre são vantajosos, causando as vezes danos maiores. A exemplo da norma ressuscitada padecer de inconstitucionalidade ainda mais grave que a do ato nulificado.
Para evitar o chamado efeito repristinatório indesejado deve o legitimado ativo provocar o STF, isto é, requerer, em pedidos sucessivos, já na inicial, que a Corte avalie a lei anterior que pode voltar a produzir efeitos. Assim, a Corte, se provocada, avalia a lei anterior que houvera sido revogada e se manifesta contra ou favoravelmente ao seu retorno à produção de efeitos.
Esse é o entendimento do Supremo:
A reentrada em vigor da norma revogada nem sempre é vantajosa. O efeito repristinatório produzido pela decisão do Supremo, em via de ação direta, pode dar origem ao problema da legitimidade da norma revivida. De fato, a norma reentrante pode padecer de inconstitucionalidade ainda mais grave que a do ato nulificado. Previne-se o problema com o estudo apurado das eventuais consequências que a decisão judicial haverá de produzir. O estudo deve ser levado a termo por ocasião da propositura, pelos legitimados ativos, de ação direta de inconstitucionalidade. Detectada a manifestação de eventual eficácia repristinatória indesejada, cumpre requerer, igualmente, já na inicial da ação direta, a declaração da inconstitucionalidade, e, desde que possível, a do ato normativo ressuscitado (STF, ADln 2.621-MODF, Rei. Min. Celso de Mello, 2002)
O autor da demanda deve observar a existência ou não dos efeitos repristinatórios indesejados, a fim de se evitar um dano maior. Não fazendo esse pedido já na inicial, haverá preclusão, e não poderá mais requerer.
Outro requisito, para se afastar os efeitos repristinatórios indesejados, é o preenchimento, de forma analógica, dos requisitos exigidos nos artigos 27 da lei 9.868/99 e 11 da lei 9.882/99 (a serem estudados mais adiante), a exemplo do quórum de dois terços.
Daniel Sarmento explica:
Ou seja, é possível que a norma revogada seja constitucional, mas que a sua ressurreição, e, mais que isso, a sua incidência sobre fatos ocorridos no intervalo em que vigorou a norma revogadora, causem profundas injustiças e danos à segurança jurídica, afrontando gravemente interesses constitucionalmente tutelados. Mas, sempre que a restrição à repristinação decorrer não de um juízo sobre a inconstitucionalidade da lei revogada, mas de uma avaliação política do STF, calcada em ‘razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social’, o quórum de 2/3, previsto no art. 27 da Lei n. 9.868, também deverá ser exigido (SARMENTO, 2001, p.132)
Ou seja, adota-se a tese de se utilizar dos requisitos necessários para a modulação temporal no afastamento dos efeitos respristinatórios indesejados.
Bastante lógico essa necessidade. Ambas institutos são possibilidades a serem adotadas em situações excepcionais. Sendo imprescindível um quórum qualificado para o uso de técnicas que sairão do lugar comum.
Os efeitos retroativos (ex-tunc, ab initio ou ex origine), regra tanto no controle difuso e concentrado, fazem com que a decisão de inconstitucionalidade retroaja até a data do surgimento do ato ou da norma declarada inconstitucional. Como já visto, prevalece no Direito brasileiro a teoria do Regime de Sanção de Nulidade.
Alcançam as condutas pretéritas, praticadas sob a suposta vigência da lei declarada inconstitucional, nulificando todas as consequências dele advindas.
O entendimento já se encontra assentado na Suprema Corte:
A declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, eis que o reconhecimento desse supremo vício jurídico, que inquina de total nulidade os aros emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe - ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos - a possibilidade de invocação de qualquer direito (ADI 652 MA, Relator Min. Celso de Mello,1992).
No mesmo sentido, Nathalia Masson entende que os atos praticados em desacordo com a Carta Magna (consequentemente nulos) devem ser desfeitos, com a restauração da situação anterior. Logo, não cabe invocar a proteção do direito adquirido, tampouco do ato jurídico perfeito, em relação às leis ou atos normativos considerados inconstitucionais (MASSON, 2013, p. 1039).
Não haveria motivo para se compreender em sentido diverso. Um ato eivado de vício de constitucionalidade não pode gerar efeitos válidos. Do contrário, em que se consistiria a supremacia constitucional? Seria uma mera tese, sem aplicabilidade. A sociedade ignoraria a Constituição. Iniciar-se-ia uma série de atos inconstitucionais, e quando fosse julgado como inválido, seus atos pretéritos permaneceriam. Ou seja, uma constituição faz-de-conta.
Por isso, a aplicação dos efeitos repristinatórios em conjunto com os retroativos são importantíssimos. Dão relevância à Constituição.
No ponto, assevera o Luís Roberto Barroso:
Aplicando-se a teoria da inconstitucionalidade como nulidade ao controle incidental e difuso, parece fora de dúvida que o juiz, ao decidir a lide, após reconhecer determinada norma como inconstitucional, deve dar a essa conclusão eficácia retroativa, ex tunc. De fato, corolário da supremacia da Constituição é que uma norma inconstitucional não deva gerar direitos ou obrigações legitimamente exigíveis (BARROSO, 2012, p. 137).
Frise-se que em determinadas situações, não obstante os efeitos ex-tunc da decisão, inviabiliza-se a total dissolução dos efeitos produzidos pela norma ou ato inconstitucional. Falta possibilidade material.
Luís Roberto Barroso agrega através de um importante exemplo. Suponha-se, por exemplo, que uma lei municipal proibisse o funcionamento de bingos em seu território. Um indivíduo ou uma empresa, que firmaram um contrato de locação de ponto comercial, fizeram obras de adaptação e adquiriram equipamentos, veem-se na contingência de cessar a atividade, rescindir ajustes e pagar multas contratuais, amargando grande prejuízo. A eventual declaração de inconstitucionalidade da lei não irá repô-los no status quo ante, por não ser possível refazer o que foi desfeito. Mas o administrado terá direito a uma indenização compensatória das perdas e danos que sofreu, substituindo-se a tutela específica por seu equivalente pecuniário. (BARROSO, 2012, p.138).
Essa flexibilização nada mais é que algo decorrente da coerência. A declaração de inconstitucionalidade de um contrato entre a administração e um particular, não pode retroagir de tal forma que o particular de boa-fé deva devolver o pagamento pelos atos já cumpridos. Seria um enriquecimento sem causa do Estado e sanção a um terceiro que não tem responsabilidade na inconstitucionalidade. De outro giro, é impossível retorna-se ao tempo e revogar os atos praticados pelo contratado.
Como já foi dito, o efeito ex tunc comporta exceções. Estudar-se-ão agora, as duas possibilidades. Contudo, a modulação temporal desses efeitos, seus requisitos, hipóteses de cabimento e limitação serão enfrentadas mais adiante.
Um dos efeitos alternativo ao ex tunc, é o ex nunc, com a decisão sendo eficaz apenas a partir da decisão, sem retroagir.
Gilmar Ferreira Mendes e Carlos Valder asseveram:
Elimina-se a lei do ordenamento jurídico a partir do trânsito em julgado da decisão, denominada pela doutrina de cessação da ultra-atividade da lei. Poderá, igualmente, declarar a inconstitucionalidade, com a suspensão dos efeitos por algum tempo a ser fixado na sentença (declaração de inconstitucionalidade com efeito pro futuro). Nesta, por motivo de segurança jurídica ou de interesse social, a lei continuará sendo aplicada por um determinado tempo, a ser fixado pelo próprio Tribunal, permitindo que se operem a suspensão de aplicação da lei e dos processos em curso até que o legislador, dentro de prazo razoável, venha a se manifestar sobre situação inconstitucional. A doutrina também chama esse efeito de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade, de restrição de efeitos (MENDES e VALDER, 2012, p.569)
Oswaldo Luiz Palu complementa, afirmando que a superação prospectiva (prospective overruling), tanto pode ser limitada (limited prospectivity), aplicável aos processos iniciados após a decisão, inclusive ao processo originário, como ilimitada (pure prospectivity), que nem sequer se aplica ao processo que lhe deu origem (PALU, 2001, p.173).
Uma decisão bastante peculiar aplicando tal hipótese ocorreu acerca do artigo 68 do Código de Processo Penal, que determina que quando o titular do direito à reparação do dano for pobre, a execução da sentença condenatória ou a ação civil será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público. Atualmente tal competência pertence à Defensoria Pública, não mais ao Ministério Público.
O entendimento da Suprema corte acerca dessa norma é a de que se encontra “em trânsito de inconstitucionalidade”, e enquanto não organizada a Defensoria Pública em todas as localidades, permanece em vigor o artigo 68 do Código de Processo Penal, sendo o Ministério Público parte legítima para ajuizar a ação de responsabilidade civil em favor dos pobres nesses locais. Denomina-se, tal hipótese também de “inconstitucionalidade progressiva”, sendo que quando todas as localidades dispuserem de Defensoria Pública, o artigo será completa e definitivamente inconstitucional (STF, RE 135328 SP, Relator Min. MARCO AURÉLIO, 1994).
Outra possibilidade é de a Corte declarar a inconstitucionalidade com efeitos para o passado, todavia sem alcançar a data de edição da norma, optando pelo efeito pro praeterito. Os efeitos são parcialmente retroativos, iniciando a partir de determinado momento especificado na decisão.
Um bom exemplo se trata da ADI 3.660, cuja declaração de inconstitucionalidade retroagiu para atingir lei estadual de 1998, porém com efeitos para o restante do ordenamento jurídico, fixados a partir da EC n. 45/2004:
Procedência do pedido formulado nesta ação direta, para declarar a inconstitucionalidade da “Tabela J” constante do anexo da Lei no 1.936/1998, do Estado do Mato Grosso do Sul, tanto em sua redação vigente, dada pela Lei no 3.002/2005, quanto em sua redação original, bem como do art. 53 e da Tabela V da Lei n° 1.135, de 15 de abril de 1991, do Estado de Mato Grosso do Sul. Tendo em vista razões de segurança jurídica e de excepcional interesse social, aplico o art. 27 da Lei n° 9.868/99, para atribuir à declaração de inconstitucionalidade efeitos a partir da Emenda Constitucional n° 45, de 31.12.2004 (STF, ADI 3.660, Rel. Gilmar Mendes, 2008).
Ou seja, para alguns fatos, a decisão produzirá efeitos retroativos; para outros os efeitos foram ex nunc.
Existem também os efeitos vinculantes, existentes somente no Controle de Constitucionalidade Concentrado.
A Carta Magna no artigo 102, § 2º[3], determina que as suas decisões em controle abstrato possuem efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
Infere-se do próprio dispositivo que o efeito vinculante não alcança todos os órgãos do Poder Público.
Um deles é o próprio Supremo, por motivos lógicos. Não sendo assim, o STF não poderia alterar seus entendimentos – um verdadeiro absurdo. Permite-se a evolução jurisprudencial da Corte Constitucional, adequando-se as alterações sociais e revisando a compreensão de determinados temas, quando convir.
O Poder Legislativo em sua atividade típica e o Poder Executivo em atividade atípica de legislar, a exemplo das Medidas Provisórias, também não são vinculados pelas decisões do Supremo no Controle Concentrado de Constitucionalidade.
O próprio STF justifica o motivo:
Entender de forma contrária afetaria a relação de equilíbrio entre o Tribunal constitucional e o legislador, reduzindo o último a papel subordinado perante o poder incontrolável do Judiciário, acarretando prejuízo do espaço democrático-representativo da legitimidade política do órgão legislativo, bem como criando mais um fator de resistência a produzir o inaceitável fenômeno da chamada fossilização da Constituição. (STF, Recl. 2.617 AgR/MG, Rel. Cezar Peluso, 2005).
Seria uma interferência indevida do Judiciário nos demais Poderes, ferindo a Separação dos Poderes. Ora, a atividade legislativa é confiada aos Poderes pela própria Constituição e pelo povo – que vota e escolhe seus representantes.
Não cabe ao STF determinar como deve ser o conteúdo das leis. Não é sua função. Claro que, existindo leis inconstitucionais, cabe ao Supremo afastar as suas incidência do ordenamento jurídico.