Não obstante as divergências que existem no campo da doutrina 1 e da jurisprudência dos nossos tribunais, entendemos ser possível a fiscalização in abstracto, ou em tese, de lei ou ato normativo municipal através de ADIn, pelos argumentos que se expõem.
É cediço que a Constituição Federal de 1988 em seu art. 102, I, a, deferiu competência ao Supremo Tribunal Federal para processar e julgar, originariamente a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual em dissonância com a CF. Entretanto, a Carta Maior, permitiu paralelamente que os Estados-membros instituíssem igual mecanismo para aferir a constitucionalidade de lei ou ato normativo estadual e municipal perante o seu próprio Estatuto Político, ex vi, art. 125, parágrafo 2º o qual dispõe: "Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão".
Assim, o "silêncio eloqüente" do aludido art. 102 no tocante à fiscalização municipal enseja concluir seja "expressa vontade de restringir o controle de constitucionalidade abstrato ao modelo explicitamente definido no Texto Magno". 2
Nesta linha de intelecção o STF tinha firmado entendimento de que é impossível juridicamente ADIn de lei municipal em confronto com a Carta Magna, e conseqüentemente suspendeu a eficácia de dispositivos de Constituições Estaduais como a do Rio Grande do Sul, pelo fundamento, de que se o STF não pode apreciar ADIn municipal, os Tribunais de Justiça Estaduais, hierarquicamente inferiores também não. 3
Contudo, com a evolução jurisprudencial, vem-se firmando entendimento de que a competência para julgar a ADIn municipal pertence aos Tribunais de Justiça dos Estados, por força do art. 125 parágrafo 2º da CF/88 4. Assim, o Supremo Tribunal Federal bem como os Tribunais inferiores entendem atualmente que "a competência para julgar a ação direta de inconstitucionalidade em que impugnada norma local contestada em face de Carta Estadual é o Tribunal de Justiça respectivo, ainda que o preceito atacado revele-se como pura repetição de dispositivos da Constituição Federal de observância obrigatória pelos Estados"(Reclamação 588-7-RJ). 5
Compartilhamos do entendimento da professora Patrícia Teixeira de Rezende Flores que brilhantemente conclui: "Denota-se, pois, que, a exemplo da ordem constitucional anterior, não há no direito brasileiro, ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tendo como parâmetro a Constituição Federal. Equivale dizer, a invalidade de um ato local, em face da Carta Magna, só pode ser decretada via controle difuso, exercitável incidenter tantum. As normas de constituições estaduais que instituíram o controle de constitucionalidade de leis municipais em confronto com o Texto Maior tiveram sua eficácia suspensa pelo Supremo Tribunal Federal. Para esta Corte, a ausência de previsão constitucional de aferição concentrada de validade dos atos locais não constitui lacuna e/ou esquecimento do constituinte federal. Ao contrário, trata-se de deliberada, consciente e proposital restrição. Em outras palavras, evidencia um silêncio eloqüente e não um vácuo legislativo que possa ser preenchido por meio de interpretação construtiva dos pretórios e/ou pelos constituintes estaduais" 6
Com o mesmo entendimento, o professor Clèmerson Merlin Clève, "se o Constituinte Estadual pode o mais [declarar a inconstitucionalidade em tese de lei municipal ou estadual em face da Constituição Estadual], por que não poderiam o mesmos [declarar a inconstitucionalidade por omissão de medida normativa exigida na Constituição Estadual]?" 7
Assim, conclui o supracitado autor, "Pode, por conseguinte, o Tribunal de Justiça local processar e julgar ação direta contra lei ou ato normativo municipal ou estadual em face da Constituição estadual, mesmo quando esta reproduza dispositivo da Lei Fundamental Federal" 8, com fundamento em decisão do STF 9.
Destarte, de forma clara e impositiva, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a ADIn municipal em seu art. 125, § 2º. Deste modo, o notável Min. Gilmar Ferreira Mendes entende que a ADIn e a ação de inconstitucionalidade por omissão possui como ponto em comum a omissão parcial, e conseqüentemente como o legislador admite a instituição da primeira pelos Estados, está abrangendo também a categoria da omissão. 10
Deste modo, conclui-se que uma lei municipal pode violar tanto a Constituição Federal, quanto as Cartas Estaduais, sendo que na primeira hipótese é completamente inadmissível o controle abstrato ou concentrado 11 perante o STF, restando portanto a via difusa ou incidental 12. Todavia, na segunda hipótese, ou seja, no caso de uma lei ou ato normativo municipal violar uma Constituição Estadual, ainda que esta seja uma norma de repetição da Carta Magna, admite-se a ADIn, sendo competentes para o julgamento os Tribunais de Justiça dos Estados.
Notas
XIMENES ROCHA, Fernando Luiz. in Controle de Constitucionalidade das Leis Municipais, Atlas, p. 130, aduz: "Em verdade, não é concebível que as leis e os atos normativos municipais sejam submetidos ao controle de constitucionalidade concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de inviabilizá-lo para o desempenho de tarefa que lhe é reservada constitucionalmente, haja vista as incontáveis leis e atos normativos produzidos pelos milhares de comunas espalhadas por esse Brasil afora. Também não comungamos com a idéia de confiar tal mister aos Tribunais de Justiça, não só Poe entender tratar-se de uma usurpação da atividade precípua do Supremo Tribunal Federal, qual a de guarda da Constituição da Republica, mas igualmente pelo inconveniente de gerar essa providência um sem-numero interpretações dos preceitos da Carta Federal, com repercussões na chamada ‘crise do supremo’, que se agravaria com a avalanche de recursos extraordinários, interpostos contra as decisões proferidas pelas diversas Cortes de Justiça estaduais. "
MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade, p. 319.
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O Ministro Paulo Brossard, no julgamento da reclamação 337, enfatiza: "Deste modo, o sistema constitucional, até hoje, não admite o sistema de controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal contestado em face da Constituição Federal, nem mesmo perante esta Suprema Corte, que têm como competência precípua a guarda da Constituição. Com maior razão, não se poderia admitir este controle por Tribunais de Justiça Estaduais "
Na ADIn 594033599 TJRGS, em voto vencedor, Des. Osvaldo Stefanello sustentou que: "é possível a ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal violadora de dispositivos da Constituição Estadual, repetitivos de normas constitucionais federais, sem prejuízo de eventual recurso extraordinário para o Supremo Tribunal" mesmo sentido: Reclamação 383-3-SP; ADIn 17 – TGMG.
FLORES, Patrícia Teixeira de Rezende. Aspectos processuais da ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal / São Paulo; Revista dos Tribunais; 2002.
Idem, ibidem, p. 113.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro, p. 394.
Idem, ibidem, p. 403.
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"Reclamação com fundamento na preservação da competência do Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade proposta perante Tribunal de Justiça na qual se impugna Lei municipal sob alegação de ofensa a dispositivos constitucionais federais de observância obrigatória pelos Estados. Eficácia jurídica desses dispositivos constitucionais estaduais. Jurisdição constitucional dos Estados-membros. Admissão da propositura da ação direta de constitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local, com possibilidade de recurso extraordinário se a interpretação da norma constitucional estadual, que reproduz a norma constitucional federal de observância obrigatória pelos Estados, contrariar o sentido e o alcance desta. Reclamação conhecida, mas julgada improcedente" (Recl 383-3-SP, Rel. Min. Moreira Alves).
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:Quem tem competência para julgar a ação direta de inconstitucionalidade de leis municipais em face da Constituição Estadual? Qual a contribuição de Kelsen para o sistema concentrado de jurisdição constitucional e em qual Constituição foi positivada? O que a Constituição Federal de 1988 estabelece sobre a fiscalização abstrata de lei ou ato normativo municipal? MENDES, Gilmar Ferreira, O controle de constitucionalidade de direito estadual e municipal na Constituição Federal de 1988. Revista Jurídica Virtual 3, p. 23.
O sistema concentrado de jurisdição constitucional foi uma contribuição de Kelsen e positivado na Constituição austríaca de 1º de outubro de 1920.
Inspirado no sistema norte-americano da judicial review of legilation pensado pelo juiz Marchall no celebre caso Marbury v. Madison em 1803.