O cerne desse estudo é abordar quais são os argumentos propícios à descriminalização do aborto e se é possível que isso ocorra. Até o momento, foram apresentados argumentos que vão contra à legalização do aborto, todos escorados na religião e no direito à vida.
Porém, existe um ponto congruente nesses argumentos desfavoráveis ao aborto em relação aos argumentos favoráveis: que é o direito à vida.
Uma gravidez pode ser de uma complexidade tamanha, podendo ter como exemplo de conseqüência a trombose que a gestante possa vir a adquirir, que muitas vezes coloca a vida da mãe em perigo.
É fato que a maioria das mulheres preferem fazer um tratamento preparatório para contrair uma gravidez do que serem pegas de surpresa sem um mínimo preparo, como o exame pré-natal.
E, se por ventura, algo sair do padrão de segurança da vida da mulher não há nada que se possa fazer. A mulher deve arcar com as conseqüências da gravidez como se esta fosse uma coisa obrigatória, um ato sacro de cunho divino. A barriga da mulher se torna uma propriedade eclesiástica.
Percebe-se nesse cenário religioso e que protege a vida do feto, mesmo que essa ainda não seja totalmente delimitada de maneira pacífica, que a mulher fica em segundo plano criando, com isso, um paradoxo tamanho em relação à vida da mãe face à gestação e, por conseqüência, a do futuro ser vivo.
É desproporcional dizer e colocar a vida de uma gestante em segundo plano quando a vida do feto depende de uma condição futura que é seu nascimento com vida. Além dessa desproporcionalidade, existe, aqui, nessa carência de permissão para o aborto uma falha na laicidade do Estado.
Como o Brasil se diz laico, deveria haver mais abertura para aqueles que não pertencem a alguma crença ou, que até pertencem, mas compactuam com a possibilidade de se abortar uma gravidez de risco, por exemplo.
Essa falha na laicidade corrompe o pensamento democrático que a Carta Magna traz em seu corpo além de criar uma insegurança quando se diz que o país não tem um pensamento religioso pré determinado pois manter o aborto criminalizado, excluindo a vontade da mulher é uma prova cabal de que a religiosidade também influencia no legislador.
Falando especificamente da gravidez, ela ocorrerá quando acontecer a fecundação. Contudo, tal fecundação pode ser de algumas maneiras, como o descuido com medidas anticoncepcionais. Imagine a gravidez de uma mulher que não tem capacidade financeira ou psicológica para lidar com a gestação. De fato, o vínculo sentimental entre mãe e filho pode ser considerado um dos mais fortes que existem, porém, uma gravidez fruto de descuido, deve gerar um certo sentimento de incerteza na gestante em relação ao filho e ao futuro de ambos.
Neste quadro geral, imagine que ela não consiga abortar. Existe uma potencialidade enorme para que ocorra um infantício, conforme elenca o artigo 123 do CPB. Vejamos: “Infanticídio. Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena - detenção, de dois a seis anos”.
Tal potencialidade se reflete na medida da insegurança da gestante em relação à tudo que um filho traz consigo de responsabilidades e de mudança nos hábitos e na vida dessa nova mãe.
O infanticídio seria provocado por uma omissão do Estado em não permitir ao abortamento da gravidez inusitada. Indo além, essa omissão poderia resultar até na morte da mãe caso a gravidez fosse de risco. Não que a mãe deva sair impune da situação, poderia até criar medidas sócio educativas como forma de coibir um futuro abortamento e como meio de instrução da mulher que preferiu pelo aborto.
E essa intervenção do Estado seria de maneira indireta, seria a possibilidade criada através de lei para a realização do aborto. Desta maneira, não ocorreriam abortos em clínicas clandestinas que colocam em risco a vida da gestante, além da própria gravidez, e não fazem dela uma criminosa conforme elenca o artigo 124 do CPB: “Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento. Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos”.
O aborto não pode ser banalizado de forma que tudo que lhe compete se torne banal, também. Mas vale uma visão mais ampla dos motivos que podem trazer o aborto à legalidade em determinadas situações e, além disso, serve como assunto de saúde pública haja vista a precariedade de atendimento e infra estrutura.
De sorte, existe um projeto de lei de número 4.360/04 que inseriria um novo inciso ao artigo 128 do Código Penal, qual seja esse projeto:
PROJETO DE LEI Nº 4360, DE 2004
Autor: Deputado Dr. Pinotti
Acrescenta inciso ao artigo 128 do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º É isenta de ilicitude a interrupção da gravidez em caso de gestante portadora de feto anencéfalo.
Art. 2º O art. 128 do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso:
“Art. 128..................................................................................
I -.............................................................................................
II -............................................................................................
III – se o feto é portador de anencefalia, comprovada por laudos independentes de dois médicos (NR).”
Art.3º Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.
Esse projeto ganha força e da mostras de que o poder legislativo se apresenta apto à discutir o aborto se legalizar quando do risco de morte apresentado à mulher. O projeto é de 2004, antigo, claro, mas ainda sim já é um passo rumo à mudança geral no pensamento retrógado que retira da mulher o seu direito à vida e seu direito de escolha e coloca, no lugar desses direitos, o dever de a mesma se comportar como um receptáculo, um casulo para proteger a possível vida de um feto que ainda está por nascer.
Coadunando com esse projeto o Supremo Tribunal Federal, em meados de 2012, votou a favor do abortamento da gestação com fetos anencéfalos. Sim, é o poder judiciário criando uma espécie de legislação, porém, é um avanço para o mundo jurídico. Segue trecho da notícia publicada no jornal eletrônico ‘Migalhas’ de 15 de junho de 2015:
No dia 13 de abril de 2012, chegava ao fim no STF o julgamento de um dos mais importantes e históricos casos que já aportaram na Corte Suprema: podem grávidas de fetos anencéfalos optar por interromper a gestação com assistência médica? Capitaneados por memorável voto do ministro Marco Aurélio Mello – que completa 25 anos de brilhante atuação no Supremo – 8 dos ministros votaram que sim, e o STF julgou procedente a ADPF 54, para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção deste tipo de gravidez é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do CP.
De acordo com o entendimento firmado, o feto sem cérebro, mesmo que biologicamente vivo, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, principalmente, de proteção jurídico-penal. "Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica", afirmou o relator.
"No ponto, são extremamente pertinentes as palavras de Padre Antônio Vieira com as quais iniciei este voto. O tempo e as coisas não param. Os avanços alcançados pela sociedade são progressivos. Inconcebível, no campo do pensar, é a estagnação. Inconcebível é o misoneísmo."
A Ação de Descumprimento dos Preceitos Fundamentais (ADPF) fui ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS e sua abertura se dá: “ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações.” (vide in: http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/6/art20150603-07.pdf. Acesso: 22 de junho de 2016).
A CNTS usa em seus argumentos que não haveria suporte fático exigido pela norma na hipótese do anencéfalo pois apenas o feto com potencialidade para nascer com vida pode ser pessoa.
O parâmetro para a discussão se inicia ai. Este ponto que gera argumentação para todos os lados favoráveis ou desfavoráveis para o aborto dos anencéfalos. Contudo, resta confirmar que é uma das decisões mais impactantes na história do STF haja vista a repercussão que ocorreu front ao aborto.
Se a comunidade judiciária se unir com a comunidade legislativa é possível que uma revolução social ocorra dentro do nosso ordenamento jurídico de acordo com aquilo que se espera de uma sociedade laica, o direito de escolher sem influências religiosas.
Para tanto, é preciso que se afaste as crenças daqueles que detém esse poder para que sejam tomadas as decisões corretas à respeito do aborto.