Entre as inúmeras novidades que o projeto de emenda da Reforma do Judiciário apresenta, impõe-se o destaque em relação à exigência de comprovação de três anos de atividade jurídica para o ingresso na carreira. A introdução desse requisito revela-se inconstitucional, além de não atingir os objetivos para os quais foi apresentado, vale dizer, a busca por maior eficiência entre os integrantes da carreira. Destarte, consoante já tivemos oportunidade de registrar [1], a matéria tem de ser analisada à luz dos princípios que comandam toda a atividade administrativa relacionados no caput do art. 37 da Constituição, dentre os quais pedimos vênia para enfatizar os da razoabilidade e da eficiência.
Com relação ao princípio da razoabilidade, em que pese não estar ele expressamente estabelecido no referido comando constitucional, induvidosa a sua importância no desenvolvimento de todas as atividades administrativas. Nesse contexto, sobreleva notar estar ele implícito na redação do art. 37, II, a qual, ao preconizar a necessidade de aprovação em concurso público para a investidura em cargos e empregos públicos, estipulou que as provas e os títulos a serem exigidos do candidato não ficam ao livre critério do administrador mas, ao revés, deverão ser compatíveis com a natureza e a complexidade dessas atribuições. A leitura do dispositivo constitucional revela que essas exigências só se legitimam se estiverem justificadas em vista dos cargos e empregos oferecidos, sob pena de caracterização de abuso de poder por parte do administrador, diretriz esta que se apresenta, também, na redação do art. 39, § 3.º, que permite à lei o estabelecimento de requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo exigir.
Os processos de seleção levados a efeito pelo Poder Público, portanto, somente atingirão o grau de eficiência apontado pela Constituição quando as exigências ali formuladas se revelarem compatíveis, proporcionais, razoáveis com a natureza do cargo ou do emprego colocado em disputa. De resto, outra não foi a diretriz estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando da edição da Súmula n. 683 em relação à fixação de limite de idade em concurso público, posto só ter legitimado a fixação desse critério para aquelas situações em que a natureza das atribuições do cargo a ser preenchido o exigir. Outrossim, sobreleva notar que a busca pela eficiência por meio da razoabilidade das exigências não deve se afastar dos demais vetores estipulados pela própria Constituição, dentre os quais assume importância, para o desenvolvimento dessas reflexões, o do valor social do trabalho guindado à condição de princípio fundamental, a teor do disposto no art. 1.º, IV. Dessa forma, cumpre indagar: a exigência de três anos de atividade jurídica acaba por atender aos objetivos que justificaram a sua inclusão na proposta de emenda de Reforma do Judiciário?
A nosso ver, não, pois, por meio dela, não se conseguirá apurar a eficiência dos candidatos que acorrerem a essa carreira revelando-se, pois, como exigência desarrazoada, além de alijar do certame potenciais candidatos os quais poderiam melhor atender ao interesse da coletividade. Com efeito, em primeiro lugar, o conceito de atividade jurídica, em razão de seu grau de subjetividade, demanda regulamentação, consoante já demonstrado pelo respeitado jurista Hugo Nigro Mazzilli, em artigo publicado no Phoenix, n. 17, jun. 2004. Segundo ele, essa expressão abrangeria o estagiário profissional, reconhecido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o estagiário acadêmico, o Delegado de Polícia, o Escrivão de Polícia, o escrevente judiciário e o Oficial de Promotoria do Ministério Público, além de outras possibilidades. Em seqüência à sua linha de raciocínio, o citado jurista ainda aponta outros óbices indagando: "E, mesmo para o advogado militante, quantas peças profissionais por ano são consideradas efetiva prática de atividade jurídica? Uma, cinco, dez? Ou basta a inscrição na OAB?".
Ousamos, no entanto, discordar do ilustre Mestre quanto à possibilidade de uma boa e sensata regulamentação ter condições de responder a tudo isso, pois, insistimos, essa exigência, além de inconstitucional, uma vez que desarrazoada, revela-se inócua para os fins colimados, vale dizer, a busca por uma maior qualidade dos candidatos nos processos seletivos. Destarte, o tempo de atividade jurídica não surge como instrumento capaz de apurar a eficiência de um advogado pois, durante todo o período de militância, nada assegura a qualidade do seu trabalho e, muito menos, sua sensibilidade para o exercício da Magistratura. Outrossim, o exercício da profissão pode tê-lo transformado em um especialista para uma determinada matéria, fazendo-o perder, por força desse aspecto, uma visão interdisciplinar imprescindível para o exercício de tal mister. Em contrapartida, em que pese nossos Tribunais reconhecerem como legítima a exigência de prática forense para o ingresso em carreiras jurídicas, entendemos que ela acaba excluindo a possibilidade de participação de candidatos recém-saídos dos bancos universitários os quais podem estar em melhores condições para o exercício dessa atividade. Poder-se-ia argumentar que faltaria a esses candidatos mais experiência de vida para o enfrentamento das delicadas situações com as quais se deparam freqüentemente os Magistrados. Da mesma forma, entendemos ser essa uma afirmação frágil, uma vez que nada impede alguém de se tornar bacharel com 25, 30, 40 anos de idade, trazendo consigo a experiência exigida. Não pode ser descartada, ainda, a possibilidade de bacharéis com pouca idade já terem adquirido enorme experiência de vida, às vezes, muito maior que a daqueles com idade mais avançada. Por essa linha de raciocínio, se incluirmos no conceito de atividade jurídica todas as variantes corretamente apresentadas pelo eminente jurista Hugo Mazzilli, então a falta de razoabilidade dessa exigência torna-se ainda mais cristalina. Destarte, em que medida a atividade jurídica como delegado, escrivão, escrevente, estagiário poderia contribuir para aferir a eficiência do candidato para o exercício da Magistratura?
E aqui não se trata de nenhuma afirmação com tom pejorativo com o objetivo de desprestigiar essas carreiras, pois o que se pretende demonstrar é não guardarem elas nenhuma relação de afinidade com a Magistratura de modo a permitir a apuração da eficiência do candidato. De outra parte, se o conceito de atividade jurídica não incluir essas variantes apontadas pelo citado jurista, também estaria mantida a inconstitucionalidade de sua exigência por impedir que essas pessoas possam participar do concurso, pois teriam de abandonar suas atividades, incompatíveis com a advocacia, engrossando a fila de desempregados por pelo menos três anos enfraquecendo, ainda mais, o princípio fundamental do valor social do trabalho. Assim, de se indagar: como então atender aos princípios da razoabilidade e da eficiência sem a utilização dessas restrições inconstitucionais para o ingresso em carreiras públicas?
A resposta, a nosso ver, aponta para a necessidade de manutenção do rigor nas diversas fases do concurso de forma a apurar não só os conhecimentos teóricos e práticos do candidato mas também o seu perfil psicológico, na forma estabelecida pela Súmula n. 686 do STF, sua sensibilidade, enfim, para o exercício da carreira. O mesmo rigor deverá ser adotado durante a vigência do estágio probatório, em que devem ser apurados os itens de ordem prática apontados pelo legislador, tais como: assiduidade; produtividade; disciplina etc. Da mesma forma, deve-se providenciar a regulamentação da regra prevista no art. 41, § 4.º, da Constituição para a avaliação dos servidores candidatos à aquisição de estabilidade e também a do art. 41, § 1.º, III, que preconiza a possibilidade de perda do cargo pelo servidor estável por insuficiência de desempenho.
Como se vê, a própria Constituição prevê os mecanismos capazes de assegurar não só o rigor na escolha dos candidatos em concurso mas também sua manutenção nos quadros da Administração, sem a necessidade de apelar para soluções que, além de discriminatórias, em nada contribuem para a melhoria da qualidade dos integrantes da Administração.
Notas
1Concursos públicos: limitações constitucionais para os editais: doutrina e jurisprudência. 1.ª ed. São Paulo: Editora Damásio de Jesus, 2004.