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Arrependimento posterior e privilégios nos crimes patrimoniais não violentos em casos de ressarcimento do dano

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Trata do aparente conflito entre o arrependimento posterior e os privilégios nos crimes patrimoniais não violentos quando do ressarcimento do dano pelo autor.

 O instituto do “arrependimento posterior” é previsto no artigo 16, CP, de forma que nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, a reparação do dano ou restituição da coisa, até o recebimento da denúncia ou queixa, por ato voluntário do agente, conduz à redução da pena de um a dois terços.

Não obstante, há outros benefícios previstos para crimes patrimoniais não informados pela violência ou grave ameaça. Neste trabalho serão enfocados os chamados “privilégios” previstos para os crimes de furto, apropriação indébita,  estelionato e receptação dolosa, conforme consta respectivamente dos artigos 155, § 2º., CP; 170, CP; 171, § 1º., CP e 180, § 5º., “in fine”, CP.

Para o reconhecimento dos privilégios, exige a lei que o infrator seja tecnicamente primário e o objeto material do crime seja “coisa de pequeno valor”, o que se tem entendido predominantemente na doutrina e na jurisprudência como aquilo cujo valor financeiro não supere a um salário mínimo vigente à época dos fatos. [1] Ainda quanto ao pequeno valor, ocorre um fato interessante: no artigo 171, § 1º., CP o legislador substituiu a referência ao “pequeno valor da coisa” por “pequeno valor do prejuízo”. Isso faz com que o estelionatário seja beneficiado quanto aos requisitos para obter o privilégio. Ocorre que toda coisa de pequeno valor causa um pequeno prejuízo, mas nem sempre quando há um pequeno prejuízo para a vítima, a coisa, objeto material do crime, é de pequeno valor. Exemplificando: no furto, quando se exige que “a coisa seja de pequeno valor”, havendo a subtração de cem mil reais, mesmo sendo o agente primário, não poderá ser privilegiado. Já no caso de um estelionato, mesmo versando sobre um valor alto, como um carro que vale cento e vinte mil reais, se este carro é recuperado e a vítima não sofre prejuízo algum ou sofre pequeno prejuízo, sendo o agente primário, fará jus ao benefício. Essa divergência de tratamento tem sido apontada por alguns como uma patente violação do Princípio da Proporcionalidade. Não sendo possível uma interpretação “contra legem” a prejudicar o réu, propõe-se na doutrina e em algumas decisões jurisprudenciais que se interprete para todos os tipos penais como requisito o pequeno valor do prejuízo (mais amplo e benéfico) e não o pequeno valor da coisa (mais restritivo).  [2]

De qualquer maneira, preenchidos os requisitos supra mencionados, fará jus o réu, no caso do reconhecimento dos privilégios, a três possíveis benefícios:

a)Ter substituída sua pena de reclusão por detenção;

b)Ter diminuída sua pena reclusiva de um a dois terços;

c)Ter substituída sua pena reclusiva por pena pecuniária (multa).

Quanto aos benefícios, entende-se que o Juiz poderá escolher um deles de acordo com a individualização da pena ou, inclusive, aplicar os dois primeiros benefícios conjuntamente (substituir a pena por detenção e reduzi-la de um a dois terços). Isso porque, quem pode o mais (aplicar somente a pena de multa) pode o menos (substituir a pena e reduzi-la, mas ainda aplicando uma pena detentiva, privativa de liberdade). Neste sentido, o escólio de Magalhães Noronha:

“Resta-nos dizer que, substituindo a pena de reclusão pela de detenção, não está o juiz inibido de, mesmo assim, diminuí-la de um a dois terços. Se pode aplicar somente multa, estranho seria que não pudesse substituir e diminuir a pena privativa de liberdade”. [3]

Finalmente importa lembrar a Súmula 554, STF, que afirma que no crime de estelionato por emissão dolosa de cheque sem provisão de fundos, o pagamento do valor antes do recebimento da denúncia, gera falta de justa causa para a ação penal. [4]

Nesse quadro legislativo pode-se entrever um aparente conflito de normas nos casos em que o prejuízo da vítima é ressarcido. Há o instituto da Parte Geral do Código Penal do “arrependimento posterior”, há os privilégios previstos em cada um dos crimes acima elencados (pois com o ressarcimento, obviamente ocorre um pequeno ou mesmo nenhum prejuízo) [5] e ainda existe a Súmula 554, STF específica para o caso do estelionato por emissão dolosa de cheque sem fundos. Qual dos dispositivos aplicar em cada situação?

Em primeiro lugar, importa perceber que não existe de fato um chamado “conflito aparente de normas ou concurso aparente de normas”. Este ocorre quando, num mesmo tempo, em um mesmo ordenamento jurídico, há duas ou mais normas que tratam exatamente do mesmo tema. Então há necessidade de dirimir esse conflito e estabelecer qual das normas deverá ser aplicada, afastando a segunda, que também poderia ser aplicada no mesmo caso. Para isso, são usados os princípios da especialidade, da consunção e da subsidiariedade. [6]

Pois bem, não há que alongar sobre o tema do conflito aparente de normas no caso em estudo. Isso porque, como já dito, não se trata de efetivo conflito, mas sim de uma situação em que, a cada caso concreto, caberá a aplicação de um dos institutos, quais sejam, ora o “arrependimento posterior”, ora os privilégios, ora a Súmula 554, STF. Isso variará de acordo com o tipo penal em questão e os requisitos para a obtenção de um dos benefícios.

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 Consigne-se que, analisando cada um dos institutos, pode-se perceber claramente que a Súmula 554, STF é a mais benéfica ao réu, pois que impede que sequer seja processado. Depois vêm os privilégios, que podem fazer com que o beneficiário seja submetido somente à pena pecuniária, livrando-se de eventual penalidade privativa de liberdade, ainda que de detenção. O instituto de menor benefício é o “arrependimento posterior”, o qual somente prevê a redução de pena.

 Estabelecendo um critério para a distinção dos casos, pode-se dizer que, considerando a especificidade dos crimes de furto, apropriação indébita, estelionato e receptação, que possuem privilégios especiais previstos na Parte Especial do Código Penal, inclusive mais benéficos ao réu, afasta-se claramente, ao menos em regra, a aplicação do instituto da Parte Geral, do “arrependimento posterior”.

No caso do estelionato por emissão dolosa de cheque sem fundos (artigo 171, § 2º., VI, CP), com o efetivo pagamento do valor, sobressai a Súmula 554, STF, tanto sobre o “arrependimento posterior”, quanto sobre o privilégio. Acontece que, como visto, os efeitos benéficos da Súmula 554, STF são bem maiores para o réu do que os demais institutos de Direito. Não será o caso de redução ou substituição de pena, mas de sequer iniciar uma ação penal contra o suspeito por reconhecida falta de justa causa, erigida de forma pretoriana. Ademais a Súmula não exige que o réu seja primário ou menciona qualquer coisa a respeito de um limite de valores. Note-se que a Súmula 554, STF somente faz menção ao estelionato por emissão dolosa de cheque sem provisão de fundos, ou seja, o artigo 171, § 2º., VI, CP. Dessa forma, quanto ao artigo 171, “caput”, CP e mesmo outros incisos do artigo 171, § 2º., CP, a questão deve ser analisada, tendo em conta somente o privilégio e o “arrependimento posterior”, prevalecendo, em regra, o privilégio, pois que mais benéfico e específico.

Neste sentido, dando também o exemplo do regramento previsto para o “Peculato Culposo”, no artigo 312, §§ 2º. e 3º., CP, se manifesta Greco, afirmando que o tratamento mais benéfico de extinção da punibilidade ali previsto deve afastar o artigo 16, CP. [7]

Doutra banda, diz-se que nos casos em que há previsão do privilégio este deve prevalecer, em regra, porque os requisitos para o privilégio são mais exigentes do que os para a aplicação do arrependimento posterior. Para fazer jus ao privilégio o agente tem de ser tecnicamente primário e a coisa subtraída ser de pequeno valor ou haver o pequeno valor do prejuízo, como já visto. Já quanto ao “arrependimento posterior”, o artigo 16, CP não exige primariedade técnica e nem fala sobre valores. Apenas exige que haja a reparação do dano ou restituição da coisa antes do recebimento da denúncia ou queixa por ato voluntário do agente. É bem verdade que não se contenta com um prejuízo restante, exige a restituição ou reparação integral por ato voluntário [8], mas mesmo assim não há necessidade de que o agente seja primário e a coisa de pequeno valor ou haja pequeno valor do prejuízo. Também o “arrependimento posterior” ostenta um requisito temporal, qual seja, a restituição ou reparação deve ocorrer antes do recebimento da denúncia. Por seu turno nos privilégios não há essa exigência temporal, mas isso acaba prejudicado na questão do estabelecimento de um critério para distinção dos casos do artigo 16, CP (“arrependimento posterior”) para os casos de privilégio porque o problema já será dirimido na averiguação das exigências da primariedade e dos valores.  Pode ser, portanto que, dependendo das condições pessoais de antecedentes do agente e/ou do valor da coisa ou do prejuízo, mesmo nos casos de crimes que preveem privilégios, o agente não faça jus a estes (acaso não satisfaça seus requisitos) e, havendo restituído o bem ou reparado o dano antes do recebimento da denúncia, ainda possa ser beneficiado com o arrependimento posterior.

Em resumo:

a)Se o caso é de estelionato por emissão dolosa de cheque sem provisão de fundos e o agente, antes do recebimento da denúncia, paga o cheque, aplica-se a Súmula 554, STF e não há sequer ação penal, afastando-se privilégios ou arrependimento posterior. Isso ocorrerá sempre, sem exceção, porque a Súmula é mais benéfica do que os demais institutos e também menos exigente em seus requisitos (só exige o pagamento do débito).

b)Mesmo no caso de estelionato por emissão dolosa de cheque sem provisão de fundos, se o pagamento se dá após o recebimento da denúncia, não se aplica a Súmula 554, STF, nem o arrependimento posterior, pois ambos exigem que a reparação se dê antes do recebimento da denúncia. No entanto, neste caso, se o agente for tecnicamente primário, havendo, obviamente, um pequeno prejuízo (ou nenhum prejuízo), será possível aplicar o estelionato privilegiado nos termos do artigo 171, § 1º., CP. Mas, se o agente não for tecnicamente primário, mesmo efetuando o pagamento após  o recebimento da denúncia, então somente poderá sua conduta ser levada em consideração favoravelmente pelo magistrado no reconhecimento de atenuante genérica (artigo 65, III, “b”, “ in fine”, CP).

c)No caso dos demais estelionatos, furto, apropriação indébita e receptação dolosa, sendo o agente primário e a coisa de pequeno valor ou de pequeno valor o prejuízo, aplicar-se-á o privilégio respectivo, seja por sua especialidade em relação à regra geral do arrependimento posterior, seja porque é mais benéfico. A Súmula 554, STF não se aplica a estes casos, pois a eles não faz menção. Contudo, mesmo nestes casos, se não for o agente tecnicamente primário ou não for a coisa de pequeno valor ou pequeno o valor do prejuízo, ou seja, faltando algum requisito do privilégio, desde que haja a reparação do dano ou restituição da coisa pelo agente voluntariamente antes do recebimento da denúncia, será aplicável então o “arrependimento posterior” nos termos do artigo 16, CP. Sendo o agente primário e o valor pequeno, não importará a questão temporal do recebimento da denúncia para a aplicação do privilégio, pois que a lei a isso não faz referência. No entanto, se o agente não satisfizer os requisitos do privilégio e pretender se valer do arrependimento posterior, somente o poderá se agir antes do recebimento da denúncia. Após o recebimento desta, mesmo reparando o prejuízo ou restituindo a coisa, essa sua conduta então somente poderá ser levada em consideração favoravelmente pelo magistrado no reconhecimento de atenuante genérica (artigo 65, III, “b”, “ in fine”, CP).

Como se percebe há uma variabilidade de aplicação em cada caso concreto, de acordo com suas circunstâncias e os requisitos legais e pretorianos exigidos. Essa variabilidade, porém, a nosso ver, infringe o “Princípio da Proporcionalidade”. Não se enxerga a motivação para que alguns crimes patrimoniais não violentos como o furto, o estelionato, a apropriação indébita e a receptação tenham benefícios mais amplos que outros em regra, ainda que com certas exigências como a primariedade e o pequeno valor. Mas, mais incoerente ainda é a Súmula 554, STF que empresta tratamento totalmente diferenciado e mais benéfico a uma modalidade de estelionato em detrimento de outros crimes patrimoniais não violentos e mesmo de outras formas de estelionato básico ou equiparado. Não convence o argumento de que com o pagamento o prejuízo causado pela emissão do cheque desaparece, pois que nos outros crimes também a reparação ou restituição terá o mesmo ou similar efeito. [9] Neste sentido se manifesta Barros, afirmando que a Súmula sobredita é anterior à reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984, não tendo mais aplicabilidade com o advento do artigo 16, CP em seu atual formato. Mirabete e Fabbrini ainda indicam o argumento histórico de que a redação do artigo 16, CP se deu exatamente por influência da Súmula 554, STF, que previa benefício apenas para os casos de estelionato por cheque sem fundos com pagamento antes da denúncia. Os Tribunais teriam tentado aplicar esse entendimento sumulado durante tempos a outros casos similares, tanto de estelionato, como de outros ilícitos patrimoniais, sem sucesso. E isso teria motivado o legislador de 1984 a criar o instituto do “arrependimento posterior”. [10] Ora, se a motivação histórica do dispositivo é essa, certamente a Súmula perde seu sentido após a vigência da nova legislação.  Entretanto, a aplicação da Súmula permanece em vários julgados como espécie de medida de Política Criminal, a nosso ver, equivocada, inclusive com o crivo do STF. [11] Todo esse sistema matizado, diversificado, deveria ser repensado com base na adoção de uma regra geral proporcional e razoável para os ilícitos patrimoniais não informados por violência ou grave ameaça, tornando o tratamento equânime. Ademais, isso simplificaria bastante a aplicação e interpretação da lei e conferiria, consequentemente, maior segurança jurídica.

É preciso dizer que a questão da Súmula 554, STF e sua desproporção é criticada neste trabalho, considerando sua aplicação e indicação equivocada para casos onde ocorreu efetiva fraude no pagamento por cheque sem fundos e o agente apenas reparou o dano antes da denúncia. Obviamente, se há no caso uma evidente situação em que ocorreu mero ilícito civil, equívoco na elaboração do cheque, ou seja, se o agente atuou de boa fé, não há se falar em crime realmente e muito menos em justa causa para a ação penal. No entanto, não é isso o que está claramente descrito na Súmula sob comento, o que resulta grande celeuma em sua interpretação e aplicação. Portanto, julgados como o que segue são escorreitos:

“Havendo fraude na emissão do cheque sem fundos, o pagamento deste caracteriza o arrependimento posterior (art. 16 do CP). Não havendo fraude – situação que muitas vezes se revela pelo pagamento antes da denúncia – não há crime a punir” (STJ, RHC – Rel. Asssis Toledo – RSTJ 11~39).

O problema é que na maioria das manifestações doutrinárias e jurisprudenciais não é essa a interpretação dada à Súmula 554, STF, quando se alega sua subsistência mesmo após o advento da reforma da Parte Geral do Código Penal e a atual redação do artigo 16, CP, que prevê o instituto do “arrependimento posterior”.

Por isso é que se propõe uma revisão da matéria da reparação do dano, restituição da coisa e pagamento de valores, bem como dos privilégios, elaborando um tratamento harmonioso e sistemático, com plena proporcionalidade e segurança.

Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Pedro Augusto Indiani

Bacharelando do Curso de Direito do Unisal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos; INDIANI, Pedro Augusto. Arrependimento posterior e privilégios nos crimes patrimoniais não violentos em casos de ressarcimento do dano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4962, 31 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55342. Acesso em: 25 dez. 2024.

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