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O Estado Democrático de Direito e a incipiente advocacia pública brasileira

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Agenda 11/08/2004 às 00:00

Não basta uma advocacia apenas formalmente pública, é imprescindível uma advocacia materialmente pública. Mais do que a independência dos advogados públicos, a sociedade urge pela autonomia dos seus órgãos institucionais.

SUMÁRIO: I – INTRODUÇÃO; II – O DIREITO ADMINISTRATIVO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO; III – ADVOCACIA PÚBLICA; 3.1. Evolução; 3.2. Conceito Atual; IV - AS INSTITUIÇÕES DE ADVOCACIA PÚBLICA E SEUS MEMBROS; 4.1. Considerações Gerais; 4.2. No Âmbito Federal; 4.3. No Âmbito dos Estados-membros e do Distrito Federal; 4.4. No Âmbito dos Municípios; 4.5. A Autonomia das Instituições de Advocacia Pública; 4.6. No Âmbito das Estatais Empresariais com Personalidade Privada; V – CONCLUSÕES.


I - INTRODUÇÃO

Não vamos dissertar, neste trabalho, a respeito do advogado público individualmente considerado, mas, sim, da advocacia pública como um todo. Abordaremos tanto as instituições encarregadas da advocacia das unidades federativas e das demais entidades com personalidade jurídica pública, como os seus integrantes. Paralelamente, pretende-se demonstrar também a importância da existência das instituições Advocacia Geral da União, Procuradorias-Gerais dos Estados e Distrito Federal e Procuradorias-Gerais dos Municípios para a efetividade do Estado Democrático de Direito.

Há vasta doutrina e legislação sobre a independência profissional e isenção técnica dos advogados públicos. Todavia, ainda se engatinha no referente à independência das instituições a que estão vinculados. A união faz a força e instituições fortes implicam no avigoramento da independência de seus membros e vice-versa.

Aliás, sendo o princípio da legalidade um dos engenhos de funcionamento do Estado Democrático de Direito, forçoso reconhecer a necessidade de análise do aspecto legal dos atos administrativos por uma instituição dotada de independência. E, ao mesmo tempo, nas felizes palavras de OLAVO AUGUSTO VIANNA ALVES FERREIRA e ANA PAULA ANDRADE BORGES DE FARIA, garantir aos cidadãos uma atuação na representação judicial do Estado de forma asséptica e impessoal, livre de ingerências indevidas de autoridades públicas, perseguições e favorecimentos. (1)


II – O DIREITO ADMINISTRATIVO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Vamos, desde já, deixar bem claro que o Direito Administrativo só surgiu e encontra sua razão de ser, num Estado fundado na lei. Basta observar ser este um ramo bem recente da ciência jurídica, com pouco mais de dois séculos de existência. Antes havia uma administração, não, porém, um conjunto de princípios e normas próprias para regrá-la e até mesmo limitá-la. Existiam leis e regras, nas sociedades antigas, regulamentando sua organização administrativa e respectiva atuação, só que constituindo mera parte, ora do direito comum, ora do embrionário direito constitucional. "No Direito Romano e na legislação medieval encontram-se vários textos a respeito." (2) Nada, entretanto, que se aproxime de um conjunto sistematizado com autonomia científica. Afinal, alguém já ouviu falar de Direito Administrativo Romano?

Na Idade Média, temos a pulverização do poder e dos Estados, que, posteriormente, se reorganizaram na Idade Moderna. Todavia, o príncipe era a própria lei e, conseqüentemente, formou-se uma concepção de Estado de Polícia, cuja estrutura administrativa apenas reforçava as prerrogativas majestáticas daquele.

Só agora, na Idade Contemporânea, quando "se afirmaram os direitos e prerrogativas dos particulares em face da instituição governamental, com a criação do Estado de Direito, substituindo o Estado de Polícia" (3), é que surgiu a possibilidade de se pensar no direito administrativo como disciplina própria.

E com a evolução do Estado Liberal de Direito para o Social de Direito, afluindo-se no hodierno Estado Democrático de Direito, o Direito Administrativo encontra espaço para se sobressair ainda mais. Mecanismos administrativos devem ser aprimorados, sempre objetivando garantir o efetivo cumprimento dos princípios fundamentais de terceira geração, em sobreposição aos interesses escusos de grupos momentaneamente no poder. Cabendo aos corpos de advocacia pública a representação judicial, assessoria, consultoria jurídica e controle interno das unidades federadas, importante papel lhes é reservado no policiamento da solidariedade e da fraternidade, decorrente da democracia legal. Vislumbra-se, portanto, a necessidade de autonomia e independência não somente de seus membros, mas dos próprios órgãos como uns todos.

Evitar-se-ia, assim, a reprovação e a reforma de pareceres por motivos meramente políticos e a indicação ou manutenção de chefes por razões pessoais ou de "azeitamento" da máquina administrativa. Sem mencionar que reduziria bastante outros tipos de favorecimentos e perseguições, principalmente no que atine à análise de acordos, transações e reconhecimento de pedidos judiciais; permitindo, na mão oposta, o exame imaculado do interesse de se recorrer das sentenças e acórdãos.


III – ADVOCACIA PÚBLICA

3.1. Evolução

Lembra FIDES ANGÉLICA OMMATI que "a advocacia pública foi, historicamente, decorrência da distinção entre o Príncipe e o Estado, de uma parte, e, ainda, entre o Estado-poder e o Estado-sociedade, submetendo-se a organização estatal à limitação da lei." (4) Resgata, outrossim, que "a advocacia pública tem origem comum e conjunta ao hoje denominado Ministério Público, na expressão de DIOGO MOREIRA NETO ‘advocacia da sociedade’, responsável por fiscalizar a aplicação da lei e curar os interesses difusos e coletivos". (5)

Assim, a evolução até o modelo hoje estabelecido teve início nos Estados-membros, mediante essa distinção do atuar jurídico, especializando as funções do Parquet, que, muitas vezes, se situava em incômoda circunstância entre a fiscalização da aplicação da lei, portanto, em atuação custos legis e a de advogado do Estado-administrador, parte no processo. Nesse caso, como conciliar a parcialidade do patrocínio de uma das partes com a natureza e necessária imparcialidade do fiscal da lei? (6)

Esse impasse foi sentido com mais força nos Estados-membros, talvez pela proximidade maior dos fatos e das partes neles envolvidos. Por isso, há mais de meio século, tem-se vivenciado estadualmente a experiência de se separar em corpos especializados distintos o patrocínio judicial, de um lado, e a orientação do aplicar em situações concretas os comandos legais, de outro. E persistiu, até o advento da Constituição Federal de 1988, a representação judicial do Estado-membro pelo Ministério Público, para suprir deficiência de pessoal e de estrutura das Procuradorias dos Estados (cf. OMMATI, 2001).

Do mesmo modo que no processo penal ficou constada a necessidade de distinção das funções de acusar, defender e julgar, distribuindo-as a órgãos diversos, abolindo o processo inquisitório e o procedimento judicialiforme, a experiência da advocacia pública, como Advocacia de Estado, geralmente organizada em Procuradorias do Estado, demonstrou essa inevitável especialização das funções de defesa judicial do Estado, quando em conflito de interesses com os particulares ou a instituição de promoção dos interesses da sociedade (Ministério Público). Forçoso, portanto, o reconhecimento da necessidade de diferentes instituições autônomas, cada qual desempenhando com independência sua função essencial à Justiça. Destarte, foram assentados constitucionalmente o Ministério Público (arts. 127 a 130), a Advocacia Pública (pelo menos em nível federal e estadual, arts. 131 e 132), a Defensoria Pública (art. 134) e até mesmo a advocacia privada (art. 133).

Finalmente, o fenômeno penetrou na dimensão federal, alcançando plenitude com a promulgação da Lei Complementar n.º 73/93, que regulamentou a organização de sua advocacia, delimitada pela Constituição de 1988. Anteriormente, o patrocínio dos feitos nos quais era parte a União cabia aos Procuradores da República, excetuados os que versavam matéria tributária. A atividade de consultoria, por seu turno, era inteiramente desvinculada do procuratório e desempenhada por consultorias (cf. OMMATI, 2001).

3.2. Conceito Atual

A advocacia pública é o conjunto de funções permanentes, constitucionalmente essenciais à Justiça e ao Estado Democrático de Direito, atinentes à representação judicial e extrajudicial das pessoas jurídicas de direito público e judicial dos órgãos, conselhos e fundos administrativos excepcionalmente dotados de personalidade judiciária, bem como à prestação de consultoria, assessoramento e controle jurídico interno a todos as desconcentrações e descentralizações verificáveis nos diferentes Poderes que juntos constituem a entidade federada. (7)

Em suma, a advocacia pública compreende as atividades advocatícias, prestadas sob regime administrativo, em qualquer setor do Poder Público e em prol deste. "Constituem a representação judicial e a consultoria núcleo de um conjunto de funções, que se distribuem em três tipos de atividades: a orientação, a defesa e o controle jurídicos da atividade administrativa." (8) DIOGO MOREIRA NETO explicita essas funções, indicando a orientação jurídica bipartida em assistência e consultoria, sendo esta função exercida com autonomia e em beneficio imediato da própria ordem jurídica, enquanto a assistência (9) é função ancilar e de apoio, exercida sem tanta autonomia e em benefício de um órgão de decisão administrativa (cf. OMMATI, 2001). Ai reside uma das diferenças em relação ao Ministério Público.

Quanto à atividade de defesa, o grande impasse diz respeito a "não se confundir a defesa do Estado com defesa do governo, se bem que, por vezes, possa ocorrer". (10) E tal se deve ao fato de que do mesmo modo que no processo penal ao réu deve ser efetivamente garantida a ampla defesa, ao Estado também se deve garanti-la, porque ambas as hipóteses encarnam interesses indisponíveis. Pode-se afirmar categoricamente que "no plano da defesa jurídica, a evolução é marcada pela defesa dita integral, que inclui a judicial e extrajudicial". (11)

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A defesa do Estado consiste exatamente na defesa dos interesses que a pessoa pública encarna e é vocacionada a realizar. E defesa, igualmente Estado, aí tem conotação de amplitude obrigatória, vez que se não pode restringir a patrocínio judicial ou extrajudicial em situações conflitivas. (12)

Pode perfeitamente ocorrer de se ter que defender o governo, uma vez que este dá tônica à atuação estatal, o que, inclusive, determina o comportamento do Estado em ações populares e civis públicas. Mas não se pode chegar ao absurdo de advogados públicos defenderem a pessoa do governante em processos criminais ou de mero interesse particular, porque aí, sim, este estaria patrimonializando mão-de-obra qualificada estatal em benefício pessoal. Aliás, o que o Estado ganharia com isso? Nada, só o governo! Não se justifica, portanto, dito patrocínio judicial por advogados públicos.

Já a terceira e nova função, qual seja, o controle jurídico da atividade administrativa é reputada por muitos como a mais importante, pelas modalidades de que se pode revestir, e sinaliza para um acompanhamento simultâneo da atividade administrativa (cf. OMMATI, 2001). Em Goiás, Rio de Janeiro, Ceará e Piauí, o Poder Constituinte decorrente atentou-se bem para isso, atribuindo às Procuradorias desses Estados verdadeira função de controle interno.

Isso decorre também de importante vertente posta ao advogado, hodiernamente e para o futuro, que é a prevenção de litígios. Assim, particularmente ao Advogado Público, decorrem as atribuições de consultoria e assessoria jurídica, o que significa dizer o exame de atos já praticados ou em fase de preparo. E do cumprimento dessas tarefas, vislumbra-se a natural vocação da advocacia pública para a atividade de controle interno (cf. OMMATI, 2001).

Feita toda essa abordagem, queda-se inerte de dúvidas que a advocacia pública é uma atividade tipicamente estatal, configurando uma autêntica carreira de Estado. Destarte, só pode ser realizada por pessoal que integre a própria administração, restando obviamente vedada, em princípio, a contratação de advogados ou escritórios de advocacia. E assim deve ser exercida em qualquer rincão do Poder Estatal, desde o núcleo da tripartição dos poderes, passando pelo Ministério Público, até a mais longínqua autarquia ou fundação pública do Poder Executivo. A assertiva vale para a União, Estados, Distrito Federal e, progressivamente, para os Municípios.

O mandato outorgado por lei é para o patrocínio do interesse público, pautando-se pela moral aplicação impessoal do ordenamento jurídico, sem perder de vista a exigência de eficiência e respeito à dignidade da pessoa humana. Logo, adverte MÁRIO BERNARDO SESTA, não é um simples advogado dos governantes, como poderia parecer à primeira vista:

Diz advocacia pública aquela que aconselha ou patrocina interesses de pessoas jurídicas de direito público, interesses em que prevalece não a vontade do agente mas a da coletividade consagrada no ordenamento constitucional ou legal. (13)

E DALMO DE ABREU DALLARI tangenciava por similar sentir:

O Procurador Público é quem torna certo que o Poder Público não é imune ao Direito. Compete-lhe defender os interesses sociais, particularizados numa entidade pública, sem excessos ou transigências, sempre segundo o Direito. Consciente de que o poder político e a atividade administrativa são expressões da disciplina jurídica das atividades de direção e administração da sociedade, o Procurador, orientando ou promovendo a defesa de interesses, jamais deverá omitir o fundamento jurídico de seu desempenho. E sua consciência jurídica não há de permitir que, pela vontade de agradar ou pelo temor de desagradar, invoque o Direito segundo critérios de conveniência, para acobertar ações ou omissões injustas. (14)

Por razões não destoantes, a advocacia pública está abordada no texto constitucional como uma das funções essenciais à justiça. SERGIO DE ANDREA FERREIRA interpreta o vocábulo Justiça estendendo-o além da mera prestação jurisdicional para açambarcar também uma atuação justa do mecanismo estatal, não única e estritamente legal, mas participante de um dos processos de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos (cf. OMMATI, 2001). No Estado Democrático de Direito, é inegável que, ao exercer suas funções, o Advogado Público pratica a Justiça, por meio da atuação pautada pelos princípios da legalidade e moralidade administrativas.

A expressão ‘Justiça’ empregada pelo legislador constituinte, para qualificar a essencialidade da função da Advocacia Pública, há de ser interpretada em acepção ampla, para significar não só a atividade típica exercida pelo Poder Judiciário, como também ‘a justiça abrangente da equidade, da legitimidade, da moralidade’, afinal, na prestação de consultoria jurídica é inegável que o Advogado Público pratica a Justiça. (15)

Ainda assim, infelizmente, a advocacia pública não foi tratada como um todo pela Constituição da República, mas apenas em alguns aspectos e de modo confuso. Originalmente, a Seção II do Capítulo IV era denominada simplesmente "Da Advocacia-Geral da União", mas seu art. 132 também tratava de carreira diversa, qual seja, a de Procurador do Estado e do Distrito Federal.

A Emenda Constitucional n.º 19/98 corrigiu em parte a deficiência, mudando a denominação da Seção para "Da Advocacia Pública". Todavia, outras persistiram, conforme veremos a seguir.


IV - AS INSTITUIÇÕES DE ADVOCACIA PÚBLICA E SEUS MEMBROS

4.1. Considerações Gerais

Os advogados públicos reúnem-se em órgãos, nos quais são organizados em carreiras, constituindo-se assim verdadeiras Instituições de Advocacia Pública, personagens da ribalta do Estado Democrático de Direito.

A reunião se dá de acordo com a esfera federativa a que estão vinculadas. Desse modo, temos a Advocacia-Geral da União, as Procuradorias Gerais dos Estados e do Distrito Federal e as Procuradorias Gerais dos Municípios. Todas integradas por advogados públicos em sentido lato.

Disso, podemos concluir que advogado público é gênero, do qual, entre nós, são espécies o Advogado da União, o Procurador da Fazenda Nacional, o Procurador Federal, o Procurador do Estado, o Procurador do Distrito Federal e o Procurador do Município, bem como os Assessores, Consultores e Técnicos Jurídicos abrigados pela regra de transição do art. 69 do ADCT. (16)

4.2. No Âmbito Federal

Feliz foi a inclusão da advocacia pública federal na Constituição da República, em que pese o conteúdo do texto não ser dos melhores.

Com asserto, por um lado, dispôs que cabe à Advocacia-Geral da União (AGU) representar judicial e extrajudicialmente a União. Vejam só, não é apenas a representação do Poder Executivo, mais do que isso, é a da União, compreendendo seus três Poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, e o Ministério Público. A respeito da judicial, todos já estão cansados de saber; quanto à extrajudicial, esclarecemos que, muitas vezes, a representação judicial tem por pressuposto uma atuação extrajudicial. Sem mencionar que o Advogado-Geral da União despacha juntamente com o Presidente da República e pode avocar quaisquer matérias jurídicas de interesse da União, inclusive no que concerne a sua representação extrajudicial (Lei Complementar n.º 73/93, art. 4º, II, e § 2º).

Pecou, por outro turno, na abordagem das atividades de consultoria e planejamento, limitando-se a mencionar o Poder Executivo.

Tudo bem que o Poder Judiciário e o Ministério Público não precisam de assessoramento jurídico, uma vez que seus membros são juristas. Mas se, por acaso, criarem assessorias jurídicas para as áreas meio, somente poderão ser ocupadas por advogados públicos efetivos e concursados, e de preferência integrantes da instituição que centraliza a advocacia pública da respectiva unidade federativa.

E o Poder Legislativo? Ficaria aberta a possibilidade de terem suas próprias Assessorias ou Procuradorias Jurídicas, inclusive com a argumentação de se garantir a efetiva separação dos Poderes. Todavia, acreditamos que o mais correto seria a AGU ter um órgão de consultoria jurídica na Câmara dos Deputados e outro no Senado, principalmente porque já cabe ao Advogado-Geral da União a defesa dos atos legislativos impugnados via ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103, § 2º).

Outra particularidade da advocacia pública federal é a Instituição denominada Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), incumbida de representar a União, especificamente na cobrança da dívida ativa de natureza tributária (CF, art. 131, § 3º).

Não vemos nada de errado nisso, o problema foi que o art. 12 da Lei Complementar n.º 73/93 a colocou como órgão administrativamente subordinado ao titular do Ministério da Fazenda, ou seja, à pessoa física que ocupe momentaneamente o cargo de Ministro da Fazenda. Isso não contribui em nada com o Estado Democrático de Direito, porque a PGFN pode atuar com excesso de exação ou prodigalidade, consoante a personalidade do titular da Pasta fazendária, que nem sempre é um jurista ou sequer tem muita noção de justiça.

Pecado semelhante ocorreu com a colocação das Consultorias Jurídicas da AGU subordinadas aos Ministros de Estado, ao Secretário-Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República. Subordinação deveria haver apenas à Consultoria-Geral da União e ao Advogado-Geral da União. Além do mais, este é de livre nomeação pelo Presidente da República, atendidos os requisitos do art. 131 da Constituição da República, o que por si só já é suficiente para evitar a AGU de se transformar num quarto ou quinto Poder.

Finalmente, testificou a Constituição que à AGU cabe a representação da União, diretamente ou através de órgão vinculado. Desse modo, foi criada em 2002 a Procuradoria-Geral Federal (Lei n.º 10.480, art. 9º), órgão vinculado à AGU e encarregado da representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas federais e das respectivas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos, bem como da apuração da liquidez e certeza dos créditos dessas entidades. Enfim, regulamentou a advocacia pública nas descentralizações administrativas federais dotadas de personalidade jurídica de direito público, atribuindo-a aos Procuradores Federais. Verificaram-se apenas alguns transtornos nas Agências, especialmente as reguladoras, em razão da autonomia destas aparentemente se contrapor ao fato dos Procuradores Federais estarem vinculados à AGU.

4.3. No Âmbito dos Estados-membros e do Distrito Federal

Na seara estadual e distrital temos as suas respectivas Procuradorias-Gerais, com previsão igualmente constitucional. Na verdade, o art. 132 só dispõe expressamente a respeito dos Procuradores. Contudo, assevera que eles devem ser organizados em carreira, o que afasta a possibilidade de serem espalhados pela Administração sem nenhum critério. As carreiras se materializam nas Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal: mais do que locais, verdadeiros órgãos institucionais onde seus membros se concentram. (17)

O constituinte quis que a representação judicial e a consultoria jurídica das unidades federadas fossem exercidas pelos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, carreira na qual o ingresso depende de concurso público. O texto constitucional é de um seco silêncio eloqüente, não deixando margem a exceções, a não ser a do art. 69 do ADCT. As assessorias jurídicas dos órgãos da administração direta, criadas a partir de 5 de outubro de 1988, são inconstitucionais, principalmente se a lotação for por advogados comissionados. Podem até existir, mas desde que sejam lotadas exclusivamente com Procuradores do Estado (ou do Distrito Federal), subordinados unicamente a integrantes da carreira. Essa intenção do Poder Constituinte foi justamente para assegurar a manutenção de um efetivo Estado Democrático de Direito. Advogados chefiados pelos governantes e arriscados de serem mandados embora a qualquer momento não estão blindados para um compromisso exclusivo com o interesse público. Portanto, devem ser progressivamente suprimidas as consultorias jurídicas distintas existentes na data da promulgação da Constituição Cidadã. Salientamos que a instituição de novas está absolutamente vedada. O expresso entendimento do Pretório Excelso não destoou de tal sentir, em liminar concedida na ADI n.º 881, proposta pela OAB contra a lei complementar capixaba instituidora de cargos comissionados de Assessor Jurídico no Poder Executivo.

No Pará, tentou-se uma simbiose, declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado de constitucionalidade. Não se admitiu a redação original dos parágrafos do art. 310 da Constituição Estadual, que atribuíam aos consultores jurídicos os mesmos direitos e deveres dos Procuradores do Estado. (18)

Há sólida doutrina defendendo que aos Procuradores dos Estados-membros e do Distrito Federal competem a representação judicial e consultoria de toda a entidade estatal, e não apenas do Poder Executivo. Ainda assim, a maioria das Constituições Estaduais limitou essa atividade ao Poder Executivo, com toda certeza, inspiradas no tratamento constitucional da Advocacia-Geral da União, analisados alguns parágrafos atrás. E acatamos que essas normas constitucionais devam mesmo ser combinadas. Todavia, até que ponto isso é possível? Dificílima a resposta, tanto que, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a criação, no Estado de Goiás, da Procuradoria da Fazenda Estadual, subordinada ao titular da Secretaria da Fazenda, com carreira própria de Procuradores da Fazenda Estadual (ADI 1679/GO). Poucos sabem que, na verdade, o STF foi levado a tomar uma decisão política para enterrar perniciosos fatores reais de poder que pretendiam, por via obliqua, impedir os Procuradores do Estado de exercerem o controle interno da legalidade dos atos do Poder Executivo, previsto pelo art. 118, § 1º (antigo parágrafo único), da Constituição Goiana. Esvaziar-se-ia progressivamente a Procuradoria do Estado para que os governantes deitassem e rolassem em ilegalidades, incentivando, ao mesmo tempo, o filé da atividade advocatícia de execução fiscal. (19)

A melhor técnica legislativa, portanto, seria a de especificar o Estado como ente beneficiário da atividade de aconselhamento jurídico do Advogado Público ou, alternativamente, na melhor forma prevista nos textos constitucionais dos Estados de Goiás, Rio de Janeiro e Ceará, conferir à Procuradoria do Estado a atribuição de fiscalizar a legalidade dos atos do Poder Executivo, verdadeira função de controle interno da ação administrativa. (20)

Afinal, como o próprio nome diz, são Procuradores do Estado (ou do Distrito Federal) e não "Procuradores do Poder Executivo". Destarte, a consultoria deveria se estender a todos os Poderes que compõem o Estado. (21)

Reconhecemos que a confusão se dá porque indiscutivelmente o Poder Executivo captura a maior parte da atividade administrativa, e, pois, dirige o conjunto de órgãos e entidades componentes da Administração Pública (cf. OMMATI, 2001). Conseqüentemente, as atividades de assessoramento e consultoria estarão voltadas predominantemente para o Poder Executivo.

Quase à unanimidade, as Constituições estaduais dispõem corretamente quea advocacia do Estado, como função institucionalizada e organizada por lei complementar, tem como órgão de execução a Procuradoria Geral do Estado. (22) Entretanto, de modo geral, excepcionam a regra, prevendo a existência de Procuradorias da Assembléia Legislativa. Entendemos equivocada a representação judicial por meio deste órgão, eis que em última análise é a da própria unidade federativa, incumbência da Procuradoria-Geral do Estado. Já a consultoria e assessoramento jurídico atravessam o delicado tema da separação dos poderes, impossível de ser enfrentado com sisudez na pequena extensão deste trabalho. Mas uma coisa é certa, a única interpretação possível é a prelecionada por GISELLE BENARROCH BARCESSAT, tendo em vista a ressalva do art. 90 da Constituição do Pará, que resguardou a seara de atuação da Procuradoria Geral do Estado:

A atuação da Procuradoria da Assembléia Legislativa se apresenta legítima para os processos judiciais que envolvam a defesa dos interesses institucionais da Casa Legislativa, sua independência e funcionamento, atos interna corporis ou referentes ao processo legislativo, bem como para proteger e assegurar as prerrogativas de seus membros. (23)

A tese foi ventilada na ADI n.º 1557, ajuizada em razão da Emenda n.º 9/96 que, modificando a redação de dispositivos da Lei Orgânica do Distrito Federal, institui a Procuradoria Geral da Câmara Legislativa. O entendimento firmado foi o de que o Poder Legislativo possui autonomia para manter, em sua estrutura, setor especializado na consultoria e assessoramento jurídico de seus órgãos estatais para os casos em que a Câmara apresente-se em juízo em nome próprio. Nesse diapasão, julgou-se procedente em parte o pedido, para declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do caput do citado art. 57, a fim de esclarecer que a representação judicial do Poder Legislativo pela Procuradoria Geral da Câmara Distrital limita-se aos casos em que essa Casa compareça em juízo em nome próprio - ficando excluídas, portanto, as hipóteses em que esta atua na defesa de interesses da pessoa jurídica do Distrito Federal, vencido, no ponto, o Min. Marco Aurélio, que julgava procedente o pedido e declarava a inconstitucionalidade do referido artigo. [24]

Quanto às entidades da administração indireta, a interpretação literal da Constituição Federal não impede as autarquias e fundações públicas estaduais de terem seus corpos próprios de advogados públicos, desde que, obviamente, compostos de advogados em caráter efetivo. Sobre as empresas públicas e sociedades de economia mista discorreremos especificamente mais adiante.

A possibilidade do chefe da Procuradoria-Geral não ser integrante da carreira também desafia os limites de combinação dos artigos 131 e 132 da Constituição Federal. Pela letra isolada do último não poderia; já combinando com o primeiro, seria possível com as mesmas restrições impostas à escolha do Advogado-Geral da União. O Supremo Tribunal Federal, porém, entende ter o Governador absoluta liberdade de escalação. (25)

Apesar de a maior parte das Constituições Estaduais reconhecerem ao Governador do Estado a prerrogativa de escolher o Chefe da Procuradoria Geral fora da instituição, somos pela aplicação exclusiva do artigo 132, exatamente por ser a advocacia pública uma carreira de Estado. Nas felizes palavras da colega SANDRA REGINA MARIA FERREIRA DANTAS, ao contrário dos Secretários de Estado, o Procurador-Geral efetivamente exerce a advocacia pública, não sendo um mero administrador do órgão. Em razão de aprovar pareceres e delegar competências aos demais procuradores, conclui afirmando que necessariamente deve ser da carreira, "porque somente pode delegar competência quem tem competência". (26)

Por essa e outras razões, discordamos do tratamento de Secretário de Estado que lhe é outorgado por diversas Constituições estaduais.

De qualquer modo, o cargo de Procurador-Geral do Estado ou do Distrito Federal, assim como o de Advogado-Geral da União e o de Procurador-Geral do Município, é um dos mais difíceis e complexos. Exige-se que seja político, mas sendo ao mesmo tempo jurista! Não é para qualquer um, porque não pode travar a máquina administrativa, interpretando ortodoxamente a lei a ferro e fogo, e nem pode permitir que o Presidente, Governador ou Prefeito achem que são a própria lei ou que estejam acima dela. É quem lembra constantemente o Chefe do Estado de seu compromisso democrático com o ordenamento jurídico, dissuadindo-o de eventuais empreitadas despóticas. É o elo de intersecção entre a vontade do governante e a lei. Enfim, é o homem que modera o Poder Executivo e, talvez por isso, tenha-se equivocadamente restringido as atividades de consultoria e assessoramento jurídico da AGU ao Poder Executivo, trilha seguida por diversas Constituições estaduais.

As atribuições do Advogado-Geral ou Procurador-Geral da Entidade Estatal diferem bastante das do Procurador-Geral do Ministério Público. Este tem sua atuação pautada por uma cega legalidade neutra, desvinculada da linha de ação estatal determinada pelo Governo, tanto que exerce um mandato, sendo nomeado pelo Chefe do Poder Executivo, com discricionariedade de escolha restrita à lista tríplice de integrantes da carreira, eleitos por seus pares. Aquele, por sua vez, é o responsável pela consecução, dentro da legalidade, dos resultados concretos propostos pelo governo democraticamente eleito para conduzir o Estado. Em função disso, é simplesmente nomeado pelo Chefe do Poder Executivo, podendo ser substituído a qualquer momento, eis que não exerce um mandato, tendo sido julgados inconstitucionais os dispositivos que condicionavam a escolha a listas elaboradas no seio do próprio órgão. (27)

Sua esteira de trabalho deve sempre se orientar pela brilhante lição de DALMO DE ABREU DALLARI:

Só o direito pode assegurar uma ordem social justa. [...] Com efeito, se o Direito é o padrão objetivo do justo, devendo por isso ter bem compreendido o seu conteúdo e assegurada sua aplicação eficaz, é evidente que os procedimentos desconformes com o Direito não atendem às exigências do sentimento generalizado de justiça. A ordem obtida fora do Direito ou frontalmente contra ele é uma ordem injusta, que não condiz as exigências da dignidade humana. Com efeito, a ordem que não se vincula ao Direito só pode ser produto da força e, assim sendo, serve apenas para coisas ou para irracionais, não para homens. (28)

4.4. No Âmbito dos Municípios

A Constituição da República silenciou sobre o tema. Talvez um lapso decorrente da então recente inclusão dos Municípios no pacto federativo. Em parte verdade, pois CESAR ANTONIO ALVES CORDARO esclarece que a quantidade de Municípios e a diversidade de situações engessariam essas unidades estatais se tratadas todas igualmente, impondo um encargo excessivo a pequenas localidades, "jejunas de recursos e, muitas vezes, sem a real necessidade de serviço jurídico estruturado nas proporções de uma Procuradoria Geral". (29)

Mas é fato incontroverso que os Municípios, como entidades estatais, estão investido de autonomia político-administrativa e conseqüentemente possuem personalidade jurídica de direito público interno. Destarte, necessitam de representação judicial e extrajudicial. E como seus agentes políticos devem rigorosa observância aos princípios da administração pública, imperioso reconhecer o "necessário assessoramento técnico, através de um órgão especializado, estruturado através de cargos acessíveis mediante concurso de provas e títulos, cujos ocupantes tenham a garantia da estabilidade". (30)

Por outro lado, é inegável que existem Municípios sem condições de instituírem Procuradorias. E, em alguns, não apareceria ninguém sequer para prestar o concurso. Logo, inteligente a solução de Emenda Constitucional, estabelecendo critério de obrigatoriedade vinculado ao número de habitantes (cf. ALVES CORDARO). Essa seria, inclusive, a única hipótese de se admitir a constitucionalidade do art. 13, V, da Lei n.º 8.666/93 na seara da administração direta.

Sob tal ótica deve ser interpretada a curiosa competência da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná de prestar orientação jurídica aos Municípios, em caráter complementar ou supletivo (CE, art. 124, V).

4.5. A Autonomia das Instituições de Advocacia Pública

Em 1992 foi apresentada a Proposta de Emenda n. 96-B, inserindo um segundo parágrafo no artigo 132 da Constituição Federal, nos seguintes termos: "Às Procuradorias Estaduais e do Distrito Federal são asseguradas autonomia funcional e administrativa, e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º". Chegou a ser aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados, mas foi prejudicada pelas supervenientes modificações da Reforma do Judiciário.

Independentemente disso, há, em diversas Constituições Estaduais, previsão de quadro próprio de pessoal para serviços auxiliares, organizados em carreira (31), "assegurando, com isso, que os Procuradores do Estado voltem sua atenção exclusivamente para o desempenho da atividade fim da instituição". (32) Ainda mais longe foram as dos Estados do Acre, Ceará, Paraíba, Piauí e Rio de Janeiro, prevendo autonomia funcional, administrativa e financeira, havendo na do Mato Grosso a prerrogativa de elaboração da proposta orçamentária.

Esses dispositivos, embora não encontrem respaldo expresso na Constituição da República, não contrariam qualquer princípio do texto supremo, [...] pois a autonomia funcional, financeira e administrativa é conditio sine qua non para o pleno exercício das funções constitucionais confiadas à Advocacia do Estado. (33)

Todavia, sempre que provocado, o STF se manifestou pela inconstitucionalidade. Realmente, é difícil a conciliação da autonomia com a vinculação do Procurador-Geral ao Governador, mas parece que se tem alcançado relativo sucesso no Estado do Rio de Janeiro.

4.6. No Âmbito das Estatais Empresariais com Personalidade Privada

Em sede de empresas públicas e sociedades de economia mista, mister diferenciar se foram autorizadas legalmente à prestação de serviços públicos ou a exploração de atividades econômicas. No primeiro caso, deverão ter um corpo organizado próprio de advogados empregados; no segundo, por se submeterem às regras de direito privado (CF, art. 173, § 1º, II), poderão tanto ter advogados empregados como contratar escritórios ou profissionais liberais, observada, em regra, a exigência de prévia licitação (CF, art. 173, § 1º, III).

Saliente-se que em ambos os casos continua sendo advocacia pública em razão da disciplina constitucional do art. 173, que prevê, para tais entidades, estatuto jurídico próprio, a ser estabelecido por lei, dispondo sobre a sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e sociedade, bem como licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública.

Sobre o autor
Cláudio Grande Júnior

procurador do Estado de Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GRANDE JÚNIOR, Cláudio. O Estado Democrático de Direito e a incipiente advocacia pública brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 400, 11 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5580. Acesso em: 25 dez. 2024.

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