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A soberania do povo na fiscalização do exercício de sua soberania

Agenda 18/08/2004 às 00:00

Soberano que não é instrumentado a fiscalizar o exercício de sua soberania não é soberano. Proceder-se a votação e a apuração eletrônica, acompanhada da impressão física das cédulas, de forma a garantir a aferição necessária, é uma das soluções.

Resumo

A soberania do povo, em nome do qual todo o poder é exercido, tem no direito ao voto universal e secreto o meio de expressão da soberania popular. Tal direito carece de amplo exercício de fiscalização para sua completa efetivação. Fiscalização esta que deve ser exercida e compreendida, motu próprio, pelo eleitor comum, mediano, titular primeiro desta soberania.

O soberano que não é instrumentado a fiscalizar o exercício de sua soberania não é soberano. De nada vale um poder, uma prerrogativa, desprovido dos meios necessários à sua verificação pelo seu titular.

Conclui-se que urge conciliar a irremovível instrumentação da soberania popular com as conveniências da tecnologia. Proceder-se a votação e a apuração eletrônica, acompanhada da impressão física das cédulas, de forma a garantir a palpável, testemunhável, eventual aferição que venha a fazer-se necessária, é uma das soluções.


1. Introdução

A história da democracia evolui na razão direta do direito, liberdade e segurança do voto.

Quanto ao direito, pode-se elencar duas instâncias.

Primeiro, o desafio de alternância na gestão pública. O poder imperial baseava-se na aristocracia de nascimento. Reinado de inspiração divina. Hereditariedade do soberano.

Segundo, a luta em universalizar a interação coletiva na "res publica". A participação, direta ou mediante representantes eleitos, progressivamente, foi debelando as diversas discriminações, a exemplo da econômica (v.g., voto censitário), religiosa (v.g., castas), racial (v.g, escravos), sexual (v.g., mulheres), cultural (v.g., analfabetos), profissional(v.g., militares de estamentos inferiores), etc., bem assim os inúmeros artifícios elitistas, como eleições indiretas, colégios eleitorais viciados (v.g., senadores "biônicos"), exclusão de unidades da federação (v.g., zonas de segurança), afora a brutalidade explícita da força, a exemplo dos golpes de estado (v.g., atos institucionais).

Sem descurar da sábia máxima, "o preço da liberdade é a eterna vigilância", pode-se afirmar que o Brasil, inobstante as marchas e contramarchas, galgou essa universalização do direito ao voto.

A liberdade, contudo, está em permanente busca de sua plenitude. Qualquer vício na vontade do eleitor cerceia a liberdade de seu voto. Desde a truculência do cabresto coronelista, passando pela coação moral do poder econômico, corrupção do sufrágio, voto famélico, atingindo a insidiosa trucagem da propaganda eleitoral, chegando a sutil manipulação das pesquisas e veiculação dos fatos políticos do pleito, são diversas formas de uma idêntica agressão, qual seja, usurpar a soberana decisão do cidadão definir em quem ele quer votar. O sigilo do sufrágio (art. 14, "caput", da C. F.), a ampla criminalização de sua cooptação (art. 299 do Código Eleitoral), a estrita regulação da propaganda eleitoral (arts. 36 a 57 da Lei nº 9.504/97), são expressões de igual necessidade, tutelar a liberdade no exercício do voto.

De sua parte, a segurança do sufrágio, entendida como a rigorosa fidelidade entre a vontade expressa pelo eleitor e o resultado apurado e declarado pela instituição eleitoral, também carece de constante aprimoramento. Afora a probidade e competência das autoridades eleitorais, o "modus faciendi" da votação e apuração cumpre decisiva função na busca dessa segurança. A consistência e eficiência desse coíbe os desvios daquelas.


2. Análise

Sabidamente, a criação da Justiça Eleitoral, 1932, foi decisiva ao saneamento dos pleitos contra as repetidas fraudes. Nas primeiras eleições, indiretas, às Câmaras Municipais, ainda quando o Brasil era colônia de Portugal, o eleitor de primeiro grau aproximava-se da mesa eleitoral e dizia ao escrivão, em segredo, o nome de seis pessoas, os eleitores de segundo grau. O escrivão, por sua vez, anotava as indicações e, terminada a votação, os juizes e vereadores apuravam os vencedores.

No Império e Primeira República, o voto, inobstante fechado, não era secreto. O sufrágio sempre era consumado sob a presença de alguém. Não havia previsão da cabine indevassável na seção eleitoral, nem a prescrição de cédula oficial.

A identificação do voto, em princípio, fator de segurança, reprimindo a adulteração quando da apuração, dobra-se ao imperativo da liberdade, uma vez que o mais absoluto sigilo é decisivo à defesa contra constrangimentos em prejuízo do cidadão eleitor. Princípio justificador de todos os cuidados, a exemplo do que preconiza espaço na urna suficiente a não permitir que as cédulas acumulem-se na ordem na qual foram introduzidas(art. 103, IV, do Código Eleitoral).

Quanto ao ato de votar, sinteticamente, evoluiu-se ao seguinte processo recebimento da senha, apresentação do título, assinatura nas folhas de votação, recepção da cédula, entrada na cabine indevassável, introdução da cédula na urna, rubrica do presidente nas folhas de votação, recebimento do título pelo eleitor, datado e rubricado pelo presidente da mesa.

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No que refere à apuração dos votos, em suma, é manual, pública, procedida pela Justiça Eleitoral, auxiliada por escrutinadores por ela convocados, sob a fiscalização do Ministério Público e Partidos Políticos.

Quanto à votação, a urna eletrônica alterou o último e mais relevante ato, a recepção do sufrágio. No que refere à apuração, modificou radicalmente, automatizando o processo.

Nada de manual, táctil, visível, audível, odorante ou sápido.

A urna eletrônica traz o fenômeno da intangibilidade. Aos triviais sentidos do cidadão (Eleitor, Juizes Eleitorais, Membros do Ministério Público, Candidatos, Membros de Partidos Políticos, etc.), o magnetismo da informática é incorpóreo, não testemunhável. Urge confiar no atestado técnico. Tão somente eles, os técnicos, e apenas eles, estarão aptos a debater e a conhecer do assunto.

A aferição da urna eletrônica restringe-se ao hermetismo da ciência avançada. Pela simples razão que nenhum ato é imune à fraude, a informática, nada mais que um produto do engenho humano, também insere-se nessa vala comum. Basta ver a adulteração de inúmeros sistemas, considerados, até então, indevassáveis. Como toda a tecnologia de ponta, sua lógica é a da espiral do incessante aperfeiçoamento. Eterna e recíproca superação entre os mecanismos de proteção e os artifícios da violação.


3. Conclusão

Contudo, mesmo fosse cientificamente possível garantir a segurança técnica, isso não seria suficiente. Impõe-se disponibilizar ao cidadão, através de suas faculdades normais, motu próprio, a possibilidade de sindicar a devida observância à sua vontade eleitoral.

A Constituição da República, de forma lapidar e definitiva, estabelece a pedra fundamental do Estado Brasileiro, após certificar que "... todo o poder emana do povo..." (art. 1º,§ único, da C.F.), diz que "a soberania popular é exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto ..."(art. 14, "caput", da C.F.).

De sua parte, um dos sustentáculos do Direito Constitucional, vital a conferir efetividade aos preceitos fundamentais, é a conhecida teoria/doutrina dos poderes implícitos, traduzida pelo extraordinário Mestre Paulo Bonavides, ao dizer que "... na interpretação de um poder, todos os meios ordinários e apropriados a executá-lo são considerados sempre parte do próprio poder..."(Curso de Direito Constitucional, Malheiros, 10ª edição, p. 432).

De que vale um poder, uma prerrogativa, desprovido dos instrumentos necessários à sua efetivação?!?!?

Soberania pressupõe poder supremo. Onde está a supremacia do povo em um processo cuja apuração não é instrumentado por mecanismos que permitam-lhe certificar-se da soberania de sua vontade?!?!?. Pior. Sequer os agentes operadores, Membros da Justiça Eleitoral, do Ministério Público, dos Partidos Políticos, Candidatos, são, diretamente, dele dotados. Apenas assistidos por técnicos.

Soberano que não é instrumentado a fiscalizar o exercício de sua soberania não é soberano.

É inerente, "ratio essendi" da soberania popular, que todo o processo eleitoral, alistamento, registro de candidaturas, propaganda política, votação, apuração, diplomação, etc., sejam aferíveis pelo titular dessa soberania, o povo. Aferíveis, diga-se, por todo o eleitorado, desde o mais rutilante PhD até o excluído analfabeto. A propósito, nunca é demais lembrar que o Brasil é País dos excluídos.

Inegáveis os avanços da urna eletrônica. O Código eleitoral de 1932 já prescrevia a utilização de "máquinas de votar". A imagem favoreceu a correta identificação dos candidatos pelo eleitor, reduzindo o número de erros e sufrágios nulos. A rapidez na apuração cerceou delongas que, muitas vezes, ensejavam fraudes. De sua parte, a supressão do contato humano, igualmente dificultou distorções. Todavia, enquanto a adulteração tradicional fazia-se voto a voto, a eletrônica procede-se no atacado. Pior. Seu rastro, quando existente, é infinitamente menos perceptível.

Urge conciliar a irremovível instrumentação da soberania popular com as conveniências da tecnologia. Proceder-se a votação e a apuração eletrônica, acompanhada da impressão física das cédulas, de forma a garantir a palpável, testemunhável, eventual aferição que venha a fazer-se necessária, uma das soluções.

Sobre o autor
Celso Antônio Três

procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TRÊS, Celso Antônio. A soberania do povo na fiscalização do exercício de sua soberania. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 407, 18 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5595. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Texto elaborado para o Seminário do Voto Eletrônico, realizado na Câmara dos Deputados, em maio de 2002.

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