Conclusões
Postas tais considerações, podemos elencar as seguintes conclusões acerca deste escrito:
1. O Poder Executivo editou, recentemente, uma medida provisória proibindo o funcionamento dos bingos. O Senado rejeitou-a, à falta de seus pressupostos constitucionais, ensejando a discussão sobre a responsabilidade do Estado pelos danos decorrentes desses acontecimentos;
2. A República Federativa do Brasil é um Estado de Direito, ou seja, aquele criado e regulado por uma Constituição, no qual o exercício do poder é dividido entre órgãos independentes e harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser necessariamente observada pelos demais e que os cidadãos, sendo titulares de direitos, possam opô-los ao próprio Estado;
3. Se o Estado se submete às leis, decorre que o Estado deve ser responsabilizado quando cause danos a alguém, vale dizer, o Estado de Direito é o ponto fulcral da teoria geral da responsabilidade civil do Estado;
4. A responsabilidade civil extracontratual do Estado passou por três fases: irresponsabilidade do Estado (the king can do no wrong), responsabilidade subjetiva do Estado (faute du service) e responsabilidade objetiva do Estado;
5. A responsabilidade objetiva do Estado se desdobra nas teorias do risco integral e do risco administrativo; aquela se observa quando o Estado puder ser acionado por quaisquer prejuízos experimentados por terceiros, ainda que não tenha sido responsável por eles; nesta, só poderá ser acionado por prejuízos que efetivamente houver causado a terceiros, sendo-lhe lícito, ainda, invocar em sua defesa excludentes de responsabilidade;
6. A teor do art. 37, § 6º, da CR, o Brasil adotou a responsabilidade objetiva na modalidade risco administrativo, importando apenas a relação de causalidade entre o dano e o ato do agente, sendo despiciendo averiguar-se a ocorrência de culpa;
7. O dano indenizável é aquele certo, especial e anormal, visto sob a ótica do sujeito passivo, de maneira que é indiferente a licitude da conduta do agente. Tais requisitos devem ser provados pelos bingos que se pretendam indenizar;
8. A responsabilidade do Estado por atos legislativos engloba todas aquelas espécies normativas previstas no art. 59. da Constituição da República, entre as quais se incluem as medidas provisórias;
9. O regime jurídico das medidas provisórias sofreu grande modificação com o advento da Emenda Constitucional 32/2001, ao qual se deve dar especial atenção;
10. Medida provisória não é lei, mas tem força de lei. Trata-se de mais um argumento que permite concluir que a responsabilidade civil do Estado por atos legislativos também vale quando se trata de medida provisória;
11. Os requisitos da medida provisória são a urgência e relevância, observado que a discricionariedade na avaliação da urgência não é absoluta, a permitir o STF apreciar a presença desses requisitos em determinados casos;
12. Além disso, ex vi da Emenda Constitucional 32/2001, cada uma das Casas do Congresso Nacional fará prévio juízo sobre o atendimento de tais pressupostos constitucionais (§ 5º do art. 62. da CR) antes de deliberar sobre o mérito das medidas provisórias;
13. Trata-se de relevante inovação, pois trouxe ao ordenamento pátrio mais uma forma de controle preventivo de constitucionalidade, em que o Legislativo previne futura inconstitucionalidade por vício de forma, qual seja, ausência de pressupostos da urgência e relevância da matéria. Foi justamente o que ocorreu no caso dos bingos;
14. A medida provisória que não for convertida em lei no prazo constitucional, ou a que for rejeitada, perderá seus efeitos desde a sua edição, cabendo ao Congresso Nacional disciplinar por decreto legislativo as relações jurídicas decorrentes da incidência da medida provisória.
15. A medida provisória apenas suspende a eficácia da norma modificada. Confirmada a medida provisória, revoga-se a legislação anterior. Não apreciada ou rejeitada, a norma modificada se restabelece.
16. A responsabilidade civil extracontratual do Estado por atos legislativos tem traços peculiares em relação à sua teoria geral, lembrando, novamente, que vale também para as medidas provisórias.
17. Afirma-se, de um lado, que não há como se responsabilizar o Estado pela atividade legislativa, mormente porque os supostos danos seriam fruto de legislador democraticamente eleito pelo povo; de outro, afirma-se que tal doutrina já está superada, pois é dever do legislador editar leis constitucionais, com o que concordamos;
18. Sobre as leis incide o princípio da presunção de constitucionalidade, de maneira que a responsabilidade do Estado por atos legislativos não prescinde, em primeira análise, da declaração de inconstitucionalidade do ato normativo pelo STF;
19. O mesmo não vale para o ato normativo de efeitos concretos, pois este mais se assemelha a um verdadeiro ato administrativo, autorizando concluir-se que, nesses casos, a responsabilidade do Estado ocorre mesmo que o ato normativo esteja em conformidade com a Constituição;
20. Assim, se a medida provisória que proibiu os bingos de funcionar no país é de efeitos concretos, pois atinge apenas determinadas pessoas, não há que se falar na necessidade do reconhecimento da sua inconstitucionalidade para ensejar a responsabilidade do Estado;
21. Num ou noutro caso, porém, não há como o Estado pretender deixar de reparar os danos resultantes da medida provisória em comento, já que, tendo sido ela rejeitada pelo Senado pela falta de seus pressupostos, reputa-se claramente inconstitucional, sendo essa declaração fruto do próprio Poder Legislativo;
22. Ou seja, em se considerando a medida provisória como de efeitos concretos, não há que se falar na sua inconstitucionalidade; do contrário, sua inconstitucionalidade é patente, pois reconhecida pelo próprio Legislativo. Vale dizer, em qualquer caso, há elementos suficientes para concluir que o Estado deve responder pelos danos dela advindos.
BIBLIOGRAFIA
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13ª ed., São Paulo: Atlas, 2001.
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23ª ed., São Paulo: Malheiros, 1998.
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RUSSAR, Andrea. O novo regime constitucional das medidas provisórias, instituído pela Emenda Constitucional n.º 32/2001. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n.º 100, 11/10/03. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/4251/o-novo-regime-constitucional-das-medidas-provisorias-instituido-pela-emenda-constitucional-n-32-2001>. Acesso em 26/5/04.
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SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Medidas Provisórias: instrumento de governabilidade. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n.º 64, 04/03. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/3956/medidas-provisorias-instrumento-de-governabilidade>. Acesso em 26/5/04
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 14ª ed., São Paulo: Malheiros, 1998.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. v. 1, 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2003.
Notas
Interessante debate foi apresentado no jornal "Folha de São Paulo". Cf. na edição de 06 de março de 2004 os artigos de Luiz Flávio Borges D´Urso e Carlos Aurélio Mota de Souza, p. 03. (Brasil).
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23ª ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 530.
op. cit., p. 530.
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Grifos nossos
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 38-39.
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. v. 1, São Paulo: Saraiva, 1988, p. 420-421.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 13ª ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 806.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. v. 1, 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 278.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo:Atlas, 2002., p. 898-899.
PROCESSUAL – LIQUIDAÇÃO – PEDIDO CERTO – RISCO ADMINISTRATIVO – INDENIZAÇÃO. Nosso ordenamento jurídico acolheu a teoria do risco administrativo. Segundo ela surge a obrigação de indenizar o dano só do ato lesivo e injusto causado à vítima. (STJ, 1ª Turma, Resp 158201-RJ, DJU 15.6.98, p. 00043, rel. Min. Garcia Vieira, j. 17.3.98)
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PRESCRIÇÃO – DEMORA INERENTE AO MECANISMO DA JUSTIÇA – RISCO ADMINISTRATIVO – OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR O DANO – FERIMENTO OCORRIDO DURANTE O TREINAMENTO MILITAR. A teoria do risco administrativo requer apenas a prova do dano e o nexo causal para ensejar à administração a obrigação de reparar o dano. (STJ, 1ª Turma, Resp 184076-RN, DJU 01.02.99, p. 00127, rel. Min. Garcia Vieira, j. 05.11.98, v.u.)
A DMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – DANO CAUSADO A TERCEIROS – TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO – INDENIZAÇÃO – DIREITO DE REGRESSO – DENUNCIAÇÃO À LIDE – POSSIBILIDADE. Adotou o direito brasileiro, em sede de responsabilidade civil do Estado, a teoria do risco administrativo, com a possibilidade de o Estado, após indenizar os lesados, acionar regressivamente o agente causador do dano, em caso de dolo ou culpa deste. (RDJTJDFT 63/95)
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13ª ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 519.
op cit., p. 511.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. op cit., p. 827.
Idem, p. 828.
MEIRELLES, Hely Lopes. op. cit., p. 541.
SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Medidas Provisórias: instrumento de governabilidade. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n.º 64, 04/03. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/3956/medidas-provisorias-instrumento-de-governabilidade>. Acesso em 26/5/04.
As medidas provisórias configuram espécies normativas de natureza infraconstitucional, dotadas de força e eficácia legais. (RTJ 151/331, trecho de voto da lavra do Min. Celso de Mello)
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 14ª ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 151.
Idem, p. 151-152.
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FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 207.
O que legitima o Presidente da República a antecipar-se, cautelarmente, ao processo legislativo ordinário, editando as medidas provisórias pertinentes, é o fundado receio, por ele exteriorizado, de que o retardamento da prestação legislativa cause grave lesão, de difícil reparação, ao interesse público. (RTJ 151/331, trecho de voto da lavra do Min. Celso de Mello).
Os requisitos de relevância e urgência para edição de medida provisória são de apreciação discricionária do Chefe do Poder Executivo, não cabendo, salvo os casos de excesso de poder, seu exame pelo Poder Judiciário. Entendimento assentado na jurisprudência do STF. (STF – Pleno – ADIn 2150-8/DF – Medida liminar, rel. Min. Ilmar Galvão, DJU 28.4.00, p. 71)
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 531.
RUSSAR, Andrea. O novo regime constitucional das medidas provisórias, instituído pela Emenda Constitucional n.º 32/2001. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n.º 100, 11/10/03. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4251/o-novo-regime-constitucional-das-medidas-provisorias-instituido-pela-emenda-constitucional-n-32-2001>. Acesso em 26/5/04.
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ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 331.
op. cit., p. 520.
op. cit., p. 538.
idem, p. 538.
A esse respeito, ver o brilhante trabalho de LEONARDO MEDEIROS JÚNIOR. Responsabilidade civil do Estado legislador. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n.º 44, agosto de 2002. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/492/responsabilidade-civil-do-estado-legislador>. Acesso em 26/5/04.
idem, p. 520.
Um bom exemplo desses danos são os lucros cessantes, pois é óbvio que as casas de jogos deixaram de aferir um ganho razoável enquanto fechadas.