1 INTRODUÇÃO
O novo Código Civil de 2002, em seu art. 1.228, parágrafos 4° e 5°, trouxe a lume uma nova figura jurídica, aparentemente desconhecida dos doutrinadores pátrios, que vem causando grande celeuma no meio jurídico. Os doutos do direito vêm-se digladiando na busca por respostas às intrincadas questões que surgem de sua análise, parecendo não haver consenso entre a doutrina no que concerne aos pontos mais importantes do novel instituto.
Dentre os escritores que se aventuraram a pesquisar a matéria, poucos foram os que propuseram alternativas hermenêuticas que tornassem viável a aplicação da figura jurídica de modo a compatibilizá-la com os ditames da Magna Carta. Muitos preferiram trilhar o caminho da crítica vazia, sentenciando à morte um instituto que acabara de nascer. O pessimismo generalizado não contribuiu, em nenhum aspecto, para o aprofundamento das discussões em torno das intrigantes questões que pululam quando da análise do tema.
O presente trabalho propõe-se, dentro do possível, a enriquecer a frugal literatura existente sobre o assunto, colacionando novos argumentos e levantando novos questionamentos essenciais à correta interpretação e aplicação do instituto. Fugindo das lucubrações negativistas de parte da doutrina, o que se tem por escopo neste artigo é apresentar soluções, ainda que não definitivas, para a real aplicação da original figura jurídica trazida pelo art. 1.228 do CC/2002.
2 APLICAÇÃO E INTERPRETAÇÃO
Entende Carlos Maximiliano1 que a hermenêutica jurídica “[...] tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito”. Já para Clóvis Beviláqua2 “[...] interpretar a lei é revelar o pensamento que anima as suas palavras”.
A eficácia do Direito depende, de um lado, do legislador que elabora as leis, decretos e códigos e, de outro, da qualidade da interpretação realizada pelo aplicador das regras jurídicas.
Busca-se, através das técnicas hermenêuticas, o verdadeiro sentido da norma, utilizando-se, o intérprete, de diversos recursos e conhecimentos variados, visando adentrar o âmago das coisas e decodificar a mensagem contida no texto legal. Sendo objeto cultural, obra humana, a norma está impregnada de significados, cabendo ao intérprete desvendá-los3.
A aplicação do novel instituto trazido pelo art. 1.228 em conformidade com os novos ditames constitucionais exige do intérprete a delimitação do alcance dos conceitos jurídicos positivados na respectiva norma. É esse trabalho que agora nos propomos realizar.
2.1 CONSTITUCIONALIDADE
A análise da constitucionalidade dos parágrafos 4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil constitui pressuposto lógico e necessário ao estudo da aplicabilidade do novo instituto.
O controle de constitucionalidade está umbilicalmente ligado à idéia de supremacia da Constituição Federal. A superioridade da Lex Legum em relação às demais, pertencentes a um dado ordenamento jurídico, se verifica quando o processo de sua alteração é diferenciado, tornando-se mais complexa e custosa a sua modificação. Assim, apenas as constituições rígidas, como a brasileira de 1988, admitem esse tipo de controle.
Segundo o magistério de Alexandre de Moraes4, controlar a constitucionalidade significa ”[...] verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a constituição, verificando seus requisitos formais e materiais”.
O requisito formal consubstancia-se no respeito ao processo legislativo discriminado detalhadamente na Lei Maior. O material, por sua vez, consiste na verificação da compatibilidade do conteúdo da norma com a Constituição Federal. Desrespeitadas qualquer dessas condições, a lei ou ato normativo objeto do controle deverá ser extirpada do ordenamento jurídico pátrio por meio da declaração de sua nulidade5.
Parte minoritária da doutrina vem pugnando pela declaração de inconstitucionalidade do dispositivo, lastreando seus argumentos num hipotético desrespeito ao direito fundamental da propriedade. Essa é a opinião, por exemplo, de Carlos Dabus Maluf que, de forma veemente, demonstra a sua repulsa pelo novo instituto:
[...] Essas regras estatuídas nos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do novo Código Civil abalam o direito de propriedade, incentivando a invasão de glebas urbanas e rurais, criando uma forma nova de perda do direito de propriedade, mediante o arbitramento judicial de uma indenização, nem sempre justa e resolvida a tempo, impondo dano ao proprietário que pagou os impostos que incidiram sobre a sua gleba. [...] Tal forma de usucapião, que aniquila o direito de propriedade previsto na Constituição,configurando-se em um verdadeiro confisco, incentiva a invasão de terras urbanas, subtrai a propriedade de seu titular, sem ter ele direito a qualquer indenização. Essas regras, a do novo Código Civil e a do art. 10 e seus parágrafos da Lei n. 10.257/2001, devem ser modificadas por um projeto de lei específico, evitando-se que o Judiciário seja obrigado, por intermédio de inúmeras ações que haverão de surgir, a declará-las inconstitucionais, já que sua constitucionalidade já é posta em dúvida por outros juristas6 [...].
Não vislumbramos, contudo, qualquer agressão de natureza material ao texto constitucional. O que a norma faz é resolver uma aparente antinomia entre dois princípios de magnitude constitucional, quais sejam, o direito de propriedade, insculpido no caput do art. 5º da Lei Maior, e a função social da propriedade. Inconcebível que a garantia ao direito do proprietário paire acima de um dos pilares da Carta Magna que é o respeito à sua função social.
Esse foi o entendimento, inclusive, que se chegou na I Jornada de Direito Civil promovida pela Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça: “É constitucional a modalidade aquisitiva de propriedade imóvel prevista nos §§ 4º e 5º do novo Código Civil” (Enunciado 82).
O controle de constitucionalidade substancial das leis restritivas de direitos fundamentais deve se operar mediante a técnica da proporcionalidade ou proibição de excesso (Ubermass) desenvolvida pelos alemães. Este princípio, que vem ganhando força na doutrina brasileira, condiciona o exercício da função legislativa, evitando o abuso ou a fraude à Constituição por meio da lei. Assim é que os vícios substanciais podem ser apontados em uma perspectiva diversa da adotada tradicionalmente.
A proporcionalidade (Verhaltnismassigkkeitsprinzip) é constituída por três elementos ou subprincípios: a) adequação (Geeignetheit); b) necessidade (Enforderlichkeit); e c) proporcionalidade em sentido estrito (Verhaltnismassigkeit)7.
O subprincípio da adequação ou idoneidade consiste na verificação da compatibilidade entre o meio escolhido e o fim pretendido. Não há qualquer consideração, nesse estágio, acerca do grau de eficiência dos meios aptos a alcançar a finalidade. Resume-se, em realidade, ao julgamento sobre a pertinência lógica da relação meio-fim. Assim, por exemplo, uma norma que proíba as crianças saírem de casa após as vinte e duas horas não nos parece ser idônea e efetiva no combate ao crime8.
No que toca mais especificamente ao art. 1.228, não há razão para duvidar que o contradireito9 é meio idôneo para a consagração da função social da propriedade. Através deste instituto, o proprietário inerte é punido pela sua excessiva passividade, enquanto que os possuidores que trabalharam em prol da comunidade são beneficiados pela aquisição do imóvel. Privilegia-se, assim, o uso racional e produtivo da propriedade.
Por seu turno, o pressuposto do subprincípio da necessidade é que, segundo Suzana de Toledo Barros, “a medida restritiva seja indispensável para a conservação do próprio ou outro direito fundamental e que não possa ser substituída por outra igualmente eficaz, mas menos gravosa10”. Deve-se perquirir o meio mais idôneo causador da menor restrição possível.
A aferição da exigibilidade da limitação a um direito fundamental dá-se tanto qualitativa como quantitativamente. Mesmo apresentando-se apta quanto ao modo restritivo, a medida pode se revelar inadequada quando questionada a sua duração no tempo.
A restrição estabelecida nos parágrafos 4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil se apresenta, ao nosso ver, como um dos meios, ao lado das figuras da usucapião e da desapropriação, mais eficazes no combate à subutilização dos imóveis urbanos e rurais. Diferentemente da usucapio, inclusive, o antigo proprietário receberá como recompensa uma indenização justa dentro da nova perspectiva civil-constitucional.
Por fim, com o princípio da proporcionalidade em sentido estrito busca-se o equilíbrio entre a gravosidade do meio implantado e o fim a ser alcançado. Pondera-se, destarte, os bens jurídicos em jogo com o escopo de balancear as vantagens proporcionadas e os prejuízos sofridos11.
No que tange particularmente ao confronto entre o direito de propriedade e o princípio da função social, Gilmar Ferreira Mendes12, baseando-se nas lições de Pieroth e Schlink, sistematizou a aplicação do princípio da proporcionalidade:
a) o legislador deve considerar as peculiaridades do bem ou valor patrimonial objeto da proteção constitucional; b) o legislador deve considerar o significado do bem para o proprietário; c) o legislador deve assegurar uma compensação financeira ao proprietário em caso de grave restrição à própria substância do direito de propriedade. Embora não se tenha uma expropriação propriamente dita, a observância do princípio da proporcionalidade recomenda que se assegure ao proprietário que sofreu graves prejuízos com a implementação da providência legislativa uma compensação financeira; d) se possível, deve o legislador atenuar o impacto decorrente da mudança de sistemas mediante a utilização de disposições transitórias (Ubergangsregelungen), evitando as situações traumáticas, de difícil superação (Hartenfallen).
Diante do exposto, constata-se que a medida adotada pelo legislador ordinário para concretizar o princípio constitucional da função social da propriedade é razoável e adequada. Não há que se falar, assim, em inconstitucionalidade material dos parágrafos 4º e 5º do art. 1.228, vez que consentâneos com a ordem constitucional vigente e com a nova tábua axiológica erigida no direito civil.
2.2 CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS
O atual Código Civil, idealizado pelo filósofo, jurista e codificador Miguel Reale, tem sem suas bases assentadas no culturalismo. Como bem observa Judith Martins-Costa13, nenhum “[...] código provém do nada, nenhum código opera no vazio. O seu modelo sempre expressa uma reflexão e uma tomada de posição diante do mundo – isto é, uma filosofia”. O Direito nada mais seria, portanto, do que uma espécie de experiência cultural, apresentando-se como “síntese ou integração do ser e do dever-ser, de fatos e de valores, quer em experiências particulares, quer na experiência global dos ordenamentos objetivados na história14”.
A normatização, encarada sob o aspecto tridimensional do Direito – fato, valor e norma -, é o momento pelo qual os fatos e valores ganham objetividade e concreção. Esta fase, contudo, não se esgota em um único instante. Ao revés, é processual e prospectiva, manifestando-se nos usos e costumes, no exercício da autonomia negocial, na repetição dos julgados dos Tribunais e nas decisões do legislador.
A experiência jurídica não se resume mais, ainda segundo a corrente culturalista, a um positivismo formalista, sofrendo as influências das experiências de uma determinada sociedade em dado momento histórico. “O acesso ao mundo se não dá apenas através do ´espírito interior`, através da reflexão, mas também através do espírito difundido nas relações históricas e no mundo humano15” .
Assim é que o “momento normativo” vai constantemente sofrendo modificações, voltado não para o passado, mas poroso às inúmeras transformações ocorridas no seio social e nos modos de pensar, sentir e querer da pessoa humana – ponto central do ordenamento jurídico. O homem afirma-se, então, tanto como individualidade atuante como membro da comunidade16.
O novo Codex, atento à essas novas realidades fenomênicas, instaurou o que se convencionou chamar de “razão comunicativa”, permitindo o diálogo com outras fontes normativas e extra-jurídicas, conformando, pois, o “modelo da complementaridade intertextual”. Deste modo é que se operou uma significativa abertura no que concerne à linguagem utilizada pelo Código, através da positivação de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados em pontos estratégicos17.
O modelo fechado e totalitário do Código Civil de 1916, baseado numa comunicação meramente intra-sistemática, restou abandonado. Como a interação com outras fontes, sejam jurídicas ou extra-normativas, se dava de modo apenas formal (regras da lei no tempo, lei no espaço e hierarquia da fontes legislativas), o jus civile permanecia inabalável aos novos acontecimentos e às intempéries da vida social18.
O jurista moderno deve ler o novo Código buscando informações nos demais sub-sistemas (Sociologia, Engenharia, Economia, Medicina, Estatística, Biologia, Informática, Direito Constitucional, etc.,) para interpretar e preencher as regras ainda incompletas do Diploma Cível. O magistrado, assim, ganhou maior flexibilidade para adaptar a norma à dinâmica da vida social, preenchendo o conteúdo dos dispositivos de acordo com o caso concreto19.
Desenha-se, destarte, um novo tempo em que o outrora hermético Código Civil de 1916 dá lugar ao permeável Código de 2002, polarizado por valores, notadamente aqueles de cunho fundamental e essenciais à concretização do princípio-maior da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da Carta Magna).
Inúmeros são os exemplos de normas “parcialmente em branco” que permitem a concretização pelo aplicador do direito. O art. 133, por exemplo, da Lei Civil, estatui que os negócios jurídicos “devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos e os costumes do lugar de sua celebração”. Neste mesmo sentido, o art. 421 dispõe: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social da propriedade”.
No que interessa mais de perto o nosso estudo, o art. 1.228, em seus parágrafos 4° e 5°, afirma que:
4º. O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, estas houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§5º. No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores (grifos nosso).
O novo instituto traz em seu bojo, como se depreende da leitura do dispositivo, inúmeros conceitos jurídicos indeterminados, abrindo ao magistrado um amplo leque de possibilidades para o preenchimento de seus conteúdos jurídicos20.
Analisaremos cada um dos desses conceitos, traçando parâmetros mínimos para a sua interpretação e aplicação razoável, sempre tendo em vista os princípios e direitos fundamentais estampados na Lex Legum.
2.2.1 Imóvel Reivindicado
O Código Civil de 2002 adotou três critérios para classificar os bens: a) bens considerados em si mesmos (móveis ou imóveis, arts. 79 a 84); b) bens reciprocamente considerados (principais ou acessórios, arts. 92 a 97); c) bens considerados em relação ao sujeito (públicos ou privados, arts. 98 a 103).
É a conceituação de bens imóveis que mais nos interessa no particular. Estes podem ser subdivididos em: a) imóveis por sua própria natureza; b) imóveis por acessão física, industrial ou artificial; c)imóveis por acessão intelectual; d) imóveis por determinação legal.
Pertencem à primeira categoria “o solo com a sua superfície, os seus acessórios e adjacências naturais, compreendendo as árvores e frutos pendentes, o espaço aéreo e o subsolo” (art. 43, I, CC/16). Assim é que o solo e tudo quanto estiver ou for incorporado mediante coesão orgânica, como os minerais e as quedas-d´água, sem a interferência do labor humano, será considerado imóvel por sua própria natureza. Importante lembrar, porém, que as árvores destinadas ao corte, constituem bens móveis por antecipação.
Na segunda classificação se enquadra “tudo o que o homem incorporar permanentemente ao solo, como a semente lançada à terra, os edifícios e construções , de modo que se não possa retirar sem destruição, modificação, fratura ou dano”. Vale ressaltar que não perdem a natureza de imóveis os materiais provisoriamente separados de um prédio para nele mesmo se reempregarem, e, bem assim, as edificações que, separadas do solo, mas conservando a sua unidade, forem removidas para outro local (art. 81, I e II, CC/02). Já as construções provisórias ou temporárias, destinadas à sua breve remoção, como, por exemplo, os stands em feiras e exposições, circos e parques de diversão, não se enquadram na presente classificação21.
Por sua vez, o imóvel por acessão intelectual é aquele que o proprietário mantém “intencionalmente empregado em sua exploração industrial, aformoseamento ou comodidade”. Como bons exemplos temos os aparelhos de ar-condicionado, os maquinários agrícolas e as escadas de emergência. Dependendo da vontade de seu titular, podem ser a qualquer tempo mobilizados22.
Por fim, os imóveis por disposição legal são certos bens incorpóreos como os direitos reais sobre imóveis, as ações que os asseguram e o direito à sucessão aberta (art. 80, I e II, CC/02). Como bem adverte Orlando Gomes23, os direitos, em si, “[...] não são móveis nem imóveis, mas a lei os inclui nesta ou naquela categoria conforme seu objeto, quando tais direitos são reais”.
Como o parágrafo 4° do art. 1.228 refere-se à “extensa área”, parece despiciendo afirmar que o proprietário não poderá ser privado da coisa quando se tratar de imóvel por equiparação legal24, vez que sequer é possível a configuração de posse nesse caso. Aplica-se o instituto, em síntese, ao solo e a tudo quanto lhe incorporar natural ou artificialmente durante o tempo em que eventualmente durou a posse do proprietário reivindicante25.
Forçoso destacar ainda que o referido parágrafo não faz qualquer restrição no que tange à urbanidade ou ruralidade do imóvel. Deste modo, deve ser aplicado integral e irrestritamente tanto aos imóveis urbanos quanto aos rurais. Merece relevo, contudo, a ponderação realizada pela sempre precisa Mônica Aguiar26: “Ocorre que o instituto, em que pese não haver qualquer limitação expressa na legislação, foi concebido tendo em vista, especialmente os imóveis localizados na zona urbana”.
2.2.2 Extensa área
Aqui a expressão utilizada pelo legislador é por demais aberta e merece especial atenção. A doutrina tem intentado criar critério mínimos, nem sempre razoáveis, para delimitar a atuação do aplicador do direito no que concerne à extensão da área objeto de reivindicação.
Rodolfo Pamplona e Camilo Colani27, analisando o tema, tecem as seguintes considerações:
O que seria considerado uma área suficiente extensa para a aplicação do instituto? Embora, como todo conceito aberto, ele possa ter uma colmatação diferente, parece-nos que, de forma apriorística, podem ser afastadas as áreas de terra que ensejam a usucapião especial, tanto rural, quanto urbana. Isso porque seria ilógico se falar em desapropriação – forma onerosa de expropriação – se a hipótese já enseja a prescrição aquisitiva, aquisição originária e gratuita de propriedade.
Em que pese a aparente coerência dos argumentos postos pelos ilustres autores, tal entendimento não pode prevalecer.
O instituto da usucapião especial, tanto urbana quanto rural (arts. 183 e 191, CF/88), traz, como um de seus requisitos, que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Assim é que nem sempre será possível a utilização desta figura jurídica quando se tratar de terrenos com até duzentos e cinqüenta metros quadrados de extensão. Como o parágrafo 4° do art. 1.228 não carrega em seu bojo qualquer condição semelhante, não há razão para se limitar a sua aplicação apenas às áreas que contem com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados de terra, sob pena de proteção aos proprietários inoperantes.
A visão esboçada pelos eminentes civilistas pode conduzir à inusitada situação de inaplicabilidade tanto da figura da usucapião quanto do novo instituto, na hipótese de o possuidor de área de até duzentos e cinqüenta metros quadrados ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Aquele que, por acaso, possuísse o bem em consonância com a sua função social poderia ser privado da coisa, restando desamparado frente ao ordenamento jurídico pátrio.
Inaceitável, portanto, tal posicionamento.
O critério mais acertado parece ser o de Glauco Gumerato Ramos28 quando aduz que o “que deve ser levado em conta é o fato da respectiva área ter sido extensa o bastante para viabilizar que a posse-trabalho de várias pessoas tenha redundado em benfeitorias de relevante interesse social e econômico”. Sem dúvidas, a posição do autor é a que melhor consagra o princípio constitucional da função social da propriedade, privilegiando o esforço e as obras realizadas pelos possuidores.
2.2.3 Posse ininterrupta e de boa-fé
Os conceitos ora em análise devem ser utilizados na mesma acepção em que são empregados nas ações de usucapião. O uso dessa expressão, inclusive, levou muitos autores a sustentar, erroneamente, que se tratava de uma nova espécie de usucapio onerosa.
Adotando a teoria objetiva de Ihering, o Código de 2002 define a posse como sendo o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade, tendo-se em vista a sua destinação econômica. Para a melhor compreensão do instituto possessório, duas noções devem restar nítidas. A primeira diz respeito à posse como condição do nascimento de um direito. É requisito indispensável, embora não seja suficiente, para que a propriedade seja adquirida. Num segundo momento, a posse apresenta-se como fundamento de um direito, vez que o possuidor tem o direito de se prevalecer de sua situação de fato até que alguém venha tomá-la apresentando-se com melhor direito.
A posse, pura e simplesmente, não é bastante, contudo, para a caracterização do instituto. Necessária, portanto, a sua qualificação pela continuidade, ou seja, o seu exercício sem intermitências ou intervalos. Caso o reivindicado venha a perder a posse por qualquer motivo, não será mais possível o reconhecimento do seu direito, ainda que anteriormente tivesse possuído por tempo necessário. Imperioso se faz lembrar, ainda, que uma vez privado da posse, o excipiente não poderá contar mais com o lapso temporal já transcorrido.
Além de ininterrupta, a posse precisa ser de boa-fé. Essencial à exata compreensão do tema é a cátedra do imortal baiano Orlando Gomes29, que, de forma concisa, define com precisão:
É possuidor de boa-fé quem ignora vício ou o obstáculo, que lhe impede a aquisição da coisa. Dessa ignorância resulta a convicção de que possui legitimamente. A boa-fé procede, por conseguinte, de erro do possuidor, que, falsamente, supõe ser proprietário.
O erro cometido pelo possuidor pode ser de fato ou de direito. Como a ninguém é permitido escusar-se de cumprir a lei alegando que não a conhece (art. 3° da Lei de Introdução ao Código Civil), tem-se sustentando que o erro de direito não poderia servir de fundamento para a boa-fé. Não nos parece, todavia, que esse seja o entendimento ideal, uma vez que um instituto que prima pela concretização de um princípio basilar da Constituição Federal não deve sofrer limitações de tal ordem. A ignorância de obstáculo jurídico, portanto, não tem o condão de afastar a boa-fé do possuidor.
2.2.4 Considerável número de pessoas
Ao qualificar a expressão “número de pessoas” com o adjetivo “considerável”, não pretendeu o legislador criar um requisito que inviabilizasse ou dificultasse a aplicação do instituto. Teve por desiderato, em verdade, que o contradireito transcendesse o interesse meramente individual do possuidor30, afetando uma pluralidade de indivíduos que, realizando obras e serviços de interesse social e econômico relevante, adquirisse a propriedade por meio da posse-trabalho.
O que poderia ser considerado então um “considerável” número de pessoas? Qual o limite e o alcance desse dispositivo?
A ilustre professora Mônica Aguiar31 defende que o critério a ser utilizado é o da pluralidade de entidades familiares. Explicando melhor, uma única família instalada no terreno, por mais numerosa que possa ser, não preenche o conteúdo jurídico indicado, vez que o interesse tutelado pela norma é o da comunidade, e não um interesse homogêneo limitado a um núcleo familiar.
Esta não nos parece ser a melhor solução a ser adotada, em que pese os convincentes argumentos lançados pela autora.
O balizador hermenêutico a orientar o intérprete e o aplicador do instituto sub analise deve ser, sem sombra de dúvidas, a Constituição Federal de 1988. A vetusta e ultrapassada dicotomia entre os diferentes ramos do direito encontra-se superada, razão pela qual os conceitos e institutos jurídicos encartados no Código Civil devem ser lidos em consonância com o que dispõe os princípios emanados na Carta Magna. Situada a norma constitucional no ápice do ordenamento jurídico, subverte-se o paradigma hermenêutico outrora vigente, permitindo que os princípios constitucionais fluam para a Lei Civil32.
Nesse ponto, somos forçados a nos alinhar ao posicionamento adotado por Glauco Gumerato Ramos33. O “considerável número de pessoas”, assim, nada mais é do que a quantidade suficiente para, através da posse-trabalho, realizar as obras e serviços relevantes no âmbito social, materializando os princípios da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana.
O exemplo trazido pelo autor merece transcrição integral, aclarando qualquer dúvida remanescente:
Imagine que num terreno urbano, de mil metros quadrados, três pessoas dele venham a adquirir posse e a partir daí lá construam um pequeno barracão para exploração de uma oficina mecânica de autos. Com o passar do tempo, o pequeno empreendimento se organiza, prospera e serve para a subsistência dos três sócios e de suas famílias. Passados mais de cinco anos de posse ininterrupta e de boa-fé, um dia são surpreendidos com a citação de uma ação reivindicatória. Será que os mil metros quadrados não foram uma área extensa o bastante para o exercício eficaz da posse-trabalho e respectiva função social? Será que os três sócios não formaram um considerável número de pessoas grande e suficiente o bastante para empreitar obras e serviços de relevante valor social e econômico, tendo em vista que da pequena oficina eles sobrevivem e ajudam a manter as respectivas famílias? A resposta é positiva para os dois questionamentos34.
A verificação do atendimento ao requisito não pode, contudo, ser feita a priori, abstratamente35. É no caso concreto que o magistrado terá condições de aferir se o número de pessoas foi suficiente para realizar os demais pressupostos exigidos nos parágrafos 4º e 5º do art. 1.228 do Codex. O que se pretende aqui é apenas traçar parâmetros mínimos de interpretação e afastar pré-concepções que não sejam consentâneas com o disposto na Lei Maior.
2.2.5 Obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante
Inicialmente, andou mal o legislador ao utilizar o conectivo “e” no lugar do disjuntivo “ou”. É exacerbado se exigir que o possuidor realize, simultaneamente, obras e serviços no imóvel, atendendo tanto a interesses sociais quanto econômicos relevantes.
Isso porque, como bem anota Glauco Gumerato Ramos36, nem sempre a obra se fará acompanhar pelo serviço, e vice-versa. Aquela, coisa feita ou produzida por um agente, não se confunde com a prestação de um serviço. Assim é que, por exemplo, poderá haver a construção de residências para a moradia dos possuidores sem que haja qualquer tipo de serviço. De outro lado, este também pode prescindir de eventual obra criada. É o caso, por exemplo, de uma horta comunitária realizada num terreno urbano alheio.
O que se deve sublinhar, visto ser o aspecto mais importante, é a necessidade da boa utilização do imóvel pelos possuidores37. O magistrado, no caso concreto, deve ter em mente o caráter altruístico da medida, afastando qualquer interpretação que possa favorecer interesses meramente individuais dos ocupantes38. O uso da propriedade deve atender aos ditames constitucionais, uma vez que, não respeitada a sua função social, não haverá que se falar na aplicação do instituto. Deste modo, a posse, traduzida no trabalho dos possuidores, assume especial relevo na configuração deste requisito.
As obras e serviços desenvolvidos pelos ocupantes devem ser provados, ainda, de forma cabal, de modo a evitar a desnaturação do instituto. Não é bastante para a sua aplicação, portanto, a desídia e morosidade do proprietário. O juiz verificará, assim, por meio da competente instrução probatória, se todos os requisitos foram efetivamente atendidos, cabendo aos possuidores o ônus de demonstrar a realização das condições exigidas.
2.2.6 Justa indenização
Esse, sem medo de errar, é o ponto mais controvertido na doutrina, tendo gerado, inclusive, ferrenhas discussões acerca do seu conteúdo.
Para uma primeira corrente encabeçada pelas eminentes Mônica Aguiar39 e Maria Helena Diniz40, o Estado seria a entidade responsável pelo pagamento do preço justo. Em se tratando de imóveis localizados no perímetro urbano, em virtude do que dispõe o art. 182 da nossa Lei Maior, caberia aos Municípios o dever de adimplir com a obrigação. Por sua vez, estando o terreno em área rural, a indenização deveria ser arcada pela União, quer por força do comando do art. 184 a 186 da Lex Legum, quer por observância dos critérios estabelecidos pela Lei n. 8.629 de 1993.
Em via oposta, há autores que sustentam que a justa indenização é devida pelos possuidores, vez que o Estado, falido, não possui capital livre necessário para assumir tão pesado ônus. Como se não bastasse, não há previsão legal, tanto na Constituição como no Código Civil, que atribua aos entes estatais a obrigação pelo pagamento de referidas verbas.
Há ainda os que pelejem a favor de se considerar o Estado devedor solidário dos possuidores em relação à quantia a ser paga a título de indenização. É o caso, por exemplo, de Glauco Gumerato Ramos41. Para que o reivindicante possa cobrar do Estado o valor devido, dois caminhos se abrem.
Numa primeira hipótese, caso a pessoa jurídica de direito público interno não tenha integrado a relação processual, e, aliado a isso, os possuidores condenados não tenham efetuado o pagamento por falta de recursos materiais, seria possível o ajuizamento de ação cognitiva autônoma de regresso. A segunda hipótese diz respeito à possibilidade de denunciação da lide feita pelo autor reivindicante, desde que o processo tenha seu trâmite regido pelo procedimento ordinário42.
Por fim, Pablo Stolze Gagliano43, em valoroso artigo, defende que o pagamento da justa indenização, seja pelo Estado ou pelos possuidores, mostra-se inviável. Como em geral os ocupantes são desprovidos de recursos financeiros, não teriam como arcar com o pagamento, revelando, deste modo, a ineficácia social (inefetividade) do instituto.
Em face da natureza jurídica de contradireito do instituto, o adimplemento do justo preço recairá obrigatoriamente sobre os ocupantes do terreno sub judice. Os possuidores, por meio do exercício da novel figura jurídica, aniquilam o direito do antigo proprietário, elidindo a anterior propriedade e adquirindo o domínio sobre a coisa. Não há que se falar, assim, em atuação do Estado.
Esse inclusive é o entendimento exarado no Enunciado 84 da I Jornada de Direito Civil – CJF/STJ: “A defesa fundada no direito de aquisição com base no interesse social (art.1.228, §§ 4º e 5º, do novo Código Civil) deve ser argüida pelos réus da ação reivindicatória, eles próprios responsáveis pelo pagamento da indenização”.
Como ultrapassar, então, o problema da carência de recursos dos ocupantes? Propomos, neste particular, a releitura da expressão “justa indenização”, conformando-a aos novos matizes e princípios constitucionais.
O conceito jurídico ora em estudo sempre foi analisado sob a ótica do proprietário que é privado do seu bem, evitando-se, assim, que o mesmo venha a sofrer qualquer tipo de diminuição no seu patrimônio. Vide, por exemplo, a cátedra do professor Celso Antônio Bandeira de Mello44 quando afirma que a indenização justa “é aquela que corresponde real e efetivamente ao valor do bem expropriado, ou seja, aquela cuja importância deixe o expropriado absolutamente indene, sem prejuízo algum em seu patrimônio”.
Na aplicação do instituto sob comento, deve-se ter em vista também a disponibilidade de recursos e a possibilidade de pagamento por parte dos ocupantes da terra. O magistrado, no caso concreto, levará em consideração, no momento de se aferir o valor a ser desembolsado, não só o valor do imóvel, mas também a capacidade financeira dos possuidores. Assim é que nem sempre a quantia paga corresponderá exatamente ao valor que o terreno possui no mercado imobiliário.
Neste sentido, o Enunciado 240 da III Jornada de Direito Civil –CJF/STJ – dispõe: “A justa indenização a que alude o parágrafo 5º, do art. 1.228, não tem como critério valorativo, necessariamente, a avaliação técnica lastreada no mercado imobiliário, sendo indevidos os juros compensatórios”.
Os critérios utilizados na desapropriação com o fito de se definir a quantia a ser paga, como se vê, divergem substancialmente dos empregados na aplicação do novo instituto. O possuidor passa a ocupar o centro das atenções, invertendo-se a referência hermenêutica outrora adotada. A precariedade financeira dos ocupantes não mais se afigura, nesse novo contexto, como elemento que obsta o exercício do direito de aquisição da propriedade.
A análise do caso concreto deve ser feita a partir de uma perspectiva civil-constitucional, respeitados os princípios da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana. Voltar o foco para o possuidor-trabalhador nos parece ser a única maneira de realizar os objetivos fundamentais da República encetados na Constituição Federal, quais sejam: garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos.
Perdem sentido assim as críticas em relação a uma suposta inviabilidade do instituto face aos parcos recursos de que geralmente dispõem os possuidores, já que os mesmos devem contribuir em valor proporcional aos seus respectivos patrimônios.