Resumo: O trabalho analisa a questão da existência de um fato realizado pelo sujeito passivo capaz de gerar a obrigação acessória tributária, apresentando como hipótese o problema decorrente da interpretação restrita do art. 113 do CTN, em confronto com os princípios da legalidade e tipicidade cerrada do Direito Tributário.
Sumário: 1. Introdução – 2. Fato gerador: alcance da expressão – 3. O fato gerador e o princípio da legalidade – 4. O fato gerador da obrigação acessória – 5. Conclusão.
Palavras-chave: Fato gerador – Obrigação acessória – legalidade – tipicidade fechada
1. Introdução
O Código Tributário Nacional classifica a obrigação tributária em duas espécies, pelo critério do objeto da prestação, em principal e acessória. Para cada espécie de obrigação, identifica um fato gerador, indicando o momento de sua ocorrência.
Nas disposições acerca da obrigação tributária, art. 113 e §§, aponta o CTN o momento do nascimento do vínculo jurídico obrigacional, estabelecendo explícita simetria entre a verificação do fato gerador e o surgimento da obrigação principal.
Contrariamente, a regra de simetria utilizada para definir o momento do surgimento da obrigação principal não é observada em relação a obrigação acessória, cujo nascimento, na letra do §2º do art. 113, advém da legislação tributária.
A peculiaridade constatada na redação do §2º do art. 113 do CTN suscita calorosos debates acadêmicos, exsurgindo o questionamento acerca da necessidade da configuração de um fato capaz de atrair a incidência da norma tributária, dando origem à obrigação acessória.
2. Fato gerador: alcance da expressão
A expressão fato gerador representa a subsunção da norma legal ao fato empiricamente implementado, que reflita a hipótese de incidência prevista naquela mesma norma.
O fenômeno não se restringe à seara tributária. Todos os direitos e deveres jurídicos são conseqüências da incidência de uma determinada norma, que atua quando ocorre concretamente a situação hipotética que descreve. É a conseqüência do princípio constitucional da legalidade, inserto no art 5º, II: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei."
O Prof. Hugo de Brito Machado, em recente artigo [1], assevera que:
"Realmente, não existe dever jurídico que não tenha seu "fato gerador". Direito subjetivo e dever jurídico são efeitos da incidência da norma, que se dá quando no mundo fenomênico se concretiza a situação hipoteticamente nela descrita. Não existe obrigação jurídica que não seja resultado da incidência de uma norma. E incidência não há sem fato. Norma e fato nela previsto geram direito. Deveres, obrigações e os correspondentes direitos subjetivos. É assim na fenomenologia jurídica em geral e também no direito tributário."
A grande importância conferida pelo CTN ao fato gerador, o que leva o Prof. Luciano Amaro a acreditar haver um verdadeiro endeusamento do fenômeno [2], advém, certamente, do já mencionado princípio da legalidade, que atua fortemente no Direito Tributário, consolidado como uma de suas principais regras de estrutura.
3. O fato gerador e o princípio da legalidade
Corolário da legalidade, o princípio da tipicidade demanda a descrição pormenorizada do fato capaz de atrair o vínculo jurídico tributário, exigindo a previsão de cada um de seus elementos configuradores, tais como o próprio fato gerador, o momento em que se considera implementado, o lugar de sua ocorrência, entre outros.
Observa-se que a tipicidade, princípio implícito norteador da atividade legiferante na órbita tributária, embora cogente, sofre delineamentos, dependendo da espécie de obrigação analisada.
No disciplinamento da obrigação principal, o CTN denota o apego pela tipicidade na descrição dos seus elementos, impondo à norma a delimitação rigorosa do fato sobre o qual visa incidir. É a denominada tipicidade fechada ou cerrada, consubstanciada no dever de previsão exaustiva de todos os elementos do fato típico.
Roque Antônio Carrazza [3] esclarece que a tipicidade fechada apura o alcance do princípio da legalidade, argumentando que:
"Só é típico o fato que se ajusta rigorosamente àquele descrito, com todos os seus elementos, pelo legislador.
Conjugados, estes princípios constitucionais impedem o emprego da analogia in pejus das normas tributárias ou penais-tributárias como fonte criadora de tributo e infrações (com suas respectivas sanções)."
O entendimento ressalta evidente da conjugação dos arts. 114 e 113, §1º do CTN, que somente considera existente a obrigação principal se implementada a situação legalmente descrita como necessária e suficiente para a sua ocorrência, que é o próprio fato gerador.
Outra ilação extrai-se da combinação dos artigos do Código Tributário Nacional pertinentes à obrigação acessória:
Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.
§1º. (omissis)
§2º. A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.
§3º. (omissis)
...
Art. 115. Fato gerador da obrigação acessória é qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de ato que não configure obrigação principal.
Verifica-se que a legalidade exigida para a imposição da obrigação instrumental não é estrita, ou seja, pode advir de ato normativo que não a lei em sentido formal e material. Todos aqueles veículos normativos previstos no art. 96 do CTN, tais como decretos e regulamentos, entre outros contidos no seu art. 100, são aptos a formar vínculo jurídico tributário acessório.
Contudo, não se dispensa a descrição da obrigação pela legislação, dispensando-se apenas a exclusividade da lei em sentido estrito como instrumento de introdução da obrigação na ordem legal tributária.
4. O fato gerador da obrigação acessóriab
É da redação do §2º do art. 113 que decorre toda a celeuma em torno da necessidade ou não do fato gerador para a configuração da obrigação acessória. Ao afirmar que decorre essa relação obrigacional da legislação tributária, parece desvinculá-la da ocorrência anterior de um fato que lhe dê existência.
Buscando captar a mens legis inserta no art. 115 do CTN, o eminente tributarista Sacha Calmon Navarro Coêlho [4] pontua:
"Vimos que as chamadas obrigações acessórias não possuem ‘fato gerador’; decorrem de prescrições legislativas imperativas: ‘emita notas fiscais’, ‘declare rendas e bens’, etc. A impropriedade redacional é sem par. Diz-se o fato gerador da obrigação acessória é ‘qualquer situação’ que, na forma da ‘legislação aplicável’, impõe a ‘prática ou abstenção de ato’. Outra maneira de prescrever deveres de fazer e não fazer por força de lei, cabe apenas reafirmar que a legislação a que se refere o artigo somente pode ser coleção de leis em sentido formal e material."
Acaba por concluir o ilustrado doutrinador que o art. 115 do CTN apenas nomeia erroneamente o instrumento normativo apto a criar obrigações tributárias de fazer e não fazer, com evidente impropriedade terminológica, referindo-se à legislação, que possui conceito mais amplo que o de lei, quando, na verdade, intenciona apontar a própria lei estrita como único meio idôneo de estabelecer obrigações, inclusive as acessórias, sem que para tanto houvesse a necessidade de determinar um fato gerador.
Esse entendimento, da lavra de nome de peso na ciência jurídico-tributária, decorre de interpretação contra legem, embora seja o mais desejável em face do Estado Democrático de Direito no qual se insere, ao menos na parte em que afirma a necessidade de lei estrita para a criar obrigação acessória, obedecendo o princípio da legalidade em toda a sua amplitude.
Porém, como legem habeamos, não se pode olvidar os termos em que esta se impõe. O art. 115 afirma a existência de fato gerador da obrigação instrumental, que se configura em situação exposta na legislação tributária aplicável. Então, faz-se premente a descrição normativa de uma situação que, com ela se deparando o sujeito passivo, ficará jungido ao cumprimento da obrigação que dela se origina.
A norma tributária, geral e abstrata, como qualquer norma, deve preexistir à obrigatoriedade de sua observância, por obediência aos princípios da legalidade e da irretroatividade. Inserta no ordenamento jurídico, está apta a produzir efeitos concretos, uma vez que o sujeito ao qual se dirige coloque-se na situação por ela descrita capaz de desencadear aqueles efeitos.
Justamente em vista desse fenômeno, qual seja, previsão legal – fato – incidência - obrigação, observado na generalidade das relações jurídicas cogentes, estabelecidas independentemente da vontade do sujeito passivo estar dirigida a sua conformação, tal como ocorre na seara tributária, constata-se que, tanto quanto para o surgimento da obrigação principal, faz-se necessária a previsão de um fato, uma situação sobre a qual a norma incida e dê origem à obrigação acessória.
É certo que a obrigação acessória, por seu caráter instrumental, prestando-se a auxiliar a execução das atividades arrecadadora e fiscalizadora dos entes tributantes, não necessariamente ligada a uma obrigação principal, por vezes reveste-se de peculiaridades que parecem, num primeiro momento, negar a existência de fato que a origine. Tal ocorre com a obrigação de declarar-se isento perante a Receita Federal. O sujeito passivo, em tese, não se colocou em situação que desencadeasse os efeitos da norma, mas está, ainda assim, obrigado ao seu cumprimento.
Porém, o exemplo acima não excepciona o que fora afirmado: toda obrigação tem um fato gerador descrito anteriormente em norma legal. O sujeito passivo da obrigação acessória de prestar declaração de isento, embora não esteja vinculado a nenhuma obrigação principal, deve colaborar para o desempenho da atividade fiscalizadora e arrecadadora do Fisco. O fato que gera a aludida obrigação é a inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda, nascendo, desde então, a obrigação instrumental de fazer uma declaração anual de que não aufere renda acima do limite fixado como faixa de isenção.
A verdadeira nota diferenciadora entre as obrigações previstas no CTN, a par do objeto da prestação a que dão origem, não é a existência de fato gerador, que se exige para ambas as espécies, mas a influência mitigada do princípio da legalidade e da tipicidade em relação à obrigação acessória.
O CTN autoriza a previsão do fato gerador pela legislação tributária, cujo rol encontra-se insculpido nos seus arts. 96 e 100, contrariamente ao que estabelece para o fato gerador da obrigação principal, necessariamente descrito em lei em sentido formal e material, em conformidade com o art. 97, III. Nesse sentido é o escólio de Luciano Amaro [5]:
"Parece que, ao dizer serem as obrigações acessórias decorrentes da legislação tributária, o Código quis explicitar que a previsão dessas situações pode não estar em ‘lei’, mas em ato de autoridade que se enquadre no largo conceito de ‘legislação tributária’ dado no art. 96; mesmo, porém, que se ponha em causa o dever de utilizar um certo formulário, descrito em ato de autoridade, melhor seria dizer que a obrigação, em situações como essa, decorre da lei, pois nesta é que está o fundamento com base no qual a autoridade pode exigir tal ou qual formulário, cujo formato tenha ficado a sua discrição. E, obviamente, também nessas situações, o nascimento do dever de alguém cumprir tal obrigação instrumental surgirá, concretamente, quando ocorrer o respectivo fato gerador."
Aplica-se também à obrigação acessória a denominada tipicidade aberta referida pelo Prof. Roque Antônio Carrazza, dispensando, na descrição do fato, a precisão e individualização da situação que o materializa, cogentes em relação ao fato gerador da obrigação principal. Corroborando aquela lição, Hugo de Brito Machado [6] aduz:
"Diferentemente do que ocorre com o fato gerador da obrigação principal, seja essa consubstanciada no tributo ou na penalidade pecuniária, o fato gerador da obrigação tributária acessória não há de ser necessariamente um tipo fechado. Não se exige que a legislação tributária descreva, em cada caso, a situação cuja ocorrência faz nascer o dever de fazer, de não fazer ou de tolerar, objeto da obrigação tributária acessória. Tal situação decorre de um ou de vários dispositivos da legislação, pode ser uma situação específica ou não, duradoura ou instantânea, sem que se encontra na norma descritora da hipótese cuja concretização faz nascer a obrigação acessória uma descrição precisa de todos os seus elementos, muitos dos quais podem resultar implícitos ou determinados por intuição."
5. Conclusão
Dessarte, conclui-se que tanto quanto a obrigação principal a obrigação acessória somente surge em se concretizando a situação hipotética descrita na legislação tributária, que seja necessária e suficiente a sua perfeita configuração. Tal situação é o necessário fato gerador da obrigação acessória.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 7. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2001.
CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários ao Código Tributário Nacional, coord. Carlos Valder do Nascimento. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
MACHADO, Hugo de Brito. Fato gerador da obrigação acessória. In Revista Dialética de Direito Tributário, nº 96, setembro-2003.
NOTAS
1Fato gerador da obrigação acessória. Revista Dialética de Direito Tributário, nº 96, pg. 29, setembro-2003.
2 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 7. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2001.
3CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p.229.
4 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários ao Código Tributário Nacional, coord. Carlos Valder do Nascimento. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p.268.
5 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 7. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 242.
6Fato gerador da obrigação acessória. Revista Dialética de Direito Tributário, nº 96, pg. 31, setembro-2003.