3. Litisconsórcio e Assistência
Entender a solução encontrada pelo legislador, ao editar as normas responsáveis pela difusão das ações de caráter coletivo auxilia a classificação atribuída pela doutrina do Litisconsórcio e da Assistência nestas demandas.52
O grande impasse enfrentado pelo legislador foi à necessidade de permitir aos diversos entes sociais, a propositura da Ação Civil Pública como forma de tutelar a multiplicidade bens existentes na contemporaneidade. Ao marchar neste norte, restou estabelecida a possibilidade de criação de Litisconsórcio Ativo entre os co-legitimados.53
Acerca da temática, verifica-se a posição de Rodolfo de Camargo Mancuso:
O § 2.º do art. 5.º da Lei 7.347/85 faculta ao Poder Público e às associações habilitarem-se como “litisconsortes de qualquer das partes”, sem, contudo, esclarecer se podem fazê-lo como assistentes. De todo modo, a fórmula já constava assim no § 2.º do art. 4.º do Projeto de Lei 3.034/84, embrião da Lei 7.347/85. Na justificação daquele projeto se dizia: “Foi na lei brasileira da ação popular (Lei 4.717, de 29.06.1965) que se buscou inspiração para uma série de controles contra os riscos decorrentes de abusos (...); o litisconsórcio, inclusive por parte do Poder Público, quer no polo ativo, quer no passivo, com a possibilidade de outras associações e o Ministério Público interporem recursos de decisões e tomarem a posição de autor, na hipótese de desistência e abandono da causa”.54
Neste aspecto, a doutrina cria duas distinções essenciais, o Litisconsórcio Ativo poderá ser inicial, quando um dos legitimados propõe a demanda juntamente com outro co-legitimado, ou Litisconsórcio Ativo ulterior, caso eventual co-legitimado ingresse com ação já proposta, alterando ou ampliando os objetivos do processo.55
Ademais, convém salientar que, na hipótese de ingresso pelo legitimado simultâneo após a propositura da demanda, sem que ocorra qualquer alteração dos desígnios anteriormente ajuizados, não desafia a essência de litisconsórcio ulterior, mas de verdadeira assistência litisconsorcial.56
Por fim, quanto ao litisconsórcio passivo, do mesmo modo tratado na legitimidade passiva, forçoso considerar a regra de que qualquer pessoa, física ou jurídica, pode ser em tese parte passiva, porém, não competindo aos mesmos, representarem simultaneamente os propósitos de ambos os polos da demanda.57
4. Desistência da Ação
Quanto ao tópico da desistência, em matéria de Ação Civil Pública, conforme a abordagem proposta no tema da legitimidade, alguns pontos merecem a devida cautela. Como regra, todos os legitimados para a propositura da demanda, podem exercer o direito de desistência da ação, e como reflexo dessa premissa, é permitido aos outros legitimados à possibilidade de avocar o polo ativo da ação.58
Todavia, é preciso analisar o pedido de desistência sob o prisma do interesse público, as ações deste gênero comportam temas de alta relevância coletiva, desta forma, o pedido de desistência precisa estar amparado com a oferta de justificativa devidamente fundamentada.59
Na mesma linha, Hugo Nigro Mazzilli:
Em vista da natureza transindividual dos interesses lesados, bem como em razão da legitimação concorrente e disjuntiva que a LACP instituíra para a propositura de ações civis públicas ou coletivas, o princípio correto a afirmar deveria ter sido outro, ou seja, de que, no caso de desistência ou abandono de ação civil pública ou coletiva, por qualquer legitimado, poderia qualquer outro deles assumir a titularidade ativa; de parte do Ministério Público, o dever de assumir a promoção da ação só se justificaria se aqueles atos de desistência ou abandono fossem infundados.60
Porém, após interposto o pedido de desistência da ação, o Ministério Público, na prerrogativa de fiscal da lei, poderá verificar a regularidade da fundamentação apresentada, e na hipótese de entender ilegítima, assumirá o polo ativo da demanda, caso o contrário, tolerará o fim da ação.61
5. Competência para Julgamento
Inicialmente, antes de adentrar no tema, forçoso considerar a clássica conceituação atribuída à competência, que em linhas gerais, representa a medida da Jurisdição e esta, por sua vez, pode ser entendida como o poder confiado aos órgãos jurisdicionais.62
A legislação atribuiu, em regra, o foro do local do dano como competente para julgamento das Ações Civis Públicas, todavia, conforme a discussão anteriormente travada, o processo coletivo abrange diversos locais, que por vezes, são de difícil constatação.63
Na mesma senda, Rodolfo de Camargo Mancuso:
Refletindo sobre as dificuldades para a fixação do foro competente, nos conflitos metaindividuais, indaga Fredie Didier Jr: “Na medida em que se discutiam direitos difusos, na maior parte das vezes pertencentes à humanidade ou a uma coletividade de pessoas dispersas em vários municípios e estados, qual seria o foro competente? E nos danos em âmbito nacional? E o caso do rompimento de um reservatório da Indústria de Cataguases de Papel, em Cataguases, na Zona da Mata de Minas Gerais, no dia 28 de março de 2003, que causou o vazamento de mais de 20 milhões de litros de soda cáustica, chumbo e outros metais, produtos químicos usados na fabricação de papel, no Rio Pomba – que corta o norte e o nordeste do Estado do Rio e deságua no rio Paraíba do Sul: a ação civil pública deve ser proposta perante a justiça do Estado das Minas Gerais ou perante a justiça do Rio de Janeiro?”64
Entretanto, o legislador procurou abalizar os temas de maior relevância, elaborando ressalvas divididas pela especificidade, facilitando o enfrentamento destas questões. O primeiro critério encontrado, diz respeito às ações que envolvam lesões aos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos situados em região delimitadas, nesta hipótese, será competente o foro da Capital do Estado de origem, porém, caso a lesão ultrapasse as margens estaduais, e ganhe corpo nacional, será competente o foro do Distrito Federal.65
Imperioso salientar, que parte expressiva da doutrina interpreta a redação do artigo 93, II, do Código de Defesa do Consumidor, no sentido de que, caso a lesão se perpetue no âmbito nacional, a competência será concorrente, podendo optar o legitimado ativo, em propor a demanda na Capital do Estado ou do Distrito Federal, isto, em nome do acesso à justiça e em benefício da defesa dos interesses transindividuais.
Quanto à matéria, Hugo Nigro Mazzilli:
O Superiro Tribunal de Justiça entendeu que, “interpretando o art. 93, II, do CDC, já se manifestou esta Corte no sentido de que não há exclusividade no foro do Distrito Federal para o julgamento de ação civil pública de âmbito nacional. Isto porque o referido artigo, ao se referir à Capital do Estado e ao Distrito Federal, invoca competências territoriais concorrentes, devendo ser analisada a questão estando a Capital do Estado e do Distrito Federal em planos iguais, sem conotação específica para o Distrito Federal.66
Por fim, quando o tema delimitar duas ou mais comarcas, deverá ser adotado o critério da prevenção como forma de solucionar o impasse. Igualmente, a demarcação preventiva poderá ser aplicada em todas as esferas, Municipal, Estadual e Federal, desde que o processo tenha o mesmo objeto ou causa de pedir. Tal solução é produto da redação acrescentada pelo artigo 2º da Lei 7.347 de 1985.
Sobre o tema da prevenção, Marcelo Abelha:
O parágrafo único acrescentado ao art. 2º diz que “a propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto”. Lendo tal dispositivo percebe-se que o legislador adotou, seguindo a esteira do CPC, o critério cronológico da prevenção, e marcou tal momento com a propositura da ação (rectius = demanda). 67
Sendo assim, após a necessária conceituação geral, prosseguir-se-á com a conclusão processual e seus reflexos para a coletividade.
6. Dos Recursos e da Coisa Julgada na Ação Civil Pública
O sistema recursal nas demandas de caráter coletivo é semelhante ao ordinário cível, a própria redação do artigo 19 da Lei 7.347 de 1985, prevê a utilização subsidiária do Código de Processo Civil. Todavia, o legislador optou por excepcionar a regra dos efeitos dos recursos nestes processos68, conforme se verifica na redação do artigo 14, da Lei de Ação Civil Pública:
Art. 14, O juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos para evitar dano irreparável à parte.69
No modelo Cível, é habitual a atribuição do duplo efeito recursal, isto é, suspensivo e devolutivo, porém, ficou clara a intenção do legislador, no sentido de excepcionar tal regra, intervindo na atribuição do efeito suspensivo, com esta previsão, foi possível conferir a proteção necessária à segurança jurídica e a correta aplicação da lei.70
Vale mencionar, que o artigo 14 da lei 7.347 de 1985, reflete a possibilidade de o magistrado atribuir discricionariamente à aplicação do efeito suspensivo, entretanto, o dispositivo não deve ser interpretado como instrumento da vontade ilimitada do julgador, devendo restar demonstrado o perigo de dano irreparável à parte, conforme abaliza a redação legal.71
Quanto à matéria, Marcelo Abelha:
Aliás, cabe aqui dizer que o legislador compreendeu bem que, no processo coletivo, a participação do juiz – com aumento do poder inquisitivo (em detrimento do dispositivo) – é muito importante, acima de tudo, legítima dentro de um Estado social que deve dar justiça a quem precisa e confirmar a razão de quem a possui. [...] No art. 14. da LACP deixou-se bem claro que toda decisão judicial, de primeiro ou de segundo grau, deve ter eficácia imediata, ainda que seja impugnável por recurso. Todavia, quando a execução imediata implicar risco de dano irreparável, o juiz poderá impedir o cumprimento da decisão conferindo “efeito suspensivo” ao recurso que desafiá-la. 72
E ainda, Rodolfo de Camargo Mancuso:
Os recursos são recebidos nos efeitos devolutivo e suspensivo, salvo as hipóteses expressamente previstas, em que o efeito é só devolutivo: apelações nos casos do CPC, art. 520, I a VII (tendo o inc. III – apelação em liquidação de sentença – sido revogado pela Lei 11.232/2005); apelação na ação de alimentos (Lei 5.478/68, art. 14, c/c o art. 520, II, do CPC); apelação contra sentença que decreta interdição (CPC, art. 1.184). Sendo, pois, ope legis a fixação do efeito dos recursos, não tendo o juiz poderes de disposição a respeito, segue-se que o art. 14. da Lei 7.347/85 distancia-se do sistema como um todo, embora, como indicado no início deste tópico, não se constitua numa hipótese isolada.73
Concluída a análise da excepcionalidade recursal, convém abordar o tema da coisa julgada nas ações coletivas. Neste aspecto, vale destacar que os abusos cometidos em desfavor dos interesses transindividuais, causam intensas lesões distribuídas em grandes dimensões. Noutra época, embora presente esta realidade, os meios disponíveis para atacar o avanço das injustiças sociais, não possuíam a amplitude necessária, revelando a fragilidade do sistema.74
As sentenças judiciais produziam apenas efeitos inter partes, limitando-se aos integrantes do processo, diante disso, o Poder Judiciário enfrentava dificuldades para cumprir os preceitos constitucionalmente assegurados, vez que o número de demandas julgadas individualmente refreava o acesso à justiça coletiva. Com a evolução do sistema, foi editado o artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública, permitindo aos magistrados, julgarem demandas coletivas produzindo efeitos erga omnes, ou seja, atingindo os interessados efetivamente.75
Todavia, houve a tentativa de diminuir o alcance da coisa julga nas ações coletivas, tal fenômeno ocorreu pela edição da Lei 9.494/97, que traçou limites subjetivos às pessoas atingidas pela sentença. A referida norma delimitou que a imutabilidade da sentença estaria ligada a competência territorial do órgão julgador, exceto nos casos de improcedência por insuficiência de provas.76
Fato é que não foi possível macular tal ponto do processo coletivo, o Código de Defesa do Consumidor, sistema não atingido pela Lei 9.494/97, e que se aplica aos casos que envolvam interesses transindividuais, em seu artigo 103, estendeu a competência do magistrado para todo o território nacional. Portanto, com a aplicação subsidiária do Código de Defesa do Consumidor, a coisa julgada nas ações coletivas permanece imóvel.77
Para Hugo Nigro Mazzilli:
Ademais, essa alteração não foi só infeliz como inócua, como já antecipamos nos comentários feitos no Cap. 15, n. 4. Na alteração procedida em 1997 ao art. 16. da LACP, o legislador confundiu limites da coisa julgada (a imutabilidade erga omnes da sentença, ou seja, seus limites subjetivos, atinentes às pessoas atingidas pela imutabilidade) com competência territorial (que nada tem a ver com imutabilidade da sentença, dentro ou fora da competência do juiz prolator, até porque, na ação civil pública, a competência sequer é territorial, e sim funcional)... Além disso, a alteração procedida no art. 16. da LACP incidiu apenas sobre esta lei, mas não alcançou o sistema do CDC. Ora, é de elementar conhecimento que é um só o sistema da LACP e do CDC, em matéria de ação civis públicas e coletivas, pois ambos os diplomas legais se interpenetram e se completam, ensejando um todo harmônico (LACP, art. 21, e CDC, art. 90).78
Ademais, é preciso considerar, que devido a gama de interesses existentes, a coisa julgada poderá distribuir reflexos distintos, mesmo porque, a sua natureza é anômala em razão dos direitos tutelados. Nos interesses difusos, após o trânsito em julgado, a sentença produzirá efeitos erga omnes, exceto para o caso de improcedência por ausência probatória.
Nas causas envolvendo interesses coletivos, os efeitos serão ultra partes, e, portanto, atingirão apenas aos grupos envolvidos. Por fim, quanto aos interesses individuais homogêneos, a sentença terá efeitos erga omnes, beneficiando não apenas aos integrantes do processo, mas também aos seus sucessores legítimos, isto em caso de procedência da demanda.79