1.4 O Código Civil e A Indústria do Gás Natural
O Código Civil ora vigente trouxe disposição expressa disciplinando o regime de instalação de cabos e tubulações, em seus arts. 1.286, parágrafo único e 1.287.
Diante das necessidades modernas, e o avanço tecnológico da sociedade, o legislador andou bem, inovando uma matéria que era carente de norma expressa, necessidade fática inexistente ao tempo do mestre Clóvis Beviláquia e do Código Civil de 1916.
Pela leitura dos dispositivos atinentes ao tema, percebe-se que o proprietário é obrigado a tolerar a passagem, através de seu imóvel, de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de serviços de utilidade pública, em proveito de proprietários vizinhos.
Pelo todo que foi discorrido ao longo desse trabalho, pode-se perceber que sempre que uma empresa pública ou privada atuou na atividade de instalação de dutos, foi-lhe delegado o poder de realizar as necessárias servidões de passagem, ou desapropriações sobre os imóveis particulares. Assim, há de se indagar qual o real sentido a ser dado as normas esculpidas no Código Civil.
Embora as divergências doutrinárias sejam várias quanto aos vocábulos administração pública, serviço público, entre outros, posto seus sentidos plurívocos, é razoável o entendimento de que o Direito Administrativo, enquanto ramo autônomo da Ciência do Direito, deve ser aplicado quando seu objeto de estudo, ou seja "(...) sistema de princípios e regras, relativos à realização de serviços públicos, destinados à satisfação de um interesse que, de maneira direta e prevalente, é do próprio Estado" (Reale, 2000), tornar-se presente.
No mesmo diapasão, o Direito Civil, em que pesem as opiniões contrárias, tem como objeto de estudo as relações realizadas entre particulares encontrados em pé de igualdade para se obrigarem. O Código Civil encerra o conjunto maior de normas de Direito Privado.
É por tal razão, que não se deve imiscuir, no caso em análise, os institutos de Direito Civil com os de Direito Administrativo. Tem-se assim que, quando a administração age por conta própria ou por seus delegatários, visando o seu fim precípuo, há de se instituir as restrições administrativas sobre a propriedade particular.
Ao contrário do que alguns vêm pensando, os artigos 1.286, e seu parágrafo único, e o artigo 1.287, consoante nosso entendimento, visam a reger normas entre particulares, relações cíveis (direitos de vizinhança), ou seja, quando alguém pretende passar cabos e tubulações pela propriedade de outrem, em que se vislumbre uma utilidade pública. É por tal razão que os artigos sob foco foram inseridos no Código Civil e não em normas administrativas.
Parece-nos que a expressão utilidade pública, disposta no artigo 1.286, deve ser interpretada em "latu sensu", evitando-se que o direito de passagem seja empregado com pretensões meramente egoísticas, despojado de sua função social precípua. O termo "utilidade pública" não deve ser entendido a ponto de impor e atrair normas para a seara administrativa, sob pena de se descaracterizar o âmbito de aplicação do Direito Civil.
Assim, impõe-se ao particular o dever de tolerar a passagem de cabos e tubulações através de seu imóvel em proveito de proprietários vizinhos, mesmo contra sua vontade. A relação estabelecida é, frise-se, entre particulares, onde um, quando impossível ou excessivamente oneroso o meio, precisa que a instalação seja feita em detrimento do terreno de outrem, instituindo-se, por conseguinte, a servidão de passagem.
Para tanto, a lei outorga ao titular de direito que tem sua propriedade gravada a faculdade de exigir do instituidor da servidão: 1 - indenização que atenda, além dos demais danos, a desvalorização da área remanescente; 2 – que a instalação seja feita de modo menos gravoso ao prédio onerado; 3 – a remoção a qualquer tempo da instalação para outro local do imóvel, à sua custa; 4 – a realização de obras de segurança, nos casos em que a instalação ofereça grave risco.
Caso não se chegue a um acordo sobre o valor da indenização devida, ou o proprietário seja recalcitrante sobre a instituição da servidão, deve o interessado recorrer ao Judiciário, para, por meio da ação confessória, requerer a prestação jurisdicional no sentido de lhe ser reconhecido o direito real sobre a coisa alheia. O proprietário, ao seu turno, entendendo que a instituição da servidão seja abusiva, ou desprovida de fundamento, pode se valer da ação negatória, instando o Judiciário a se manifestar pela inexistência do direito de se instituir a servidão de passagem; a ação negatória, diante do caráter dúplice que detém as ações fundadas em direito real, pode ser proposta inclusive em sede de contestação. VENOSA (2003). Ademais, não se exclui a possibilidade dos meios de defesa da posse, caso se caracterize a turbação, o esbulho ou a ameaça nos casos de servidão aparente.
Propugnamos que as normas sob foco têm uma aplicação prática para a indústria do petróleo. Caso a empresa distribuidora, não possa efetuar as instalações dos dutos até o consumidor final, nada mais equânime do que o permissivo legal para este instituir a servidão de passagem sobre os proprietários particulares, com base nos dispositivos do atual código Civil, até ver-se conectado a rede de dutos da concessionária Estatal.
Assim, o regime jurídico que regulará as servidões de passagem na indústria do Petróleo e do Gás Natural, quando a iniciativa de instalação dos tubos partir do particular, restringindo-se a propriedade de terceiros que estejam no inter será o esculpido no artigo 1.286 e ss. do Código Civil.
Pelo exposto, percebe-se que o Código Civil, mesmo que implicitamente, trouxe uma poderosa ferramenta para se garantir a ampliação da malha de dutos em nosso País, regulando os direitos e deveres do particular que deseje ser conectado à rede de distribuição, sem, entretanto, deixar de salvaguardar aqueles proprietários que tem seus imóveis sujeitos ao gravame imposto
Cumpre afirmar que, a legislação vigente não alberga a possibilidade do particular conectar-se diretamente aos dutos de transporte. Embora ordenamentos jurídicos alienígenas contemplem tal direito, o legislador pátrio preferiu cingir as atividades de transporte e distribuição, como forma de romper a verticalização/integralização existente no setor. Tem-se o incoveniente para as indústrias e grandes consumidores, que, quando situadas distantes da malha de dutos do distribuidor, não poderão ser abastecidas por Gás Natural.
Mister a criação de mecanismos para ampliar a infra-estrutura de distribuição e transporte, sob pena de inviabilizar-se as metas de modificação da matriz energética brasileira. Com certeza, a problemática há de ser tratada e perquirida quando da elaboração do marco regulatório para o setor.
Valendo-se das normas enfocadas neste trabalho, poderá o interessado ser um agente de ampliação dos dutos de distribuição, suprindo a omissão do serviço das empresas estatais ou concessionárias.
Ademais, diante da relevância que a instalação dos dutos importa, notadamente pelas questões de segurança, a aplicação das normas expostas no Código Civil não exclui demais dispositivos inerentes ao tema. Desta forma, deve-se verificar às especificações dos dutos a serem instalados, normas de urbanismo dispostas pelo plano diretor de cada Município, regramentos de ordem ambiental, etc. Portanto, os artigos 1.286, seu parágrafo único, e 1287 não hão de ser aplicados sem a observância de todo o sistema jurídico vigente.
1.5 Conclusão
O Gás Natural, diferentemente do petróleo e de seus derivados, ainda não possui uma tecnologia que permita seu amplo armazenamento, o que é feito a custos elevados e de forma pontual. Assim, fazer com que este energético atinja os consumidores finais, implica na criação de uma larga malha de dutos que una todas as fases de seu ciclo produtivo.
Ocorre que, sair do plano do ideário e atingir a concretude necessária de tamanha meta, implica questionar-nos a quem competirá tal árdua tarefa. As Emendas Constitucionais empregadas apontam-nos que, se o Estado não se desincumbiu de cumpri-la, deseja, pelo menos, permitir que a iniciativa privada colabore com o expansionismo do Gás Natural.
Assim, facultando a terceiros que realizem uma atividade que lhe compete originariamente, leva-nos a concluir que os atos atinentes a inserção dos dutos, devem ser vistos sob a ótica do Direito Administrativo. É por tal razão que, quando se fizer necessária a instalação dos dutos de gás, seja na atividade de transporte ou distribuição, por particulares, estes empregarão o poder de império intrínseco ao poder público, o que, por lhe fazer de vez, facultar-lhes-ão o direito de instituir as restrições administrativas sobre a propriedade particular.
Apesar do afirmado, diante da inexistência de um marco regulatório específico para o Gás Natural, as exigências e metas para que os novos players voltem suas as atividades para o público maior não vem sendo cumpridas a tempo e a modo. A mentalidade do mundo capitalista, infelizmente, faz com que se prefira sempre a busca pelo lucro rápido e certo, o que pode ser obtido quando os serviços de distribuição e transporte de Gás voltam-se para os grandes consumidores. Empreender uma visão meramente mercadológica à atividade leva-nos a questionar o papel que o Estado propugna desempenhar, vindo à tona as antigas críticas já feitas ao falido modelo liberal.
Enquanto não se tem uma mudança de visão do papel que os empreendedores privados, e muitas vezes o próprio Estado, vem a realizar, traz-nos a legislação um meio eficaz do particular suprir suas necessidades por Gás Natural, conferindo-lhe o direito a instituir a servidão civil.
A Lei concede aos interessados verdadeiro direito subjetivo para impor restrições à propriedade de terceiro por onde haverá de passar as tubulações, efetivando-se assim o direito de acessar os dutos de distribuição. Não há de se esperar o beneplácito do poder público ou daquele que esteja atuando no lugar da Administração, para se constituir gravame sobre a propriedade particular.
Sendo o conflito entre particulares, e a instituição da servidão de passagem impingida sobre a propriedade de um particular, aplica-se o Código Civil, notadamente por trazer disposições expressas atinente à temática.
Portanto, não há de se falar em servidão administrativa para o instituto trazido pelo Código Civil. Aqueles que defendem tal tese, encontram-se ungidos à falsa ótica de que apenas a Administração, e seus concessionários, instalam os dutos de gás. Até o momento, a legislação ainda não conferiu o direito de acesso aos transportadores, o que gera, na prática situações de perplexidade.
O ordenamento jurídico não pode ser um impeditivo à evolução da sociedade. As normas e interpretações que pensamos terem sido expostas ao longo destas breves considerações revela-nos a existência de regras claras para aqueles que estarão diretamente envolvidos pela passagem e instalação dos dutos de Gás Natural. Resta-nos aguardar que a sociedade carente e necessitada seja realmente atendida em seus anseios, não sendo os institutos analisados instrumentos de uma prática retórica que vise interesses adversos ao bem comum.
BIBLIOGRAFIA
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Notas
1 Apud, Mercante, Ricardo. Futuro Promissor para o GN. www.ctgás.com.br, 20/02/2004.
2 Direito do Petróleo em Revista, página 70
3 O Estado Brasileiro tinha a maioria do capital social da empresa, sendo o restante do capital formado por particulares, ensejando, por conseguinte, a atuação do ente sob o regime de direito privado, com as necessárias derrogações pelo direito público.
4 Frise-se que as exigências dispostas acerca do instituto da desapropriação são elencadas sob a luz da Constituição Federal de 1988, sofrendo variações a cada Carta Política. A título de exemplo, a Constituição de 1937 não esculpia a necessidade da justa indenização na desapropriação.
5 Pronunciando-se sobre a malha de dutos de transporte, a própria ANP reverbera o entendimento ora exposto: "Cabe ressaltar que toda a malha nacional, englobando a existente e os novos projetos, é de propriedade da Petrobrás" (Séries ANP, 2001, 198).
6 Em São Paulo, em 1872, o Império através do Decreto 5.071 autorizou o funcionamento de empresa que explorasse o serviço público de iluminação.