4 - SUICÍDIO: O PERFIL SUICIDA
Consoante já referido em outros tópicos do presente estudo, também a caracterização do perfil suicida é controverso na doutrina especializada [31].
DURKHEIM propôs a existência de três tipos de suicídio, a saber, o egoísta, o altruísta e o anômico [32]:
Egoísta: decorre do enfraquecimento do controle social com o favorecimento do individualismo mórbido que tendesse ao suicídio;
Altruísta: contraponto ao anterior [33], seria exemplificado pelos casos de esquimós idosos, que se afastam da tribo para morrer, convictos de que se haviam tornado um "peso morto" para sua comunidade;
Anômico: decorre de conflitos sociais internos, como a emigração, desorganização social e dificuldades econômicas, que frustrariam as aspirações do indivíduo, levando-o ao suicídio [34].
Já segundo MENNINGER, haveria duas categorias de suicídio: o crônico, decorrente de atos como alcoolismo, obesidade, sem a passagem ao ato propriamente dito, o focal, consubstanciado em casos de automutilação, simulação de doenças, acidentes propositais, até a obtenção do êxito letal ou seqüelas.
Não obstante, na CID-10 inexiste uma classificação para o suicídio, havendo orientação para que as mortes daí decorrentes seja incluídas a semelhança do critério NASH (mortes por causas externas), com outros critérios para as lesões decorrentes de tentativas.
5 – SUICÍDIO: ESTATÍSTICAS:
Conforme igualmente já referido, as taxas estatísticas são encaradas pela comunidade médico-científica com bastante desconfiança, a despeito de serem reconhecidas como essenciais para o estudo do fenômeno do suicídio.
Outrossim, tomando por base as conclusões de BLANCA WERLANG: [35], em pioneiro estudo realizado nas cidades da Grande Porto Alegre e na própria Capital do RGS, de forma extremamente resumida, temos o seguinte:
Características demográficas: predomínio de sujeitos do sexo masculino, com idade entre 39,7 anos, brancos, solteiros, com 1º grau incompleto, católicos, em geral não praticantes. O trabalho especializado é mais freqüente, equiparando-se, contudo, á soma de desempregados e inativos.
Características das ocorrências de morte: a maioria foi registrada em Porto Alegre, em geral na própria residência, por enforcamento.
A estação com maior número de registros foi na primavera, na 2ª feira, principalmente à noite.
Características clínicas: predominância de personalidades impulsivas, agressivas, labilidade de humor, problemas no relacionamento familiar, história familiar de doença psiquiátrica, traços ou sintomas de depressão, história familiar de suicídio e dependência do álcool.
De salientar, outrossim, que, segundo dados da OMS, referidos por WERLANG [36], o suicídio fica está entre as 10 principais causas de morte no mundo.
6 – SUCÍDIO: FATORES DE RISCO E COMPORTAMENTO SUICIDA.
Os ditos "fatores de risco" do suicídio mais freqüentemente estudados são os seguintes [37]:
A ) Sexo: como visto na pesquisa já mencionada, da lavra de WERLANG, há um predomínio dos homens como praticantes do suicídio. De modo geral, LOUZÃ NETO et alli referem que o autocídio é de duas a três vezes mais freqüente entre os homens do que as mulheres, embora venha aumentando a incidência entre estas últimas [38].
B ) Idade: no homem, o risco aumenta com a idade, devido às melhores condições de vida a partir da década de 1960. Em relação a ambos os sexos, o suicídio é mais alto na meia-idade e entre idosos, sendo que nos países desenvolvidos as duas curvas tendem a aproximação.
O suicídio em crianças menores de 12 anos é raro, embora idéias suicidas ocorram com freqüência. É notório o aumento de suicídios entre adolescentes. Nesse último caso, é possível denotar dois grupos. O primeiro é caracterizado por problemas comportamentais, ou seja, estilo de vida autodestrutivo. O segundo grupo é caracterizado por problemas circunstanciais, no demais tendo um estilo de vida "sadio", sendo menor o risco de autocídio. Também aqui o sexo masculino apresenta uma predominância no comportamento desviante, pois os rapazes cometem suicídio em proporção três vezes maior que as adolescentes.
C ) Estado marital: as pessoas sós parecem ser as mais atingidas, ou seja, divorciados, solteiros e viúvos, nessa ordem. Os casados são os menos afetados. A inexistência de filhos parece ter um influência particular na decisão suicida [39], bem ainda a viuvez, aparentemente ocorrendo grande número de suicídios após a morte do cônjuge.
D ) Classe social: nos países desenvolvidos, predomina o suicídio nas classes mais altas [40], ocorrendo o contrário nos países subdesenvolvidos, sendo bastante questionáveis essas considerações.
E ) Profissão: em estudo realizado no Estado da Califórnia [41], nos EUA, foram apontadas três profissões com alto índice de suicídio entre seus membros: farmacêutico, dentista e médico.
Outras pesquisas [42] apontam maior incidência entre militares e médicos, pelo conhecimento profissional que detêm eles sobre como morrer.
F ) Desemprego: há correlação entre desemprego e suicídio, especialmente no sexo masculino, sendo porém imprecisa essa associação. Isto pois há o questionamento entre ser o suicídio uma conseqüência adversa da perda do emprego, ou ser o indivíduo com alguma patologia mental mais propenso a perder sua atividade laboral. Porém, independentemente de uma ou outra opinião, o desemprego é um fator a ser considerado na análise do fenômeno do suicídio.
G ) Momento histórico: por incrível que possa parecer, os índices de suicídio são menores em tempos de guerra (beligerância de um país contra o outro) do que na paz. Explicar-se-ia isso pelo fato de que a coesão social aumenta nesses períodos, além de uma melhor definição de papéis sociais (soldado = guerreiro e cidadão = contribuinte/trabalhador), bem ainda a agressividade seria dirigida ao "inimigo".
H ) Alteração social: as mudanças sociais podem ser um fator suicidógeno. Exemplo disso seria o aumento do índice de autocídio entre idosos no Japão em tempos recentes, em que o respeito à terceira idade naquele país começou a enfraquecer.
I ) Fatores biológicos: o metabolismo cerebral da cerotonina parece estar associado aos comportamentos agressivos e impulsivos, ambos subjacentes ao comportamento suicida.
J ) Fatores genéticos: há fortes evidências, reportadas em toda doutrina sobre o tema, de que existe risco maior de comportamento suicida entre familiares de parentes que cometeram suicídio.
Parece haver um fator genético que favorece o suicídio, independentemente de apresentação de transtorno mental, bem como de influências ambientais.
K ) Família suicidogênica: a conduta suicida pode ser gerada em crianças com perda das figuras parentais.
Nesse caso, tais indivíduos são pessoas humilhadas, que foram cruelmente castigadas, rejeitadas e com carência afetiva, sendo o ato suicida uma simbolização do amor desejado e nunca experimentado.
Saliente-se que essas pessoas são consideradas "intrusos" pelos demais membros da família, que descarregam e projetam nele sua agressividade, sendo a meta a expulsão dele do grupo familiar, pela auto-eliminação.
São os casos em que é fornecido o meio para o autocídio, de modo sub-reptício, como armas, veículos (para causação de acidentes), drogas, álcool, entre outro.
Em tal hipótese, como medida de proteção à pessoa, aos profissionais da saúde se recomenda a internação do possível suicida.
L ) Saúde física: a doença física é comum entre os suicidas, e também o uso de farmacos que causam depressão. Os pacientes de AIDS apresentam, também, um grande índice de suicídios, embora os tratamentos atuais, que evitam a "desfiguração" causada pelo emagrecimento, entre outros "sintomas" dessa doença tenham amenizado o quadro.
Com relação ao comportamento do suicida, são identificados [43], em progressão, as seguintes características:
I - Idéias suicidas: são o grau inicial. Apresentam-se primeiro de forma esparsa, para depois adquirir proporções deveras significativas, de modo que não conseguem ser afastadas da mente do indivíduo.
II - Desejo de suicídio: acompanham a idéia de suicídio a vontade de praticá-lo, sem, contudo, o planejamento específico ou a ação.
III - Intenção de suicídio: a ameaça de pôr fim à vida é claramente expressa, sem a realização de ação concreta, porém. Em geral antecede o plano de suicídio.
IV - Plano de suicídio: o indivíduo decide pôr fim à vida, passando a tramar a própria morte, planejando os detalhes de lugar, hora e método. Por vezes, deixa um "bilhete" de despedida.
V - Tentativas de suicídio: são atos auto-agressivos, mas não fatais, primando o indivíduo por tentar assim vingar-se, chamar a atenção, provocar culpa nos outros, entre outras motivações.
VI - Atos impulsivos: consistem em atos agressivos sem planejamento suicida, acompanhados de métodos repetitivos e estereotipados. Na tentativa de suicídio e no ato impulsivo a efetiva ameaça à vida tem graus variáveis, culminando nas tentativas de suicídio, cuja letalidade é interrompida por terceiros ou por profissionais da saúde.
VII - Suicídio: tem por desfecho a morte. É caracterizado pelo planejamento cuidadoso e emprego de métodos realmente letais.
Saliente-se novamente que o ato suicida não é considerado diagnóstico de transtorno mental, sendo que pessoas livres de patologias podem cometer um ato suicida.
7 – SUICÍDIO: TENTATIVA:
Merece tópico específico os casos de "tentativa", ou seja, aqueles que o êxito letal não foi atingido pelo suicida.
De um modo geral, é consenso mesmo entre os leigos que as pessoas que tentam o suicídio não apresentam necessariamente intenção suicida, ou seja, de "matarem-se" efetivamente.
Segundo STENGEL [44], a tentativa de suicídio seria um "grito de alerta" (cry for help).
A tentativa de suicídio ocorre mais comumente entre as mulheres, sendo que 2/3 têm menos de 35 anos, entre as classes menos favorecidas, em zonas urbanas e más condições de habitação, sendo o método o auto-envenenamento.
Geralmente as pessoas que tentam o suicídio apresentam um quadro de anormalidade psiquiátrica, com destaque para a depressão reativa, seguindo-se os episódios de tentativa a atritos familiares ou estresse interpessoal semelhante a esses.
Ocasionalmente, ocorrem entre pessoas normais ou sem características de psicopatologia, mas que estavam sob forte estresse situacional agudo.
Inexiste um traço específico de personalidade que tenta o suicídio, mas em geral são impulsivos e com personalidade conturbada, associada a problemas sociais.
8 – CASOS REAIS:
Na praxe forense, especificamente na esfera criminal, são comuns os inquéritos instaurados acerca de situações que, já de imediato, são facilmente observáveis como sendo suicídios, a despeito de envolver o evento morte, o qual, como vimos, encerra diferentes previsões na lei penal vigente em nosso País.
São exemplos disso dois casos em que atuamos, sob a orientação do Ministério Público oficiante nos Inquéritos Policiais respectivos.
Para a análise, apresentamos inicialmente caracteres envolvendo o caso em análise, resumidamente apontando a correlação com nosso trabalho e a "autópsia psicológica pertinente", passando então à transcrição do "pedido de arquivamento" por nós formulado, pois a situação não reunia qualquer incidência da lei penal. Ou seja, como se viu, em sendo o suicídio um fato não imputável penalmente, impossível a instauração de ação penal.
Outrossim, preservou-se a identidade dos envolvidos e familiares, pela supressão mecânica dos apelidos de família e outros dados passíveis de localização, para a preservação da identidade e privacidade dos cidadão implicados nos fatos.
Passamos, pois, à análise de cada um deles:
1 º SUICÍDIO:
Ocorrida no interior do Estado do RGS, a cerca de 100 KM de Porto Alegre. Envolveu como vítima homem branco [45], com 52 anos de idade, funcionário público (policial) aposentado. Suicidou-se com um tiro na cabeça (ouvido direito) em frente ao cemitério municipal. Deixou "bilhete de despedida".
Ouvido parente do falecido pela autoridade policial, referiu a motivação para o ato suicida como sendo a existência de dívidas, que não poderia pagar, inclusive havendo tentado, sem sucesso, vender a própria residência para saldá-las [46] (47).
A vítima ingeriu bebida alcóolica antes de praticar o autocídio [48], fato comprovado em perícia (doc. anexo).
Utilizou a vítima meio afeto à sua atividade – policial – para consumar o ato, ou seja, arma de fogo do tipo revólver, calibre. 38, que gerou o ferimento fatal (cópia fotográfica anexa).
Transcrevem-se as razões do pedido de arquivamento pelo Ministério Público (as notas em negrito são da promoção original):
"COMARCA DE xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
INQUÉRITO POLICIAL Nº.33.xxx
VÍTIMA: ª
PROMOÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
PEDIDO DE ARQUIVAMENTO
.MMª. Juíza:
1 - Trata o presente caderno investigatório da apuração dos fatos envolvendo o suicídio praticado por A..., ocorrido na data de 23.0X.19XX, dentro de um veículo Ford... , no estacionamento do Cemitério Municipal de (...), RS.
A comunicação da ocorrência foi levada a efeito por policiais militares que acorreram ao local, alertados por telefonema anônimo.
Foi realizado levantamento no local dos fatos pelos Srs. Peritos do Departamento de Criminalística, com levantamento fotográfico (fls.17-43) e exame cadavérico nas fls.11-15 dos autos.
Concluindo seu relatório pelo não indiciamento, dado o caráter atípico da conduta, a autoridade policial remeteu os autos a este Juízo, sendo dado vista ao Ministério Público.
Requereu-se, então, a oitiva de familiares da vítima, o que foi efetivado na fl.56 dos autos, que retornaram com nova vista.
É o breve relatório.
2 - Compulsando-se os autos, a toda evidência percebe-se inexistir tipicidade na conduta investigada.
Com efeito, o fato de pretender alguém retirar a própria vida, enquanto censurável sob todos aspectos religiosos, éticos e morais, não recebe sanção penal, salvo quanto aos possíveis instigadores de tal atitude, que recebem tipificação própria no artigo 122 do Código Penal.
Não se verifica, outrossim, essa última hipótese no caso em tela, pelo farto conjunto probatório existente.
Primeiramente, a prova pericial indicou ter a vítima sofrido o ferimento letal no ouvido (fl.06), com transfixação do projétil, ocasionando o óbito, conforme o laudo de necropsia da fl.14.
Ora, como é consabido, constitui-se essa lesão atingida uma das "zonas de eleição" dos suicidas, conforme ensina ERALDO RABELLO [49]:
"...o gesto do suicida, normalmente, é aquele que lhe demandar menor esforço e, pois, o mais cômodo, espontâneo e natural e, ao mesmo tempo, aquele que, mesmo empiricamente, o indivíduo sabe, ou supõe, ser o mais eficaz. Por isso, a preferência dominante é a dos tiros na cabeça, sendo pouco freqüente se decidir o suicida por tiro no peito e raríssimo escolher outra região de sua anatomia.
Na cabeça, a escolha recai, geralmente, na região temporal, direita ou esquerda, conforme se tratar, respectivamente – o que deve ser cuidadosamente verificado -, de indivíduo destro ou canhoto; seguem-se, em ordem de preferência, os tiros no ouvido e, menos freqüentemente, na boca ou sobre o mento (...)" (sic) (grifamos)
Além disso, a constatação extraída da leitura da correta perícia efetivada no local do fato não deixa margem a dúvidas de que a infeliz vítima tirou a própria vida, sem ingerência alheia, mormente pelo fato de que deixou "mensagem" indicativa desse seu intuito autocida, outra característica dessa espécie de desequilíbrio. Veja-se o teor do "bilhete" fotografado sob o painel do veículo onde encontrado o corpo da vítima:
"Estou indo para uma viagem sem volta.
X., X. e X. eu adoro vocês!
X.:
Dis para a XXXXXXXXXXXX que eu não pude me despedir dela e dos meus irmãos amo todos mas não tive coragem de ir até a casa deles. Deus abençõe vocês. Vou terminar porque esta na hora. (...)" (sic)
Acresça-se a essa prova a constatação de que a vítima havia ingerido bebida alcóolica (auto de exame da fl.11), o que também é característico no comportamento suicida, como forma de diminuir a autocrítica e "criar coragem" para a prática do autocídio.
De salientar, ainda, que condutas suicidas como a narrada não são desconhecidas da doutrina específica sobre o tema, referentemente ao aparente inopino da prática autocida, v.g.:
"O desejo de morrer vem de repente, inopinadamente, provocado por algum fato inesperado, brutal, chocante, muitas das vezes conhecido tão-somente pelo agente, que se precipita do alto de um edifício, dá um tiro na cabeça, e todos ficam a perguntar:
- Mas o que houve com Fulano? Há uns 10 ou 15 minutos havia falado comigo, estava feliz da vida, concluíra um negócio maravilhoso, tudo lhe corria bem, não posso atinar, não posso compreender (...) [50]"
De par com a lição doutrinária retro transcrita, há prova nos autos de que consistiria a pretensa motivação da vítima para suicidar-se na existência de dívidas que não poderia saldar.
Assim as declarações do Sr. J...., na fl.56 dos autos:
"Era cunhado do policial civil A (...) o qual faleceu há aproximadamente três anos. A era casado com sua irmã X. (...). Num certo dia, o qual não recorda, Y cometeu o suicídio, no interior do veículo (...), utilizando um revólver, dando um tiro na cabeça. Pelo que saiba, ninguém o socorreu, pois o fato ocorreu nas proximidades do cemitério de (...). Pelo que foi informado, Y estava com muitas dívidas. Por este motivo, teria cometido o suicídio. Várias vezes, mesmo depois do falecimento de A, funcionários do Banco (...) ou (...), do (...) e lojas de Porto Alegre ou (...), ligavam para seu telefone (...) cobrando dívidas do A. Então comunicava-os o que havia ocorrido com Y. Ligavam para sua casa, pois quando o A efetuava algum negócio, ele sempre lhe indicava como uma referência pessoal.
Um dia antes de falecer, Y lhe procurou perguntando se o declarante não queria comprar a casa em (...), porque estava com dificuldades financeiras. Respondeu-lhe que não podia adquirir a casa. Porém, ofereceu ao Y, o empréstimo de R$ 3.000,00 (...). A disse que aquela importância ‘não resolveria o problema dele’." (sic) (grifamos)
Assim, diante da reconhecida inexistência de prova no sentido de que fora a vítima auxiliada ou induzida em seu lamentável desiderato, senão que partiu dela própria o desenlace fatal, resta configurada a atipicidade da conduta em exame, conforme se extrai da doutrina de MAGALHÃES NORONHA [51]:
"Não é crime uma pessoa matar-se (morte física), mas é crime um indivíduo auxiliá-la; não é delito uma pessoa prostituir-se (morte moral), porém é delito um indivíduo favorecê-la. (...) O direito vê no suicídio um fato imoral e socialmente danoso, o qual cessa de ser penalmente indiferente, quando a causá-lo concorre, junto com a atividade do sujeito principal, uma outra força individual estranha." (sic)
Deste modo, sem exsurgir dos autos qualquer conduta típica, inviável a instauração da ação penal respectiva.
3 - Ante o exposto, ausente a tipicidade e impossível a propositura da ação penal, forte nos artigos 28, 41 e 43, I, todos do CPP, requer o Ministério Público por sua agente signatária, no uso de suas atribuições legais, seja determinado o arquivamento do presente Inquérito.
XXXXXXXXXXXXXX, X de XXXXXXXX de 2001."
2 º TENTATIVA DE SUICÍDIO:
O caso em exame envolve como vítima homem branco, com 37 anos de idade, de profissão vigilante, separado e sob alegado tratamento para tireóide [52].
Tentou o suicídio defronte à casa da ex-esposa, em município distante cerca de 70 KM de Porto Alegre, desferindo um tiro no peito com um revólver cal.. 32, do espólio do pai dele. A data foi num domingo, dia dos pais.
Ouvido pela autoridade policial, pois sobrevivera à tentativa (foi prontamente socorrido pela ex-esposa e populares) relatou sobre o aludido tratamento e problemas familiares. Quanto ao fato em tela, alegou ter ficado "chocado" em não poder ver a filha no dia dos pais, pois a ex-esposa levou-a (a filha) para uma festa em outra cidade [53].
Percebe-se, no caso em tela, que essa tentativa de suicídio aparenta ter sido efetuada para "chamar a atenção", ou seja, o "cry for help" já referido acima. Isso pois, a despeito de usar método afeto à profissão/ambiente do suicida em potencial (vigilante), pratica o ato em via pública, onde outras pessoas podem vir a impedir o resultado, o que efetivamente veio a ocorrer.
A seguir, as razões do pedido de arquivamento da investigação policial pelo Ministério Público (as notas em negrito são da promoção original):
"XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX – 1ª VARA JUDICIAL
INQUÉRITO POLICIAL Nº.XXXXXX
VÍTIMA: Z...
PROMOÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
PEDIDO DE ARQUIVAMENTO
.MMª. Juíza:
1 - Trata o presente caderno investigatório da apuração dos fatos envolvendo a tentativa de autocídio praticada por Z..., havida no data X.0X.20XX, por volta das 20h00min, na rua... em (...).
A comunicação da ocorrência foi levada a efeito pela ex-esposa da vítima (fl.03) e a autoridade policial ouviu esta última (vítima) na fl.10, confirmando ela seu intuito de pôr fim à própria vida.
Concluindo seu relatório pelo não indiciamento, dado o caráter atípico da conduta, a autoridade policial remeteu os autos a este Juízo, sendo dado vista ao Ministério Público.
É o breve relatório.
2 - Compulsando-se os autos, a toda evidência percebe-se inexistir tipicidade na conduta investigada.
Com efeito, o fato de pretender alguém retirar a própria vida, enquanto censurável sob todos aspectos religiosos, éticos e morais, não recebe sanção penal, salvo quanto aos possíveis instigadores de tal atitude, que recebem tipificação própria no artigo 122 do Código Penal.
Não se verifica, outrossim, essa última hipótese no caso em tela, nas próprias palavras da vítima, colhidas na fl.10 dos autos:
"...o declarante, há mais ou menos dois anos, trata-se contra tireóide, sendo que segundo o declarante o próprio tratamento leva a depressão, seguido de outros problemas particulares em família que o declarante possui.
Antes da tentativa de suicídio, o declarante estava separado da família a mais ou menos um mês e meio, sendo que no dia dos pais, XX.XX.01, a ex-esposa do declarante juntamente com a filha do casal, foram até a cidade de (...) onde participaram juntas de uma homenagem a um tio da filha do declarante, fato que chocou muito o declarante de ter ficado longe da filha naquele dia.
Que ao entardecer o declarante foi até a casa da ex-esposa visitar a filha, a cumprimentou, beijou, despediu-se e quando estava indo embora, na rua deflagrou um tiro no próprio peito, com um revólver calibre 32 longo. Que declarante foi socorrido e levado ao HPS, onde permaneceu internado por oito dias.
Que o declarante esclarece que este fato foi premeditado pelo próprio declarante, não havendo instigação de ninguém para que cometesse o suicídio, inclusive nem viu a esposa naquele dia, somente ouviu a voz dela na casa. (...)" (sic)
De salientar que condutas suicidas como a narrada não são desconhecidas da doutrina específica sobre o tema, referentemente ao inopino da prática autocida, v.g.:
"O desejo de morrer vem de repente, inopinadamente, provocado por algum fato inesperado, brutal, chocante, muitas das vezes conhecido tão-somente pelo agente, que se precipita do alto de um edifício, dá um tiro na cabeça, e todos ficam a perguntar:
- Mas o que houve com Fulano? Há uns 10 ou 15 minutos havia falado comigo, estava feliz da vida, concluíra um negócio maravilhoso, tudo lhe corria bem, não posso atinar, não posso compreender (...) [54]"
Assim, diante da reconhecida inexistência de prova no sentido de que fora a vítima auxiliada ou induzida em seu lamentável desiderato, resta configurada a atipicidade da conduta em exame, conforme se extrai da doutrina de MAGALHÃES NORONHA [55]:
"Não é crime uma pessoa matar-se (morte física), mas é crime um indivíduo auxiliá-la; não é delito uma pessoa prostituir-se (morte moral), porém é delito um indivíduo favorecê-la. (...) O direito vê no suicídio um fato imoral e socialmente danoso, o qual cessa de ser penalmente indiferente, quando a causá-lo concorre, junto com a atividade do sujeito principal, uma outra força individual estranha." (sic)
Deste modo, sem exsurgir dos autos qualquer conduta típica, inviável a instauração da ação penal respectiva.
3 - Ante o exposto, ausente a tipicidade e impossível a propositura da ação penal, forte nos artigos 28, 41 e 43, I, todos do CPP, requer o Ministério Público por sua agente signatária, no uso de suas atribuições legais, seja determinado o arquivamento do presente Inquérito.
XXXXXXXXXXX, XX de XXXXXXXX de 2001."