5 DISCUSSÃO ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA
5.1 INCONSTITUCIONALIDADE DO TABELAMENTO DE PREÇOS
Iniciar-se-á o estudo pela apreciação dos argumentos dos juristas contrários ao tabelamento de preços pelo Estado e que entendem ser esta medida inconstitucional.
Os que assim pensam, defendem que em uma economia de preços controlados não há livre concorrência, assim como consideram só ser legítima a interveniência estatal na esfera da economia posteriormente à sua desregulamentação, para reprimir o abuso do poderio econômico e o aumento desregrado de lucros, bem como para garantir a defesa do consumidor. Ademais, asseveram que a questão da essencialidade da mercadoria ao consumo popular, muitas vezes, acaba por se constituir em um conceito muito subjetivo, cuja determinação pode ficar ao alvitre dos executores do tabelamento da mercadoria, de acordo com seus interesses próprios e/ou de determinado grupo, o que viria de encontro à primazia do interesse público prestigiado pela CF/88.
Um dos autores que acolhem essa posição é Miguel Reale Júnior, conforme infere-se de sua afirmação: "A fixação prévia de preços ofende a Constituição de 1988 nos seus fundamentos e nos princípios que informam a ordem econômica" (GRAU, 2002, p. 233).
5.2 CONSTITUCIONALIDADE DO TABELAMENTO DE PREÇOS
Agora, destacar-se-ão as teses dos juristas que entendem haver respaldo na ordem econômica constitucional brasileira para o tabelamento de preços.
Os adeptos desse posicionamento defendem ser possível a implementação da referida medida porque cabe ao Estado corrigir as anormalidades promovidas pelas liberdades de mercado e que vão de encontro à harmonia do sistema, tais como a redução e/ou supressão da concorrência, as ações que ensejam divisão desigual de bens e resultados, e as que criam o ambiente propício ao desenvolvimento de uma futura crise nos esteios da economia. Asseveram que o tabelamento de preços representa uma medida intervencionista que visa a coibir abusos e preservar a livre concorrência – considerada, por muitos, sustentáculo do sistema econômico - de quaisquer interferências negativas, assim como a livre iniciativa. Ademais, objetiva reprimir o abuso econômico voltado para o aumento arbitrário de lucros, afirmando que se a CF/88 repudia-o, defendem ser inaceitável que um ou mais de seus dispositivos tornem inútil e ineficaz a citada proibição.
Entretanto, sublinham que o tabelamento de preços é possível tão somente nos casos em que houver desvirtuamento da organização econômica, em qualquer das modalidades previstas no art. 173, § 4º da CF/88, quais sejam: redução e/ou supressão da concorrência, aumento discricionário de lucros e dominação do mercado. Deste modo, afirmam que, uma vez constatado que o método mais adequado à circunstância é o tabelamento de preços, o Estado não só pode, como deve implementá-lo, já que esta é uma função que lhe fora conferida pelo texto constitucional e, em sendo o tabelamento o mecanismo mais apropriado para garantir a execução da mencionada prerrogativa, não há sentido no Estado não usá-lo. E, se não o fizer, ou estará descumprindo uma obrigação que lhe é inerente – prover a organização econômica – ou estará servindo-se de um instrumento desproporcional ao exigido pelo caso concreto, o que, certamente, não terá a eficácia pela coletividade almejada, restando, pois, frustrado o bem-estar desta.
Além disso, ainda tecendo considerações a respeito da possibilidade do Estado intervir no domínio econômico, utilizando-se dos recursos mais apropriados, nos casos de ação fiscalizadora – cuja uma das expressões é o tabelamento de preços – bem como a constitucionalidade deste procedimento, postulam ser uma previsão constante da CF/88 que o Estado cumpra a sua função fiscalizatória nos casos especificados no art. 173, § 4º, os quais configuram atentado em desfavor da ordem econômico-financeira e da economia popular. A única ressalva que se faz é que a referida ingerência deve acontecer excepcionalmente, quando for realmente necessária. Logo, afirmam que dizer que a interveniência estatal deve se fazer apenas em conjunturas extremas, não significa, absolutamente, dizer que ela nunca deverá se suceder, muito menos que não há permissão constitucional para tanto, posto entenderem restar demonstrado que ela existe.
Destaque-se que uma grande fatia da Doutrina entende ser o tabelamento de preços – assim como outras formas de ingerência estatal na economia – um método para fazer valer os valores sociais do trabalho, os quais, ao lado da iniciativa privada, constituem não apenas o fundamento da ordem econômica, mas da própria República Federativa do Brasil. Destarte, vêem na interferência estatal na economia um meio de se assegurar o respeito aos mencionados alicerces, revestindo-se, pois, o tabelamento de preços deste caráter, o que se sustenta no fato de que, para eles, a livre iniciativa, unicamente, é legítima, quando exercida com vistas à justiça social. Em isto não restando verificado, impõe-se a atuação do Estado, valendo-se dos meios mais condizentes com a circunstância, o que viabiliza, muitas vezes, o tabelamento de preços. Daí seu cunho de constitucionalidade.
Os autores seguem dizendo que, excepcionalmente, em desenvolvendo-se alterações na ordem econômica com potencial de prejudicar as bases da atividade econômica livre, é possível que o Estado restrinja a liberdade econômica de mercado e, conseqüentemente, de particulares, no que se refere à fixação de preços, no intuito de salvaguardar a espontaneidade contingente do mercado na formação de preços.
Nessa linha, são favoráveis ao tabelamento de preços pelo Estado, nas situações em que esta medida se faça imprescindível, por entenderem haver previsão constitucional no sentido do Estado primar pela regularidade das relações econômicas dentro da sociedade brasileira, evitando-se a realização de atos, especialmente pelo setor privado, que venham de encontro à ela. Nesse sentido, afirmam que impedir o Estado de proceder ao tabelamento de preços quando necessário, equivale a aceitar que deve haver supressão aos princípios insculpidos no texto constitucional (destaca-se a livre iniciativa e a livre concorrência, dentre outros), bem como significa renegar a necessidade de mantença de um sistema econômico harmônico.
Ademais, a grande maioria vê no tabelamento de preços um promotor do bem-estar coletivo, da dignidade da pessoa humana, da justiça social e da plena eficácia dos preceitos constitucionais, podendo-se citar: Geraldo Vidigal, Miguel Reale, José Afonso da Silva, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Eros Roberto Grau, Herculano de Freitas, Alberto Venâncio Filho, Castro Nunes, Luiz Gallotti, Moreira Alves, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence, dentre outros.
Miguel Reale, quanto à discussão sobre a intervenção estatal no domínio econômico e, especificamente, sobre o tabelamento de preços, firma:
Houve, por conseguinte, ineludível opção de nossos constituintes por dado tipo, o tipo liberal do processo econômico, o qual só admite a intervenção do Estado para coibir abusos e preservar a livre concorrência de quaisquer interferências, quer do próprio Estado, quer do embate econômico que pode levar à formação de monopólios e ao abuso do poder econômico visando ao aumento arbitrário de lucros. (GRAU, 2002, p. 223).
Praticam, pois, um grande erro (inclusive do ponto de vista fático) aqueles que não contribuem para uma interpretação objetiva e serena do texto constitucional, assumindo hostil ou depreciativa perante o Estatuto de 1988, o qual, apesar das múltiplas contradições que o comprometem, abre clareiras à defesa tão necessária da livre iniciativa, o que quer dizer da economia de mercado. (...) Da exegese conjugada desses dispositivos podemos inferir algumas conseqüências básicas da ordem econômica, a saber: a) a livre concorrência deve ser a regra ou diretriz básica da ordem econômica; b) o Estado só deve interferir na vida econômica para evitar a eliminação da concorrência, reprimindo o abuso econômico que vise a obtenção de lucros ilícitos (GRAU, 2002, p. 224).
Cumpre acrescentar as ponderações de José Afonso da Silva, o qual afirma serem os fundamentos da ordenação econômica, a valorização do trabalho humano e a iniciativa privada: "a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado". (GRAU, 2002, p. 227). E, relativamente à presença estatal na órbita econômica, sobressalta: "conquanto se trate de declaração de princípio, essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado na economia, a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho que, ao lado da iniciativa privada, constituem o fundamento não só da ordem econômica, mas da própria República Federativa do Brasil (art. 1º, IV)." (GRAU, 2002, p. 227). Adicionalmente, é relevante o comentário de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, no que respeita às vantagens do Estado se impor no campo econômico:
Ou seja, o intervencionismo não se faz contra o mercado, mas a seu favor. O mercado, enquanto mecanismo de coordenação e organização dos processos econômicos e que pressupõe o reconhecimento do direito de propriedade dos bens de produção e a liberdade de iniciativa, é mantido no intervencionismo como o princípio regulador da economia. (grifo nosso) (...) O art. 174 desta (Constituição Federal) determina que o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, exerce, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este último indicativo para setor privado. Tais funções assinalam as formas de intervenção do Estado na economia, ao lado de outras, como por exemplo, a função empresarial, disciplinada pelo art. 173. (grifo nosso) (...) (a Constituição) acentua essencialmente (art. 170) o pluralismo da livre iniciativa e o sentido social, não discriminatório do trabalho humano como fundamento da ordem econômica. (GRAU, 2002, p. 228/229).
Referentemente ao posicionamento de Eros Roberto Grau, este é favorável à intervenção estatal no domínio econômico e, por derradeiro, ao tabelamento de preços pelo Estado, por postular que a CF/88 acolheu a possibilidade da citada medida, no conjunto normativo atinente à ordem econômica:
para coibir abusos e preservar a livre concorrência de quaisquer interferências, quer do próprio Estado, quer do embate econômico que pode levar à formação de monopólios e ao abuso do poder econômico visando ao aumento arbitrário de lucros (...) a liberdade apenas é admitida enquanto exercida no interesse da justiça social e confere prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado (GRAU, 2002, p. 232/233).
Ainda, acerca da possibilidade de tabelamento de preços pelo Estado, manifestou-se Herculano de Freitas, na lição de Alberto Venâncio Filho:
Não há nem pode haver direitos ilimitados. Todos existem na comunhão, e são admitidos até onde não prejudicam a existência e o desenvolvimento progressivo desta. Circunstâncias econômicas, políticas ou de outras de força maior podem determinar a necessidade de restringir ou alargar medidas em favor do consumo ou da produção nacional. As medidas de emergência tomadas durante a guerra e ainda no presente justificam concretamente o acréscimo do que se alvitra (VENÂNCIO FILHO, 1968, p. 225/226).
Importa destacar as ponderações de Castro Nunes, lembrado no livro do autor supra e, sucessivamente, as de Luiz Gallotti:
Nem de certo modo poderia o Congresso legislar sobre o controle de preços sem atribuir ao Executivo ou a um órgão autônomo a execução da lei que viesse a fazer agora na vigência da atual Constituição, tão evidente se mostra que o tabelamento não poderia constar do diploma legal, senão acompanhar pari passu as variações do mercado (...) Se a Constituição manda que se reprima qualquer lucro ilícito, imodesto, exagerado, naturalmente não se pode compreender que, em seu mecanismo, um dos seus dispositivos torne inútil e ineficaz a proibição. Se não é possível o lucro imodesto e se essa proibição consta da lei constitucional, em letra expressa e categórica, é preciso que todas as leis obedeçam, em sua estrutura, ao princípio capital da lei constitucional, a termos de possibilitar-se a repressão. E assim não pode a vedação das delegações impedir a repressão constitucional do lucro excessivo (VENÂNCIO FILHO, 1968, p. 233/234).
Em se tratando de fixação de preços, ainda mais se impõe a necessidade de se deixar certa margem de ação ao Poder Executivo, pois, do contrário, a tarefa se tornaria impraticável, como o exigir-se que cada alteração na tabela de preços fosse precedida de uma lei a ser votada pelas duas casas do Congresso Nacional. (...) Mas nunca poderia ter tido em mente (a Constituição Federal) impedir que excepcionalmente a própria lei possa como único meio de bem realizar os seus fins, facultar ao Poder Executivo a fixação de quotas, percentagens, preços máximos, etc...Porque, se impedisse, estaria tornando inexeqüível aquilo que ela mesma peremptoriamente institui em outro artigo, o que não há como admitir. (VENÂNCIO FILHO, 1968, p. 231).
Manifestando-se acerca da constitucionalidade do tabelamento de preços, proferiram, os Ministros Moreira Alves, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence, respectivamente, as seguintes palavras:
O regime de controle ou de tabelamento de preços é inteiramente compatível com a Constituição vigente, que, ao consagrar a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica, impõe a observância, dentre outros, do princípio da defesa do consumidor, como dispõe o art. 170, n. V (...) A Constituição Federal, aliás, inclui a matéria no Capítulo pertinente aos direitos e deveres individuais e coletivos, prescrevendo o inciso XXXII do art. 5º, que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" (...) A Constituição de 1988 comporta naturalmente medidas mais atenuadas de intervenção, como o controle do abastecimento, o ordenamento jurídico dos preços e outras tendentes igualmente à tutela do consumo e do investimento (grifo nosso), (ALVES, 1993, p. 42).
O princípio da liberdade de iniciativa não tem, desse modo, caráter irrestrito e nem torna a exploração das atividades econômicas um domínio infenso e objetivamente imune à ação fiscalizadora do Poder Público. A intervenção regulatória ou normativa do Estado encontra pleno suporte jurídico na própria Constituição da República, cujo art. 174 autoriza o Poder Público – enquanto agente normativo e regulador da atividade empresarial – a exercer, na forma da lei, funções de controle na ordem econômica, com o objetivo de reprimir o abuso do poder econômico de cuja prática, sempre inaceitável, resultem ou possam resultar a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência ou o aumento arbitrário dos lucros (CF, art. 173, § 4º). A regulação normativa, pelo Estado, das políticas de preços traduz competência constitucionalmente assegurada ao Poder Público cuja atuação regulatória é justificada e ditada por evidentes razões de interesse público, especialmente por aquelas que visem a preservar os postulados da livre concorrência, a fomentar a justiça social e a promover a defesa dos direitos e dos interesses do consumidor (CF, art. 170, caput, e incisos IV e V), (MELLO, 1993, p. 77).
Um instrumento constitucional de concretização desta função permanente de ponderação de valores, que, em termos absolutos, se contradiriam, Senhor Presidente, é precisamente, na ordem econômica, a competência do estado para intervir como agente normativo e regulador da atividade econômica, expressamente legitimado pelo artigo 174 da Constituição, que não se reduz, data venia, a autorizar o papel repressivo do abuso do poder econômico, previsto num dos incisos do artigo 173: a meu ver, essa atividade normativa e regulatória compreende, necessariamente, o controle de preços, que, mostra Comparato, tanto se pode manifestar na fixação de preços mínimos, para estimular determinado setor da economia, particularmente em períodos recessivos, como na fixação de preços máximos ou como se cuida, no caso, no estabelecimento de parâmetros de reajuste. Não excluo dessa atividade regulatória e, conseqüentemente, desta possibilidade de controle de preços, nenhum setor econômico, Senhor Presidente. Mas, também na linha do voto do eminente relator, penso que mais patente se torna a legitimidade dessa intervenção, quando se trata de atividades abertas à livre iniciativa, porém, de evidente interesse social, porque situadas em área fundamental da construção da ordem social projetada na Constituição de 1988 (PERTENCE, 1993, p. 81).
Apresentados os argumentos prós e contra à constitucionalidade do tabelamento de preços de medicamentos, bem assim de outros produtos de uso essencial do povo, proceder-se-á, no capítulo seguinte, à apresentação das conclusões obtidas no estudo do tema eleito.